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quarta-feira, 2 de agosto de 2023

Direito, direitos, guerra

Vejo um problema no direito, ou melhor, nos direitos: quando falamos de direitos e de deveres, a igualdade de direitos é defensável e, praticamente, incontestável. O indivíduo humano deve ser colocado no topo da hierarquia dos valores. Nem Deus, nem os deuses, mas simplesmente o indivíduo humano. Afinal, nenhum deus pode ser ofendido, ou ameaçado e não precisa sequer de quem fale em seu nome, ou o defenda, seja em que circunstância for. 
O que deve ser colocado no topo da hierarquia dos valores não é um indivíduo humano, em particular, por muito especial e valoroso e virtuoso e admirável, que seja, mas todo e qualquer indivíduo humano, em geral e abstrato.
O reverso da medalha é que as ofensas a este indivíduo, a qualquer indivíduo humano, são as maiores ofensas que algum indivíduo humano ou grupo de indivíduos, seja qual for a forma de organização e de poder, pode cometer. Assim sendo, e em conformidade, quanto maior a ofensa, ou o crime, maior a pena. O respeito que é devido ao indivíduo humano transforma-se num critério de sanção que é o reverso daquele respeito.
A ideia é, mais ou menos, esta: quanto maior o respeito devido ao indivíduo humano, maior será a responsabilidade, a punição ou o castigo do indivíduo humano que faltar a esse dever de respeito. O princípio normativo é “não fazer mal, ou seja, não causar dano, tomando aqui os verbos como ações do indivíduo, ou seja, manifestação de intenção”.
O conflito que vejo aqui leva-me a considerar que, se assim for, o que está no topo dos valores não é o indivíduo humano, mas o dever de respeitar, não todo e qualquer indivíduo humano, mas apenas aqueles que lhe não faltam ao respeito. E, faltar ao respeito ao indivíduo humano, tem como consequência deixar de merecer o respeito que lhe era devido. Este problema é de grande acuidade na abordagem e reflexão que sói fazer-se quando defendo que mal é o que causa dano e que quem causa dano faz mal e que ninguém tem o direito de causar dano, de ser cruel, de causar sofrimento, de humilhar, enfim, que, quem não sentir vergonha só de imaginar e admitir fazê-lo, merece censura.
Surge, porém, uma perplexidade: a razão que faz com que ninguém tenha o direito de causar dano a outrém, nem, eventualmente, a si mesmo, e que é ser o indivíduo humano a única sede, conhecida e insubstituível, de sentido, de significado e de valor, sem a qual ninguém, nem nada, significa, porque só o humano dá significado e valor, e nada senão o humano dá significado e valor ao humano, é a mesma razão que faz com que o indivíduo possa ser sujeito a dano, violência, crueldade, sofrimento, humilhação? Ou seja, o dano, violência, crueldade, sofrimento, humilhação, podem ser justificados? Em que medida? Até que ponto, em nome dos direitos do indivíduo humano se poderá justificar uma “violação” desses direitos?
O facto de o indivíduo humano estar no topo da hierarquia dos valores não lhe confere apenas direitos invioláveis, mas também, e correspetivamente, impõe deveres que ele não poderá ignorar e desrespeitar. Os direitos do indivíduo humano não são absolutos, como os de um deus sem deveres, a quem nada pode ser imputado senão o bem, são direitos de dupla face, em que cada direito é um dever, não porque o dever seja uma espécie de contrapartida do direito, ou este daquele, mas porque o direito que assiste a um indivíduo só faz sentido se assitir a todo e qualquer indivíduo.
