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terça-feira, 22 de junho de 2021

Não existem condições para o que não acontece

Dir-se-ia que nada está pré-programado, mas que existem condições para as coisas serem. Não existem condições para o que não acontece. E o que acontece, ainda que não saibamos as causas, ou condições, é o que é susceptível de conhecermos, a partir da memória. São factos. Memória. Passado.

A causalidade terá a ver com a nossa relação consciente, em diferido, descontínua, irregular, episódica, variável e nem sempre controlável, com tudo. A nossa consciência permite o nosso conhecimento, que é sempre “reportagem”, memória, desactualizada, daquilo que acontece. Digamos que o conhecimento está para a realidade assim como os factos estão para o devir.

A consciência, ela própria, como facto, parece não existir. Mais lembra o comboio da realidade, ou fluxo, que não para em sítio nenhum e que estamos constantemente a perder.

O passado não é senão memória, não tem lá nada que não seja registo de imagens, sons, etc.. Temos consciência muito esquiva do presente que logo se faz consciência de memória. Até o futuro, não existe senão na memória do que futuramos.

Se não tivéssemos memória, teríamos alguma percepção do tempo? Ou, até, alguma representação da realidade?

A ciência inventou um teatro e uma linguagem para representar a realidade, num tempo em que não havia fotografia nem filmes e isso trouxe as vantagens que são conhecidas.

Assim como a literatura e o teatro e as artes, em geral, fixavam ou congelavam a realidade no presente e a filosofia procurava dar-se conta das realidades e suas razões, significando-as e explicando-as, as ciências criaram um método “intemporal” de observação e de consciência da realidade, enquanto fenómeno temporal.

No que respeita ao cérebro, os incríveis avanços revelam-nos o que acontece, em termos de física de partículas, por ex., quando percepcionamos um objecto, movemos os olhos, voluntaria ou involuntariamente, reconhecemos esse objecto, pensamos sobre ele, decidimos tocá-lo e fazemos o movimento e registamos a memória disso ou, simplesmente, ignoramos, etc..

Os neurocientistas e os cientistas da física de partículas, ou do que quer que constitua a vida, ao serem capazes de explicar como é que a matéria, ou o “plástico” que existia no momento do big-bang se foi reorganizando ao ponto de se tornar sensível (homeostático?) e de ganhar um critério de reorganização que já parece uma racionalidade diferenciadora entre dois ou mais termos, e como evoluiu, por selecção natural, para formas de reorganização, nomeadamente nervosa, capazes de memória e de sentimento e de consciência, etc., acabam por mostrar que a ideia de programa é ela própria a ideia das condições que existem para as coisas serem.

E, neste momento, creio estarem criadas as condições para a filosofia ultrapassar algumas das discussões clássicas e, partindo de novos pressupostos, se interrogar sobre a realidade dos problemas e das soluções que eles devem ter.

quarta-feira, 16 de junho de 2021

A natureza não erra?

O maior erro humano, desde sempre, que sobreleva, hoje não menos do que antigamente, sobre todos os erros (não esqueçamos que errar é humano) é que não há erro humano, o que há é homens que erram. Quando alguém erra, não é a humanidade que erra. 

A humanidade nunca erra. Porquê? O que é a humanidade? 

Só os indivíduos é que erram. 

Vai ser revolucionário admitir que, uma vez que as teorias da verdade, do conhecimento, doutrinas da salvação, da felicidade e do prazer, da sabedoria e do estoicismo, não foram capazes de resolver os problemas de sempre, nem, vistas bem as coisas, identificar esses problemas, vai ser revolucionário admitir que, dizia, a aposta deve ser na teoria do erro, em sentido amplo, de modo a incluir a mentira, a falsidade, enfim, todos os vícios humanos, e não apenas a condição de ignorância e a estupidez e, tentar substituir ou, talvez, converter as teorias do conhecimento em teorias da ignorância e do erro, ou do desconhecimento. Fará toda a diferença. 

Talvez começássemos a compreender que as razões pelas quais se busca ou deixa de buscar o conhecimento e a formação e os saberes não são as melhores razões mas aquelas que, desde sempre, se apresentam como tais, ao colocarem o homem contra o homem e a humanidade contra a humanidade. 

Actualmente, já há sinais, que muitos percebem como enigmáticos, de reconhecimento de que o homem, individualmente considerado, é o único e verdadeiro centro de conhecimento, de sentido, de dignidade e de valor. 

Nada, nem ninguém, transcende este imperativo. 

