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terça-feira, 27 de agosto de 2024

Valor, preço e utilidade


A Escola, em Portugal, não escapou ao processo de mercantilização dos valores, que é o processo normal e costumeiro que envolve os valores venais a que, mais coisa menos coisa, todos aspiram. Uma excepção talvez seja a dos anacoretas ascéticos isolados do mundo que optam por uma forma de morte que é um sucedâneo de vida, num mundo em que, realmente, não há espírito, nem valores espirituais, mas que, paradoxalmente, eles acreditam haver em algum lugar, ou, como se diz também, algures no céu. 
A renúncia deles, ainda assim, pode ser questionada como uma recusa em participar ativamente.
A própria Escola, desenhada por, e para, elites cultoras do não venal, ou espiritual, que detinham, porém, as vantagens do venal, foi sendo crescentemente crítica da venalidade, na medida em que a não venalidade ganhou ascendente e reclamou para si a primazia dos valores culturais e da sua respeitabilidade. 
Este jogo de cintura conduziu à inversão dos valores: os valores venais só seriam espirituais se tivessem o batismo e a bênção da Escola. A sociedade, porém, ou o mercado (a sociedade é uma grande feira, com mais ou menos fiscais e cobradores) não podia deixar de entrar no jogo, ou nessa bolsa de valores.
Então, o facto de alguém, por exemplo, ser perdulário, ou viver luxuosamente, não devia ser entendido como materialista, mas como desprendido da materialidade, sem apego ao dinheiro e aos bens materiais. 
Quando as coisas se tornam, ou são apenas questões de linguagem, a realidade passa ao lado, porque o importante parece ser a linguagem.
Ainda assim, não nos iludamos com a magia das palavras.
A Escola, os professores, o próprio conhecimento, não podem ficar dependentes, nem eternamente à espera de quem se enamore e se apaixone por eles, ou pelo valor deles, cada vez menos promovido, mas que não tem preço. E aí entram os tais valores venais, o preço em vez do valor, e as relações, ou casamentos (dissolúveis), por interesse. Um pouco à semelhança de «quem não tem cão caça com gato».

                    Carlos Ricardo Soares

domingo, 25 de agosto de 2024

Tesouros e paixões


A força da paixão

Quem a conhece?

Não estou a falar de objetivos

Nem de devaneios

Ou ambição

Diz-me se tens alguma paixão

Diz-me qual é a tua paixão

E talvez te compreenda melhor

Alguém que tem uma paixão

Tende a organizar a sua vida à volta dela

E vai sacrificando tudo por ela

Paixão não é o mesmo que objetivos

As pessoas tendem a organizar a vida

Em função de objetivos convenientes

Ou planos eficientes de realização

De vantagens de sobrevivência

Mas paixão é diferente

Sobrevive-se para ela

É pessoal e pode ser impercetível

Para os outros

Pode ser desastrosa como um vício

Ou uma dependência muito forte

Muitas vidas e muitos destinos

São decididos ou sacrificados a paixões

E não há como lamentar certas paixões

De artistas e de estudiosos

De poetas e sonhadores

O amor ardente dos criadores

Que estão fascinados

Como abelhas obreiras

Com a realização de uma grandeza

Que colocam sempre em primeiro lugar

Porque dá à própria vida

O sentido que almejam dar.


             Carlos Ricardo Soares

sexta-feira, 16 de agosto de 2024

A coisa e "a coisa em si"


O real é uma experiência

De outro mundo

Que faz perder o pé

Quando procuras saber

Como deve ser

O que é.


           Carlos Ricardo Soares

sábado, 10 de agosto de 2024

Leis de acontecer o que aconteceu


As coisas acontecem

Por elas próprias

O tempo passa

Enquanto tento perceber

Porque é que tudo o que faça

Se puder

Só pode alterar a forma

E não a matéria

De acontecer

E chamam a isso

Leis da natureza

Do ser

Mas não acho graça

Não deve ser assim

O nada

Impopular

Vazio do homem


                        Carlos Ricardo Soares

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Aproximações à verdade XXVIII


Hilário: sortudos são os que prescindem de mercado e de público, porque se contentam a si mesmos

Amiga: e há alguém assim?

Hilário: não sei, mas parece que concordas com a minha bem-aventurança

Amiga: estás a colocar uma questão dos diabos porque, se as pessoas se contentassem a si próprias, não se esforçavam tanto para ganhar os mercados e as aprovações dos outros

Hilário: o reconhecimento daquilo que se faz nem sempre acompanha o valor e o mérito daquilo que se faz

Amiga: tu passaste a vida inteira a preparar-te para fazeres o cristo nas argolas e, agora que deixaste as competições, de que é que te serve?

Hilário: eu ainda estou para perceber por que razão investi uma vida numa habilidade que só tem valor como espetáculo, se for bastante espetacular, caso contrário...

Amiga: nunca pensaste que estavas a desenvolver uma arte para teu próprio prazer e realização pessoal, como por exemplo, a poesia, ou a música?

Hilário: em momento algum pensei que passaria o resto da vida a divertir-me com as habilidades adquiridas na alta competição

Amiga: não é coisa que uma pessoa aprenda a fazer com o objetivo de se divertir e de ocupar os tempos livres

Hilário: ao menos, tu tiraste um curso e fizeste sempre tudo pelo prazer de satisfazer a tua curiosidade e de mostrares a ti mesma que eras capaz de algo importante

Amiga: deves estar a brincar, não?

Hilário: o mais importante é a satisfação e os frutos que podes colher daquilo a que te dedicas

Amiga: infelizmente, as pessoas falam muito nesse sentido, sem porem a tónica naquilo que fazem, se gostam ou não, se se sentem realizadas, se se sentem bem, para não dizer felizes.

Hilário: o que me faria feliz, não sei. O que me faz feliz é ter a possibilidade, em cada momento, de procurar e de obter satisfação para as necessidades e para aquilo que devo pensar e fazer

Amiga: também podes encontrar isso num emprego

Hilário: dadas as circunstâncias atuais, talvez tenhas razão. Mas depende muito mais do que são as minhas necessidades do que daquilo que posso fazer para as satisfazer

Amiga: seja como for, o problema de se contentar a si mesmo sem ser através dos outros, pelos outros, é algo enigmático e redutor e apresenta-se como hostil, mesmo que a intenção seja simplesmente prescindir dos outros, como se os aliviasses de um peso que, no fundo, tomas para ti, sem que te agradeçam.

                                  Carlos Ricardo Soares