O dever que tu tens de respeitar o meu direito não é mais, nem menos, do que o dever que eu tenho de respeitar o teu.
O direito que tu tens a que te respeitem não é mais, nem menos, do que o direito que eu tenho a que me respeitem. Se este equilíbrio é quebrado, o valor do humano ofendido aumenta na balança e o do humano ofensor diminui, impondo-se o dever de compensação, de justiça, de ressarcimento, de indemnização, de restauração natural, quando possível. O limite desta sujeição pode ir até onde for necessário compensar pelo dano, pela violação desse direito de outrem.
O valor do indivíduo, por estar no topo da hierarquia dos valores, não quer dizer que seja absoluto, ou sagrado, porque é-lhe respeitado e reconhecido na medida em que ele respeitar e reconhecer o valor dos outros indivíduos. E, em medida idêntica, justa, lhe será retirado.
Outro problema é o de saber até onde, e em que medida, um indivíduo pode alienar, ou prescindir desse seu direito, ou de exercer o seu direito de ressarcimento e de vingança relativamente a quem o ofendeu e lhe causou dano. A disponibilidade desses direitos é outro assunto com muito interesse teórico e prático.
Mas não basta dizer e perceber e concordar que é assim, que não podes desrespeitar-me sob pena de eu te exigir responsabilidades, sendo que este exigir e impor não é um desrespeito por ti.
Não é a questão de, por exemplo, partiste-me um vidro eu vou escolher se te parto outro, se te obrigo a pagar pelo que fizeste, ou se te parto outra coisa qualquer.
De facto, não sou eu quem define, primeiro, o que é o meu direito e o desrespeito pelo mesmo, segundo, que responsabilidades são as tuas, terceiro, como posso obrigar-te a responder e, quarto, com que é que poderei exigir que respondas.
Esta questão de saber com que legitimidade alguém pode coartar e restringir e retirar direitos ao indivíduo, também é uma questão interessante, ainda mais se essa limitação dos direitos do indivíduo for feita em nome de algo que não o indivíduo humano, sendo este o valor que está no topo da hierarquia dos valores.
Vamos, numa perspetiva oposta, considerar a hipótese de que um indivíduo humano, por exemplo, tu, ou eu, não reconhece esse valor do indivíduo, incluindo ele próprio. Tu não pensas que tens direitos, eu também não, nem sequer pensamos em deveres de respeito. O indivíduo humano, para nós, não está no topo da hierarquia dos valores, pelo contrário, não vale nada. Nesta hipótese, a questão da ofensa e do respeito não seria preocupação nossa, do mesmo modo que não repugna nada a muita gente, por exemplo, matar uma formiga, ou uma melga.
Transpondo esta hipótese para a realidade histórica das guerras, o que torna insuportável e injustificável desencadear uma guerra é que ela esmaga pessoas como se fossem formigas ou melgas e destrói brutalmente, com imenso e irremediável sofrimento, crueldade, humilhação, negando-lhes todo e qualquer direito, pessoas que, por sua vez, por causa disso, deixam de estar vinculadas a qualquer dever para com o inimigo.
Em última análise, é a relação não danosa, a boa relação, com o outro, que define o direito. Se a relação com o outro for danosa, é sempre o outro que ela destrói e o direito, não o direito do outro, mas o direito do agressor. O agredido continua a ter os direitos que tinha antes da agressão e passa a ter, por via dessa agressão, direitos que não tinha antes, ao mesmo tempo que deixa de ter deveres que antes tinha.
Carlos Ricardo Soares

