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sábado, 20 de janeiro de 2024

O lado de fora e o lado de dentro das grades


Um fado demencial

cantado ao ritmo metalúrgico

de guitarras enlouquecidas

por lagartas de blindados

numa invasão

podia ser evasão

mas grades intangíveis

só têm um lado

o da prisão

o lado de dentro.


Carlos Ricardo Soares

sábado, 13 de janeiro de 2024

Deus não fala

Aquele é um lugar de silêncio

Deus não fala

a possíveis perguntas

todas as respostas estão dadas

em grandes abstrações

na semiobscuridade

os visitantes ajoelham

diante do crucificado

ainda antes de confessarem

a sua humilde condição de pecadores

contritos

de mostrarem arrependimento

e de pedirem perdão

sabem que estão absolvidos

pela lei do amor

antes de serem julgados

pelo supremo juiz

infinitamente bom

misericordioso e abstrato

em troca de um propósito firme

de emenda

e de penitência orando

serão redimidos

pela prática da virtude

e pela fé na adoração

e com o conforto que sentem

do dever cumprido

levantam-se e saem

para o bulício exterior

com a luz

a bater-lhes nos olhos

lembram da realidade da vida

e do que há a fazer.


Carlos Ricardo Soares

domingo, 7 de janeiro de 2024

Absolutamente

São demasiados rios

para tão poucas margens de erro

demasiadas tempestades

para tão frágeis pontes

insustentáveis pontos

de vista alegre

inconsistentes margens

na fluidez

das miragens

da solidão

qualquer coisa de

absolutamente.


Carlos Ricardo Soares

sábado, 30 de dezembro de 2023

De ti

Havia a rua

quase no fim

o aqueduto

à esquerda

pelo botânico

passo a passo

se me esperasses

no jardim

de plantas exóticas

de ultramares só meus

intermináveis enfim

sem cansaço

ao adeus

os meus olhos erguiam

árvores de respiração

da formosura que vi

tudo me lembras

e tudo me lembra

de ti.


Carlos Ricardo Soares

 

sábado, 9 de dezembro de 2023

Se não podes lutar, nem fugir, resta o SOS

Perturbador e desmoralizante é percebermos que para onde quer que fujamos, para onde quer que dirijamos as nossas queixas, lá está mais um partido, ou sindicato, ou ordem, ou exército (angariador de angustiados e perseguidos, a firmar contrato com uma máfia certificada pela democracia, ou por outra merda qualquer, para expatriados à força) a alistar-nos nas suas falanges. 
Foges de um partido, entregas-te nos braços de outro. 
Foges dos partidos entregas-te nos braços dos bancos e dos sindicatos. 
Tens de vender o que vales e há sempre uma missão de rua, caridosa, que aceita os teus despojos e a tua revolta, se a tiveres, para lhe atribuir um valor simbólico. 
Queixamo-nos de que as instituições falharam e nos traíram, e hoje sabemos que o fazem impunemente, mas na realidade nós nunca fizemos qualquer acordo com elas, caímos nas mãos delas e foram elas que prometeram, umas às outras (nem foi a nós) e ao mundo e aos melhores deuses do olimpo, fazer por nós algo que, sinceramente, nunca acreditamos que quisessem fazer. 
Mas como vinculá-las e obrigá-las a cumprir as suas promessas?

sábado, 2 de dezembro de 2023

Saia Sete-Estrelo

Se houvesse outro azul

outro mar outro céu

se as palavras dissessem por mim

e eu só as ouvisse

e logo entendesse tudo

se não fosse eu a dizer por palavras

que a mim mesmo digo

ainda assim

a tua saia de sete-estrelo

seria inconfundível ao crepúsculo

mas é muita sorte descrevermos

aquilo que ambos vemos

e pensarmos que nos entendemos

porque realmente

não se trata de um jogo.


Carlos Ricardo Soares

domingo, 26 de novembro de 2023

O presente é a única forma de estar no tempo

O presente é a única forma

de estar no futuro

e no passado

é a única forma de estar

no tempo

aqui

ou em qualquer lado

enquanto me distraio

com o diferido

sou ultrapassado

por ter vivido

numa lua cheia.


Carlos Ricardo Soares

terça-feira, 21 de novembro de 2023

Castro Laboreiro

Por Castro Laboreiro

um intruso

que caminha

milhares de anos

até chegar aqui

ao refúgio dos lobos

que me seguem

e já os pressenti

na sombra dos carvalhais

pelos bosques

tropeço em calhaus

no mato molhado almejo

por vales e corgas

ao fundo um prado

batido pelo sol

inspiro o ar almiscarado

e lá no alto azul

com asas colossais

águias dão voltas

tão suaves

que nem parecem reais

como este riacho

a cortar a passagem

e mais abaixo defronte

de bela arcada uma ponte

de pedra tão antiga

que parece segura

de sempre ter estado ali

erguida

sobre a verdura espessa

que abriga lontras e rãs

e o mesmo se diga

de árvores tombadas

no ervaçal de hortelãs

donde salta em alvoroço

natural

um corço assustado

como se fugisse

de um caçador feudal

fico arrepiado

com tal beleza

que nem penso

que outras passaram

afinal

onde está aquela ponte

outras pontes desabaram.


Carlos Ricardo Soares