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segunda-feira, 13 de junho de 2022

A felicidade

A felicidade. O que se entende por felicidade? Bem-estar, satisfação?
O conceito de felicidade tende a ser referido a situações objectivas que, raramente, ou nunca, serão atingidas e, se o forem logo confirmam que a felicidade não é intrínseca a situações particulares da fortuna e do mundo, como se não houvesse situações susceptíveis de dar felicidade, porque esta não existe fora do indivíduo. O que me torna feliz, provavelmente, não tornaria felizes os outros e, hipoteticamente, até poderia torná-los infelizes. Por outro lado, a minha felicidade não está livre de, mais tarde, ser fonte de infelicidade. 

O conceito de felicidade, todavia, e por ser assim tão subjectivamente condicionado e determinado, é de inestimável utilidade para tentarmos compreender a natureza humana e encontrar em tudo o que é acto humano esse sentido da felicidade. 

A tese que defendo é que tudo o que é acto humano é racional e implica uma escolha que é a melhor (todo o acto é individual). Do que sei sobre o ser biológico do homem, nomeadamente dos processos homeostáticos, não só a racionalidade é um determinismo, como a escolha é inelutável, um imperativo, diria, natural. A felicidade é o critério. Não há outro. É um fim em si mesma. Não é instrumental. Instrumental é tudo o que for susceptível de realizar a melhor escolha. 

A cultura humana é determinada, em todos os seus aspectos, por um princípio que eu designo, num trabalho que tenho elaborado sobre Ser Humano, por princípio da felicidade, como princípio normativo de todos os outros princípios.
A minha argumentação vai no sentido de que a cultura é a manifestação de um dever-ser que é um ter-de-ser (da natureza). A inversa não é verdadeira, quero dizer, o ter-de-ser da natureza não é manifestação de um dever-ser, excepto no caso da cultura.
Qualquer texto serve para tentarmos sustentar a tese que defendo. Qualquer situação humana também. 

A esperança está no reconhecimento social e institucional dos mecanismos biológicos egoísticos (da felicidade) e na gestão e disponibilização de quadros de possibilidades de escolha que não impliquem que a melhor escolha não seja boa.


domingo, 5 de junho de 2022

Liberalismo utópico

As ideias de democratizar a sociedade, democratizar a escola, democratizar a cultura, democratizar a boa vida, democratizar a felicidade, aparecem frequentemente associadas, e não da forma mais correta, à ideia de que a sociedade, a escola, enfim, tudo, deve seguir um modelo liberal, muito liberal, muito individualista e funcionar sem paternalismos, baseado na autonomia do indivíduo e na utopia da liberdade total.
Associar a ideia de democracia a esta utopia de liberdade é um grande passo para ignorar o sentido e confundir ambas. Democratizar só faz sentido se significar tornar democrático, e tornar ou ser democrático está muito longe daquela utopia liberal.
Aliás, aquela utopia liberal choca de modo irreconciliável com a democracia e os modos democráticos de gestão e resolução de conflitos e de problemas sociopolíticos e institucionais.
Se quiséssemos ser antipáticos, sem deixarmos de ser democráticos, diríamos que, mais frequentemente do que gostaríamos, constatamos a total incapacidade das escolas para promover aprendizagens que despertem e fomentem o espírito crítico e a hermenêutica. Isto é visto como algo estratosférico, para não dizer exosférico.
Os elevados níveis de especialização requeridos por cada área de análise crítica e fundamentada vão sendo atingidos por um reduzido número de especialistas que só se entendem uns aos outros e, às vezes, só a si mesmos.
Ora, a maioria das pessoas não aspira a uma vida de solilóquios ou de intermináveis discussões consigo mesmo embora possa estar a falar para as paredes, que até têm ouvidos.