quinta-feira, 27 de julho de 2023

Jogo limpo

Individualismo, indiferença, desconfiança, aversão, afastamento, hostilidade, ódio...tudo tem a ver com o grau de ameaça, real ou imaginária, daquilo, ou daqueles, que tomamos e registamos como inimigos, ou simplesmente concorrentes desleais. Não há como evitar essas condutas e essas predisposições defensivas, ou como promover o conforto da pacificação e da paz e da cooperação, se o jogo continuar viciado e a batota não for erradicada. 
Se as pessoas e as comunidades e as instituições não criarem vínculos, ou se desvincularem umas das outras, ficam mais livres e descomprometidas, talvez mais independentes e autónomas, mas mais entregues a si próprias e menos apoiadas, ou amparadas.
Falar em verdade fará sentido enquanto for verdade que estamos muito longe de assistir e de participar num jogo limpo. É trivial que as pessoas sejam convidadas e aliciadas, ou induzidas, a participar num jogo que, à partida, elas próprias já sabem que não é limpo. 
Não ser limpo já faz parte do jogo mas, e aqui é que entra a parte essencial do problema, nunca, em circunstância alguma, poderá ser a regra do jogo, ou fazer parte das suas regras. E isto é muito mais (e muito menos) do que aquilo que um ideal pode ser. 
Diria, no calor da expressão, correndo o risco de estar a dizer um disparate, que, se o ideal é que se faça jogo limpo, então a regra deve ser fazer jogo limpo. Embora, na prática, o que interessa seja o jogo e não a regra.
E até ninguém já coloca a exigência “sublime” de as regras do jogo serem justas, porque isso talvez fosse pedir demasiado. Bastava, para começar, que a verdade “desportiva” triunfasse. 
A falsidade e a mentira constroem-se e fazem caminho sobre a ignorância e o erro, mas sobretudo pelo medo. 
A verdade, se for esta, não é tranquilizante e não espanta que leve a comportamentos defensivos, a individualismos mais ou menos gregários e tribais, desconfianças, recusa de solidariedade, porque a verdade é aquilo de que, em cada momento, e em cada situação, estamos convencidos que acontece, ainda que estejamos enganados.
Carlos Ricardo Soares

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Dos maus os menos

Este texto foi a minha resposta a um comentário que pretendia fazer humor com a filosofia ubuntu, a redenção da humanidade e as bombas matarem apenas os maus.

A filosofia ubuntu, de que conheço apenas “eu sou porque tu és”, soa-me bem e parece-me empática e muito verdadeira, com uma carga positiva de sentido de gratidão e de reconhecimento dos valores da solidariedade. Já me soa mal e tem uma carga de hostilidade e de arrogância injustificável, uma certa ideologia, com tiques de mandamento novo, “tu és porque eu sou”, que grassa sem pudor nem vergonha, como erva daninha, que dá imenso trabalho a limpar.
No primeiro caso temos o sentido da solidariedade e do reconhecimento do tu em nós próprios. No segundo, uma incapacidade cultural, uma mentalidade preconceituosa erigida sobre pretensiosismos de superioridade.
Temos que nos precaver contra a tentação de decidirmos que os bons são os amigos e os maus são os inimigos, ainda que uma larga maioria não seja uma coisa nem outra. Por esse critério, no dia em que as bombas inteligentes souberem matar apenas os maus, talvez não sobreviva ninguém.
A religião cristã baseou-se na doutrina de que só a morte pode libertar e na crença de que, quem desfaz as cadeias, é o redentor. Sejam as que prendem pés, as que agrilhoam a cabeça, sejam outras, por exemplo, obsessões perigosas, paixões que escravizam, situações de miséria, determinados códigos de honra.
Também já ouvi expressões saídas do léxico da bruxaria, como “estar amarrado”, “ser vítima de mau olhado”, “excomungado”, “possesso”, “enjeitado”, “touro sem marca que não se sabe a que manada pertence”, “ovelha tresmalhada é presa fácil do lobo”, entre imensas outras que, em variadas situações, ajudam a interpretar e a verbalizar problemas individuais e sociais, de integração, de pertença, dignidade e respeito e de igualdade, ou a sua falta.
Interrogo-me sobre se, na prática social das comunidades em que eram usadas, as referidas alegorias, não tinham como finalidade estigmatizar e diminuir e fulminar, com o fito de se aproveitarem da situação de fragilidade e de medo em que elas próprias colocavam a vítima.
Quanto à redenção, ela tem a ver com uma libertação humanamente impossível, não com a libertação da escravatura, que ocorria por vezes e era intensamente desejada, num mundo em que o mercado de escravos também podia ser uma oportunidade para o escravo, se fosse vendido e a troca de amo, de senhor, fosse vantajosa. Neste mundo, a libertação reduzia-se praticamente a ser comprado por um amo a outro.
Para os cristãos, estava claro e assumido que não havia esperança de liberdade, nem de paz, nem de justiça, em vida. Não podiam ser mais realistas e mais pessimistas. Sem este realismo e este pessimismo seria mais difícil fazer o cimento da crença na redenção divina.
Eu não sou tão pessimista e o meu realismo, que me dá esperança, é que o homem, que foi capaz de criar Deus, também há-de ser capaz de fazer justiça divina.
Carlos Ricardo Soares
 

