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quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Frotas de navios mercantes

Será que sabemos alguma coisa, ou tudo aquilo a que chamamos saber e conhecimento é imaginação nossa? Ou, por outra, saber e conhecimento são imaginação e não mais do que isso? Ou, ainda, se assim é, nem por isso toda a imaginação é saber e conhecimento? O que está em causa nestas interrogações é a nossa relação “cognitiva” e “intelectual” com a realidade e é essa que, justa e surpreendentemente, ocorre num domínio, a imaginação, que estamos habituados a ver relegado para fora do conhecimento.

Há as coisas, há a vida. E há o que se diz. E o que se diz sobre as coisas e sobre a vida. E sobre o que se diz. Até à vertigem. Ou exaustão.

O que se diz sobre a vida não substitui, não pode, nem deve substituir ou sobrepor-se à vida.

O que se diz sobre as coisas não substitui, não pode, nem deve substituir ou sobrepor-se às coisas. 

Não tomemos a representação das coisas, a fotografia das coisas, a imagem das coisas, a explicação das coisas, o filme das coisas, o esquema, seja ele qual for, matemático, químico, pictórico, filosófico, teológico, geométrico, pelas coisas.

Muitos de nós vivemos demasiado carregados dessas imagens e demasiado iludidos para percebermos que isso não é o mundo, é estar fora do mundo o mais possível, como se tomássemos a fotografia por aquilo que ela representa e andássemos a transacionar cromos, ou notas de banco, à mesa do café, como se estivéssemos a pilotar frotas de navios mercantes.

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Nesse tempo

Nesse tempo até as prostitutas diziam

Que gostavam do que faziam

Havia mais sinceridade nas sombras de cortar à faca

Do que arte de viver em palcos desmontáveis

Entre as esquinas e as ruas movimentadas

Havia uma cumplicidade de anjos de bronze

Com pombos vadios

Que só era limpa nas palavras do romântico

Do tempo de as coisas serem como são

De as personagens quererem ser humanas

Sem precisarem de outra razão.


quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Sem regresso

Depois de atravessar a nado

As águas geladas do rio neve

Ouviu os corvos a crocitar

Enquanto sobrevoavam

Em círculos

O que ao longe

Parecia uma montanha

Mas ao perto

Era um inimaginável cúmulo

De êmbolos e cambotas

Dínamos e gambiarras

Eixos e jantes de tratores

Tanques de guerra

Pedaços da fuselagem

De aviões militares

Tudo amontoado numa pilha

De ferrugem sobre a carcaça

De um porta aviões

Que ninguém sabe como foi

Ali parar

Durante dez anos não fez mais

Senão inspecionar aquele arranha-céus

De sucata onde o vento fazia música

Que o fazia arrepiar

Mas foram precisos mais dez

Para chegar ao topo desses desperdícios

E se sentar

Avistando então ao fundo o mar

E as cidades dos humanos

Que toda a vida imaginara

Mas sentiu a vertigem terrível

De ser impossível regressar

Daquela altura

Que antevia como sepultura.

sábado, 3 de dezembro de 2022

Ter a dizer

Nada ter senão a dizer

O mundo com tantas fontes

Tantas árvores de fruto

E tantas mesas de pão

Com seus comboios de música

A atravessar oásis sem estação

Os desejos suspensos

De tanta imaginação

Passeios pela abundância

Que cansa de sonhar

A privação de prazer

Mais frustração do que alegria

Com que se aprende a lidar

Nem sempre fará esquecer

Os reinos da fantasia

Em que quero acreditar.

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

Rios e horizontes

Há rios sem margem

Para dúvidas

Horizontes de tal sorte

Que são pontes

Sobre a dificuldade da morte

Tudo o que aprendi

E não sabemos

Do tamanho das dores

Que o tempo semeia

Com tanto amor

Quanto odeia

O que dizemos

Frutos doces e amargos

As saudades

Que temos

Se fossem aves iriam pelos largos

Barcos pelas vertentes

Se fossem luz pelas janelas

Voz pelo brilho das nascentes

Se fossem água iriam pelos olhos

Sem visão

Foram apenas

E é o que são

Almas penadas

Se vissem o dia

Seriam nadas

Levados pela mão vazia.


sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Tempo de viver

Nada há que possa levar

Nenhuma verdade no alforge

Nenhuma fantasia disfarçada

Nenhuma amargura predileta

Nenhuma vontade frustrada

Nem ódio de estimação

Ou alegria

Nada

E não é por prémio

Sorte de paixão

Por castigo ou dever

Que nada levarei

Mas também nada

Nem mulher

Que tanto adorei

Me levará

Porque não irei

Estarei ausente

Da fortaleza

Da cidade morta

Sem me render

Isso eu sei

Baixo os braços

Ao vento do planalto

Que sopra sem perceber

Os passos em sobressalto

Dos escaravelhos

No momento de ceder

Como quando velhos

Sem alternativa acaba

O tempo de viver.

sábado, 12 de novembro de 2022

A mulher dos meus sonhos

A mulher

É a mulher dos meus sonhos

Indefinida e holista

Como nenhuma outra

Existe em muitas

Inúmeras imensas

E como é bom saber isso

Apesar de doloroso

Não há como fingir

Não há como ignorar

As pérolas

O caleidoscópio dos meus olhos

A mulher dos meus sonhos

Em cada uma que passa

Diante da lente natural

Dessa realidade virtual

Como num desfile

De memórias falsas

Mas mais relevantes

Do que as verdadeiras

Não é universal

E tem tanto de sonho
que é mais real
sob as amendoeiras
em flor.



Arte de bem marear

Tudo muda quando me olhas

Pelas estrelas que aprendi

A tomar como bússola

Na solidão do mar 

Sem ti

Tudo se transfigura

E me passa pela cabeça

Poder estar de volta

A um lugar vazio

Aonde vejo chegar

Uma réstia de pássaro

Caído

Por ter parado

No ar

Sobre o paraíso

E me entregasse à justiça

De te desejar

Sem nada mais em mente

Ao ver-te à minha frente

E acreditar.