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sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Condenados a escolher

Não estamos condenados a ser livres, estamos condenados a escolher.

A liberdade não é destino, mas coincidência entre o possível e o desejado.

A liberdade não depende apenas da quantidade de opções, mas da adequação da opção disponível ao horizonte de satisfação do sujeito.

A escolha é inevitável, se for possível escolher.

Se só existe X, o sujeito continua condenado a escolher: ou escolhe X, ou escolhe não escolher X. 

A questão é se isso pode ser considerado livre escolha. 

Se X corresponde ao que o sujeito escolheria num campo de possibilidades, por mais amplo que fosse, então escolher X é livre escolha.

            Carlos Ricardo Soares


segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Ao serviço da Humanidade


Não é utopia pensar numa sociologia que supervisionasse com métodos e técnicas científicas o comportamento do "animal mundo", tendo em conta tudo o que se sabe, quer da sua anatomia, quer da sua fisiologia, quer da sua teia neurológica e, sobretudo, da sua sintomatologia, terapêutica e educação comportamental.
Uma sociologia como clínica do “animal mundo”, vestida de bata e estetoscópio, diante de um paciente vastíssimo que é a humanidade em estado febril.
Seria mais do que ciência social, seria uma epistemologia do cuidado sistémico, que não se limita a descrever comportamentos, mas os lê como sintomas de desequilíbrios mais profundos, ecológicos, afetivos, culturais, políticos. Tal como um bom médico não se contenta com a febre e vai buscar a inflamação oculta, essa sociologia investigaria não só o visível, mas os desvios do mundo em sofrimento.
Seria um saber que articula anatomia social (as estruturas, instituições, classes, normas, o esqueleto das sociedades), com fisiologia cultural (os hábitos, os ritmos, os fluxos simbólicos que mantêm o corpo social vivo), com teia neurológica coletiva (os sistemas de informação, de crença, de memórias e de afetos que ligam uns aos outros), com sintomatologia histórica (as crises, os colapsos, as revoltas, os avisos de que algo está fora do lugar), com terapêutica crítica (os projetos de transformação, de reorganização, de restituição do equilíbrio) e com educação comportamental para a cidadania (as práticas de formação para a convivência lúcida e justa).
Uma sociologia que não apenas explica, mas que cuida com lucidez das coisas públicas, do mundo numa perspetiva mundial, tratando-o como um organismo em crise e em potência. E talvez aí a razão da sociologia encontre a sua razão de ser: não apenas ver, não apenas descrever e relatar, mas intervir com propostas de terapêuticas; não apenas constatar, saber, mas avaliar o estado de saúde do animal e procurar regenerar.
Num tempo em que tudo, até a tragédia, é mercantilizado como oportunidade, a sociologia seria uma espécie de consciência, o “deus laico” que cuida de todos enquanto cada um cuida de si; a instância paciente que não julga os impulsos, mas os interpreta, que não governa, mas compreende e, por isso mesmo, sustenta a possibilidade do cuidado. Não como cura mágica, mas como acompanhamento lúcido.
Seria a inteligência voltada para promover e preservar a dignidade coletiva. Um saber como colocar a cultura e o progresso em subordinação, e ao serviço, dos seres humanos e não como fins em si mesmos ou fins a que os humanos se devam sacrificar. Isto seria uma inversão dos valores e uma negação do sentido da ética.
Num mundo em que a pressa substitui o critério e o número faz as vezes da verdade, há uma forma de saber que não grita com o furor e a vertigem das máquinas, que perscruta mais fundo, dentro do próprio movimento, até onde a sonda da razão nos devolve a música da inteligência e da harmonia tão preciosas e tão necessárias a um verdadeiro progresso que é a humanização ética, estética, moral, que não deve ceder à vertigem desenfreada das sociedades industriais que, muitas vezes, instrumentalizam o humano para fins não humanos e contrários aos humanos.
Essa forma de saber pode chamar-se sociologia, não como oráculo, nem para redimir o mundo de ser mundo, mas para compreendê-lo, enquanto ele se move entre ruínas e renascimentos.
Ela pode ler o corpo inteiro da espécie, incluindo os algoritmos, e examinar, auscultar, interpretar. Não para prescrever remédios milagrosos, mas para oferecer uma coisa raríssima, o contexto.
E quando se confunde opinião com dado, urgência com verdade, emoção com diagnóstico, é preciso que ela faça o que poucos querem fazer: medir a febre e, então, talvez, sugira que o mundo não está apenas doente, mas em surto. E que o surto tem história.
Esta razão da sociologia não é idealista, e o mundo não se comove com bons argumentos. A razão, sozinha, não muda o curso da história. Mas, sem razão, nenhuma mudança dura mais do que o instante do medo ou do poder.
Por isso ela insiste, mesmo exausta, mesmo ignorada, mesmo ridicularizada, ela insiste em nomear o que parece normal, porque só nomeando é possível escolher e, só escolhendo, é possível responsabilizar.
E talvez seja essa a verdadeira força, o verdadeiro poder. Num planeta que corre e salta para fora do mapa, ou mesmo sem mapa, uma sociologia que oferece uma bússola, não para indicar para onde ir, mas para sabermos onde estamos. E se soubermos onde estamos, talvez, só talvez, possamos começar a cuidar e a colocar as fórmulas e o heroísmo ao serviço da lucidez.