segunda-feira, 17 de julho de 2023

A esperança de acabar com as guerras

Nem todos os exércitos, nem todas as armas têm sido suficientes para impedir e evitar guerras, todos os tipos de guerras e guerrilhas, locais, regionais, coloniais, civis, religiosas, comerciais, químicas, industriais, nucleares, tecnológicas...
Se houvesse uma sociologia das guerras que estudasse as guerras desde os primevos, aprenderíamos muito sobre a função reguladora da violência e, mais conscientes dessa realidade biológica, social, cultural, histórica, mas mais ainda sobre a cultura da guerra, que tem sido, em minha modesta opinião, o círculo vicioso, para não dizer espiral que se escala a si própria, numa lógica de exercício de poder e de defesa desse poder, sempre que encontra obstáculos, ameaças ou ataques, em melhores condições estaríamos para evitá-las, ou impedi-las, ou minimizar os seus efeitos.
Nessa sociologia talvez se descortinassem, em todas as guerras, padrões que ajudariam a compreender o fenómeno da guerra, como violência humana, uso da força para atingir fins e objectivos ilegítimos, ilegais, injustos e desumanos, independentemente dos pretextos invocados para desencadeá-las. Talvez se tornasse mais claro que uma guerra não é como o amor que, quando começa, nunca ameaça ter consequências e que, apesar disso, quem inicia uma guerra tem um plano optimista, não em relação à guerra, nem em relação à resolução de um diferendo, mas em relação a alguns objectivos, mais ou menos confessados, entre os quais um objectivo territorial, de supremacia, ou punitivo, perpetrado por uma força, ou uma potência que se coloca, ou que está, ou pensa que está, em posição de superioridade bélica, em condições de tirar vantagem, ou de, pelo menos, não sair esmagada do desastre da derrota.
As sociedades humanas politicamente organizadas em estruturas militares, nas quais assentam o seu poder de facto, ainda não encontraram outra forma de se estruturarem e não estão preparadas para aceitarem outro tipo de solução dos problemas conflituosos que não seja pela força, pela coerção e pela coacção, mesmo nas litigâncias judiciais internas, das mais simples às mais complexas, em que se não prescinde de contingentes policiais para assegurar a ordem e a segurança e realizar, executar as sentenças.
As pedagogias da paz e da ordem, muitas vezes são contraditórias e andam, também elas, associadas a ameaças, mais ou menos implícitas, mais ou menos tácitas, porque quem dita os termos dessas pedagogias não abre mão do seu sistema de valores, ou de vantagens, sujeitando os outros às condições e termos em que podem manifestar-se e pronunciar-se. Isto faz com que se formem correntes de opinião e se criem espaços próprios de expressão de ideias que, por não comunicarem uns com os outros, em vez de contribuírem para a conciliação dos contrários e a pacificação dos antagonismos, os acirra ainda mais e reforça os ânimos hostis.
Assim sendo, numa primeira fase, a nossa esperança reside no poder de estabelecer uma regulamentação do uso da força, nomeadamente militar, nas relações entre Estados e na judicialização adequada da guerra através de instrumentos de direito internacional, da institucionalização de estruturas internacionais preventivas e, tanto quanto possível, num efectivo controlo, por uma estrutura política internacional credível, de certo tipo de armamento cuja finalidade seja ameaçar e eventualmente destruir massivamente. 
Ou seja, uma espécie de ONU legitimada e empoderada de uma espécie de monopólio sobre uso da força entre Estados, aplicação das leis da guerra, responsabilização e desarmamento, disposição e uso de certo tipo de forças, para certo tipo de conflitos armados.
Esta solução que, com algumas diferenças de escala, é considerada satisfatória para as situações estaduais internas, talvez pudesse ser adoptada pelos Estados, na ONU, pelo menos pelos que o quisessem e a subscrevessem, sem prejuízo de estes fazerem valer a sua posição perante aqueles que não aderissem.
Embora esta solução não estivesse ainda completamente a salvo de guerras, já apresentaria consideráveis avanços relativamente à situação atual.
As forças da Guerra e as forças da Paz estão numa relação de poder, de forças, de legitimidade, de Direito e de justiça que, cedo ou tarde, é decidida para o lado da Paz. Acredito que assim seja e tenho esperança de que as guerras acabem.
Carlos Ricardo Soares