Aliás, é por ser transcendente que este imperativo demora tanto a ser entendido e continua a ser confundido com o “inimigo”, na concepção do homem lobo do homem. Qualquer indivíduo que se atribua uma dignidade e direitos naturais que não esteja disposto a atribuir e não atribua de facto aos outros, quaisquer que sejam as determinações sociais relativamente a isso, não poderá deixar de admitir que os outros se atribuam a si mesmos nessa medida. Mas isto é um erro. E é para nos defendermos dos indivíduos que erram que a civilização faz sentido e o conhecimento é tão importante.

segunda-feira, 7 de junho de 2021

Não conhecemos nada que não tenha acontecido

A ciência não é apenas uma maquinaria de previsão do futuro a partir do presente, mas também pode ser de adivinhação do passado, ou retrovisão. Ou seja, não apenas permite antever os efeitos a partir das causas, como determinar estas a partir dos efeitos.
Há, porém, um problema sério que não ganhamos nada em ignorar: tudo o que aconteceu não podia ter acontecido de outro modo. Quando buscamos causas é sempre do que acontece e nunca do que poderia, ou poderá, acontecer. Não há causas do que não acontece.
O determinismo, neste aspecto da questão, é irrefutável, ainda que não sejamos capazes de explicar todas as causas de um facto.
Aproveito para introduzir aqui o problema do livre-arbítrio, que é fascinante.
Se tudo o que acontece é determinado por causas e se não conhecemos nada que não tenha acontecido, onde é que vamos situar o livre-arbítrio?
Já li bastantes coisas à volta do assunto, umas mais confusas do que outras, mas ainda não vi ninguém a colocar a questão desta forma.

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Os professores

A propósito de um texto publicado no blogue, http://dererummundi.blogspot.com/2021/05/acordai-professores-que-dormis.html , comentei o seguinte.

Os professores não precisam de acordar, precisam de descansar e de dormir, mas não os deixam. 

Não precisam de mais alertas, porque já estão em alerta permanente há demasiado tempo.

Os professores, mesmo quando não há guerras declaradas com espingardas e granadas, ou incêndios e sirenes, assumem o papel de militares, num enquadramento de combate e luta, sem quartel, em todas as torres de vigia e guaritas, que se possam imaginar, com carregadores de balas de pólvora seca, autênticos placebos, que escrupulosamente tomam como princípios activos contra inimigos muito mais poderosos do que eles que, de dia e de noite, a todo o momento, lhes infligem derrotas e que são os mesmos que lhes fornecem os placebos e a pólvora seca e lhes dão instrução rigorosa de como a usarem, ao toque do clarim, ou da caixa, e que aparecem, estrategicamente, nas horas mortas, para os atormentarem com a prova de os apanharem a dormir.

Os que se fazem fortes, porque o são, ou acreditam nisso, e decidem ir à luta, como os touros, ou os guerreiros, por valentia e grandeza de carácter, como manda o hino, só acordam se tiverem a sorte de ir parar a algum hospital que os reanime.

Ninguém aguenta muito tempo uma guerra interminável e sabotada.

O essencial não é lutar, é identificar os inimigos, ou os adversários, avaliar o seu poder de fogo e adoptar estratégias de ataque e de defesa. 

Mas os professores não recebem preparação para isso.


segunda-feira, 31 de maio de 2021

Livre-arbítrio

Hilário: responde-me sem evasivas

Amiga: não sou de evasivas

Hilário: perguntei-te alguma coisa?

Amiga: agora perguntaste se me tinhas perguntado

Hilário: o livre-arbítrio não existe?

Amiga: se as nossas acções e decisões são efeito de partículas que atravessam o corpo e o cérebro de acordo com as leis da física, que achas?

Hilário: aparentemente são essas partículas que agem e decidem e não nós

Amiga: eu e tu e o universo somos partículas em movimento

Hilário: e as nossas palavras também

Amiga: e os pensamentos e a memória

Hilário: até a anti-matéria e o conhecimento da matéria

Amiga: se calhar o livre-arbítrio só existe para algumas coisas

Hilário: não somos livres de dar verdade a uma falsidade

Amiga: nem és livre de fazer com que esta conversa nunca tenha existido

Hilário: mas foste livre de dizer essas palavras em vez de outras

Amiga: como poderíamos prová-lo?