              Carlos Ricardo Soares


domingo, 2 de novembro de 2025

Literacia financeira nas escolas: educação ou condicionamento?

A literacia financeira é algo que, em teoria, nunca é de mais, como qualquer literacia. Não é por aí que os zelosos promotores desta campanha deixam de ter razão. Mas é por isso mesmo que a nossa desconfiança deve ser total, quer quanto às intenções, quer quanto ao discurso, quer quanto aos meios. A primeira posição de princípio, ou cautela, relativamente a quem nos quer ajudar, entenda-se oferecer vantagens, é procurar saber que interesse têm nisso.

Quanto maior for o interesse de quem nos quer oferecer vantagens maior deve ser o nosso cuidado. A razão é simples, mas, na prática, toda a nossa educação e toda a nossa linguagem é um processo de sedução, de persuasão, de coação, de intercâmbio, de partilha, de interação, em que nada é neutro, em que o interesse está sempre presente e pode ser provocado. Não é apenas nos negócios formais e sinalagmáticos que esse comércio se exerce. Não é apenas nas promessas e nos acenos, ilusórios ou não, que o marketing, essa ciência poderosa, faz o seu caminho.

Pudéssemos nós usar o marketing em nossa defesa como ele é usado para nos atacar. Este é o cerne da questão. O marketing não é uma tentativa de educar e de ensinar seja o que for. É uma prestidigitação que visa fundamentalmente condicionar comportamentos. E isto não é inócuo. Ninguém se daria ao trabalho e à despesa de nos condicionar porque sim. As “literacias para”, todas elas, têm em comum um programa de motivações e de objetivos explícitos e expressos que se respaldam nas razões gerais e incontestáveis que referi acima.

Mas as motivações e objetivos implícitos de um programa, seja de educação, de ensino, ou de marketing, também pelo que já referi, devem ser colocadas como alvo de análise de primeira linha. O que é expresso, ou explícito, até com exuberância, deve servir-nos como sinal de alerta para o que está a ser ocultado. No fundo, o mecanismo de venda e de persuasão é tão natural e tão familiar, que não conseguimos descortinar facilmente razões para não ser assim, até porque nos fazem sentir como beneficiários, reis e senhores da nossa escolha.

Por outro lado, ainda nos podem acusar, se necessário for, de que fomos vítimas da nossa estupidez, ignorância, ganância, ou mesmo astúcia, quando não reserva mental. No fim de contas, não estamos livres do mecanismo de responsabilização injusta, onde o cidadão é culpado por não ter resistido àquilo que foi desenhado para o seduzir.

               Carlos Ricardo Soares