  

sábado, 15 de julho de 2023

Valores e compensações

A parte não menos desmoralizante de observar o que acontece no dia a dia, seja lendo, vendo e ouvindo noticiários, debates, comentadores, palestrantes, políticos, consumidores, é pensar no que não devia acontecer e no que não acontece e devia acontecer. 
Ter a percepção de que, em todas as áreas, a actividade discursiva paira sobre a actividade concreta, material, executiva, transformadora e que só há mudança de algo quando intervem uma força, é algo que afecta a crença nos ordenamentos normativos e diminui a credibilidade nas instituições. 
A percepção de que tudo parece resolver-se ao nível do discurso e da argumentação, no plano dos princípios e das boas regras, mas de que tudo continua a passar ao lado das boas intenções e das belas frases, a começar pelos princípios democráticos e a acabar no quem decide o que é o quê, é uma experiência que acompanha cada vez mais o consumidor de comunicação social.
A começar pelo tão apregoado pensamento crítico, que devia ser sempre, em primeiro lugar, exercido sobre o próprio, a grande dificuldade em promovê-lo e em praticá-lo está na complicação que é pensar criteriosamente, mas não menos no pouco interesse que parece existir em exercê-lo sobre si próprio.
Na política, na justiça, na ordem, no ensino, na saúde, enfim, em todas as áreas, as coisas só acontecem no terreno, quando passam da palavra, ou do papel, para a acção transformadora. A lei, quando é aplicada, a sentença, quando é cumprida ou executada, a ordem quando é cumprida, etc..
Podemos passar uma vida a descrever e explicar o modo como as coisas funcionam, mas quando chega o momento de explicar como deviam funcionar, ou não é possível alterar a ordem das coisas, por ser da sua natureza, e não faz sentido sequer pensar em mudar, ou, se é possível, é preciso quem as saiba fazer, quem queira fazê-las e quem as faça.
Uma das constatações mais intrigantes e curiosas é sobre o que se passa com a filosofia, em que se pode ter opiniões diferentes sobre a realidade, argumentar em vários sentidos, criar sistemas racionais, e nada disso alterar o facto de a realidade poder ser diferente disso e de não ser por isso que deixa de ser o que é. 
As coisas serem como são e não como poderiam ou deveriam ter sido é algo de perturbador e frustrante, embora isso também tenha, em muitas situações, aspectos tranquilizadores que nos subtraem responsabilidades.
E, depois, há valores que só são reclamados dos outros, o que passa por ser um princípio dissonante e irracional, no sentido de ser contrário à razão, mas invocar esses valores pode facilitar a perspectiva que mais convém em cada situação. 
Estou a pensar na independência como uma qualidade pessoal, ou na honestidade como uma virtude da maior respeitabilidade, para as quais não há recompensa, ao contrário da subserviência e da obediência, que chegam a ser principescamente compensadas.
Carlos Ricardo Soares


sábado, 8 de julho de 2023

O castelo de Guimarães


Sempre que visito Guimarães, só penso no castelo. 

E já me especializei nas artes de defesa e de ataque. 

Para mim, Guimarães não é nem pode ser outra coisa, pelo menos enquanto não perceberem aquilo que eu acho que é importante. 