Hilário: em qualquer caso, lá estariam as partículas a reivindicar que tinham sido elas

Amiga: ninguém nos pode culpar de nada

Hilário: ou seja, as partículas é que têm a culpa

Amiga: têm tudo, a culpa e a inocência

Hilário: só não têm livre-arbítrio

Amiga: e nós só temos partículas

quinta-feira, 27 de maio de 2021

O controlo das mentes é possível?

O que me preocupa, sobretudo, é que haja possibilidade de controlar a mente das crianças e, em geral, das pessoas sujeitas a processos de educação e de aprendizagens. 
O que elas aprendem, ou não, é questão de somenos, quando penso na hipótese de ser possível controlar as mentes. 
Se isto for possível, temos um gravíssimo problema para resolver. Haveremos, então, de admitir que é um problema tão antigo como a humanidade e, talvez, o maior de todos. 
A liberdade, que é algo tão difícil de conseguir para a maioria, está cada vez mais ameaçada pelos processos de delegação da decisão da melhor escolha. 
A IA é a melhor ilusão que nos podiam vender de que estamos mais bem representados do que nós próprios. 
Mas ainda não aprendemos sequer a primeira lição: uma pessoa é insubstituível para si própria, mas não, necessariamente, para os outros. Isto faz dela o critério irredutível de tudo, o qual, se não for explicitamente, ou positivamente legislado, dá azo às maiores atrocidades e aos ódios mais insanáveis, como temos verificado na história humana. 
Nenhum robot tem este problema de só ter de aceitar como dever o que, igualmente, e por idêntica razão, for dever para os outros.

quarta-feira, 19 de maio de 2021

Cultura do amesquinhamento alheio

A minha percepção de português, nado e criado, e educado em Portugal, e exercendo nos tribunais e nas melhores escolas do país, é que a cultura portuguesa, seja o lado ou a perspectiva pela qual queiramos vê-la, é a cultura do amesquinhamento alheio. E quando assume tons de compadecimento e de solidariedade é porque já se foi vítima e se percebe o problema. 

Mas tem sido prática assumida e aceite, desde que me lembro (hoje está muito melhor), e até valorizada, a cultura de chacota e atrofiamento, sempre para penalizar e desvalorizar, até nas agressões escolares institucionalizadas como castigos pelos erros, bem patente na literatura portuguesa, no linguajar português, nos apelidos e alcunhas dos portugueses, etc.. E, se formos aos conselhos de turma, embora nas actas se evite quase sempre cair nesse erro, a adjectivação usada para qualificar e classificar alunos não está isenta de críticas, para ser brando. 

Um adjectivo, em determinados contextos, pode deixar de ser neutro e até passar a ser um problema de ética, quando não jurídico. Sinceramente, penso que só há um caminho a seguir para se sair desta choldraboldra: legislação e práticas educativas que eduquem para a não resignação a uma realidade "violenta" cujas raízes não é difícil de localizar na história. 

Ainda há quem acredite e agite a bandeira da meritocracia, ou seja, da aristocracia. 

Temos de ter em mente o iluminismo e o marxismo para percebermos quanto ainda precisamos de reconhecer face humana e direitos do homem num mundo que faz tudo, desde sempre, exceptuando os que têm lutado contra isso, para triturar o homem, e desvalorizá-lo, para o mercadejar ao melhor preço.

quinta-feira, 13 de maio de 2021

Língua prodigiosa

De vez em quando, e ultimamente cada vez mais, entre afazeres e actividades, dou comigo a tomar sentido, pela primeira vez, em que a minha língua me fala mais a mim, desde criança, do que eu a ela, e só muito tarde comecei a reparar quão carregada de cultura, de significados e de sentidos, a minha fala e escrita e leitura andavam e como me sabe bem dizê-lo agora.
Passei a perceber que a língua, só por si, nos dá a filosofia e a ciência, até das perguntas e das respostas nunca antes feitas. 

Comecei a ver, numa acepção muito especial de sentir, que, além dos sentidos do sistema sensorial, visão, audição, sensações corporais, paladar, olfacto, temos outros sentidos mais internos, que trabalham no silêncio e no escuro, com que sentimos dores, alegrias, entusiasmos e tristezas, paixão, saudade, amor e ódio, etc., e passamos a vida a dar sentido, aos sentimentos, ao que sentimos e ao que pensamos, porque pensamos o que sentimos, mas também sentimos, muitas vezes o que pensamos.
E quando me ponho a pensar e a falar das minhas descobertas, e sentir em todos os sentidos é uma delas, é com a sensação, senão com a certeza, de que quando se fala ou escreve sobre algo, já estava tudo na língua.