Mas ainda não consegui perceber se as pessoas que iam comigo, e que eu procurava impressionar com a minha veia metapsíquica, estavam realmente a admirar a minha inteligência, não de um guia bem informado, mas de alguém que sabia para além das razões da concepção daquela fortificação. Do género: não estou a contar-lhes a história do castelo, estou a contar-lhes a verdade do castelo que, na realidade, se passou pela cabeça de alguém, foi a minha. Ninguém me contou a história do castelo e a história do castelo que li, tinha pouca história do castelo. Mas vi o que vós estais a ver e desafio-vos a explicar por que é que este castelo era inexpugnável. Não se trata de um enigma, é algo que se descobre simplesmente olhando, mas não seríamos capazes de saber simplesmente pensando.

domingo, 2 de julho de 2023

O direito e a fraternidade

Ainda muito cedo se encheram

de esperança

e entraram pela porta grande

do palácio da justiça

mas tiveram de deixar lá fora

o sol radioso da primavera

para ouvirem ler os seus direitos

e sentirem-se animados

a conviver de igual para desigual

sem serem maltratados

e com o respeito que é devido

sem mais terem a exigir

como eles próprios desejam

que o direito e a justiça

sejam praticados

como o proclamaram as revoluções

e as utopias

e o decreta a declaração universal

dos direitos do homem

e todos se disseram entendidos

e sentiram obrigados

mas ainda longe de serem

e de se sentirem

amados

olharam uns para os outros

quase revoltados

por não terem o direito

de ser amados.

 

sábado, 24 de junho de 2023

A soberania das formas sobre os instintos

Aproveitarei para divagar sobre as formas e os instintos.
O prazer, ou a satisfação da escrita, como o modo, o recurso, o instrumento, de concretizar, de preservar e de construir o prazer de ser, de dominar pelo pensamento, pelas ideias e pelo discurso, pela individualidade, pelo estilo, pela voz própria. É como o prazer da música que se produz, enquanto compositor, tanto ou mais do que enquanto instrumentista executante, ou cantor, embora aqui, o prazer possa ter cambiantes mais evidentemente ligados à voz que se tem.
Muitas vezes é um fenómeno de linguagem, independentemente de comunicação e vice-versa, porque o significado, muitas vezes, não é o que está em causa no processo de comunicação, mas o efeito, por mais distorcido ou desajustado, ou inesperado, ou imprevisível, relativamente ao signo, ao símbolo, ao som, ao gesto, à palavra, ao silêncio, presenciados, percebidos, captados.
E este efeito é, antes de mais, um efeito daquele que escreve sobre aquele que escreve.
Tentar negar a individualidade, o eu, o ego, a representação que cada um faz de si próprio, não ajuda a reconhecer a necessidade de dar a cada um o espaço e a liberdade para ser o que é.
Muitas pessoas descobrem que esse espaço e essa liberdade podem ser conquistados através da escrita, ou de outras artes, ou competências. A tal ponto que se identificam sobretudo pelo que escrevem, ou representam, ou fazem, mais do que pelo que têm ou pelo que são.
“Não me perguntes quem sou, ou o que tenho, pergunta-me o que fiz ou o que faço”. Do género, “não estás a falar comigo, estás a falar com o Cristiano Ronaldo”. E se o outro insistisse “não, não, estou a falar contigo, não sei quem é o Cristiano Ronaldo”, até onde poderia ir a conversa?
São raras as pessoas que não precisam de fazer nada, nem de dizer nada, para se sentirem satisfeitas e reconhecidas e valorizadas. A essas basta-lhes existirem. Para essas raras pessoas, sim, existir é um dom, ou antes, uma dádiva. São avassaladoras pelo que possuem, ou pelas suas formas físicas e não há como não ser vassalo desse poder da forma sobre os instintos. Mas não têm mérito, porque não há virtude em ser/ter, e talvez não percebam a virtude de merecer, à qual a maioria, se não se dedica, finge que é devota.
Como nunca perguntam “quem és?”, há quem sinta necessidade de responder, correndo o risco de lhe retorquirem “alguém lhe perguntou alguma coisa?”.
Tudo acontece fora dos subentendidos, mas nada reside fora deles. Seria impensável, por exemplo, que a mãe de Sócrates lhe perguntasse “quem és tu?”. E menos ainda “quem és tu, Sócrates?”. Sócrates que só sabia que nada sabia, não entenderia uma pergunta dessas.
Mas um poeta sabe que as palavras têm aquela soberania das formas sobre os instintos, bastando-lhes existir.