 Carlos Ricardo Soares

quinta-feira, 2 de junho de 2022

Prisioneiros

Pedaços bocados

Fragmentos despojados

Retiros passados

Passos trocados

Regressos impossíveis

Veredas desconhecidas

Sendas armadilhadas

Traçados dos diabos

Remotos

Nomes de descobertas

Induzidas por pioneiros mágicos

Alucinados pela esperança

Dissoluta

Mais do que pela jazida sabedoria

Nómadas destroçados

Sem quartel

Prisioneiros

De alegrias poucas

E das loucas

Degradações

Sementes de violência

Desfazem-se

Desfazem-nos

Desfazem-te

Desfazem.

sábado, 21 de maio de 2022

Estradas de metafísica

Ao fim de umas horas a pedalar

Por estradas de metafísica

Com matilhas de cães às costas

Olhei para trás e já não conseguia lembrar

Nenhum dos problemas de dogmática ético-jurídica

Com que muitos reis não se depararam

Por possuírem grandes castelos

 

Como se acabasse de me reencontrar

A caminho do sol e da liberdade

E em vez de pensar no xadrez dos anjos

Que me não dava fome

Nem de comer

Nem sombra

Onde viver liricamente

Como sempre sonhei

Uma primitiva sensação

De estomacal entendimento do mundo

De todos os pensamentos confluírem

Numa harmonia marítima libidinosa

Abocanhando pedaços de lagosta frita

Adornados de algas profanas

À vista de especiosos vinhos

Em horizonte de searas saudosas

Açorda alentejana

Fumegando desejos de planície

Inimagináveis

Em alto mar

Como tudo o que o vento levou.


sábado, 14 de maio de 2022

Salvar o mundo

Pensavam que era lixo

E varreram tudo

Mas eram letras dispostas de uma certa forma

Que poderia salvar o mundo

Porque a forma pode ser importante


domingo, 8 de maio de 2022

Neutrões

Os neutrões não escapam

À carga eléctrica

E acabam fardados

A mirarem-se ao espelho

Dos protões

Tão sossegados finalmente

Por se sentirem realizados

Por satisfazerem os requisitos

Por não pertencerem a si próprios

Senão nessa alienação

De serem convertidos.


quinta-feira, 28 de abril de 2022

A memória que amamos

Como dizer o que não sabemos

Pensar o que ignoramos

Contar o que não passamos

Sem ser em romance

Do que guardamos

Que sendo saga nossa

Ou não sendo a nossa

Gostávamos que fosse

Porque nenhuma paisagem substitui

A memória que amamos

Dos sonhos

Do que acreditávamos ser

Maior que o mar

E mais belo do que se pode contar

Nos roteiros da história dos outros

Na saudade de algum momento

Do que é possível desejar

Nos mapas

Outrora para nós legíveis

E agora cada vez mais desbotados

Embora muito mais inteligíveis.

 

terça-feira, 26 de abril de 2022

A vida é isso

Um problema subsiste na nossa cultura que, mais ou menos tacitamente, opõe artes e humanidades a ciências, não tanto porque umas contestem as outras, mas sobretudo porque umas veem as outras numa perspectiva não suficientemente compreensiva, ou mesmo redutora, para já não falar dos pruridos de estatuto ou dos preconceitos de ambos os lados, como se o que estivesse em causa fosse um critério de validade/verdade, independentemente de qualquer perspectiva ou critério de valor.

As coisas apresentam-se, normalmente, ou tradicionalmente, como se houvesse áreas culturais, discursivas, retóricas, expressivas, representativas, performativas, estéticas, lúdicas, artísticas, linguísticas, literárias, poéticas, imagéticas, icónicas, musicais, histriónicas, audio-visuais..., éticas, morais, religiosas, jurídicas, económicas..., claramente delimitadas das áreas do pão-pão, queijo-queijo, da análise quantitativa da realidade física e química medida e mensurável e que é praticamente toda a realidade, incluindo a referida anteriormente. A aplicação do método científico, aliás, não está limitada às realidades físicas stricto sensu e as ciências sociais e humanas são exemplo disso. Ou seja, tudo o que é cultura (arte, expressão, conduta, comportamento, acção, movimento, som, conhecimento, significado, comunicação, norma, crença...) está sob a alçada da ciência, do método científico, incluindo Deus.

Mas não pode ser reduzida a isso e quem tentar fazê-lo incorre em erro crasso, até aos olhos do mais ignaro.

Em certo sentido, a ciência também não escapa à alçada de Deus e, em geral, de todas as manifestações de cultura. O problema não é simplesmente um problema de rivalidade entre a ciência e as artes, religiões, políticas, ideologias, sistemas de adaptação e de integração da realidade social e do próprio modo de hierarquização social dos valores morais e patrimoniais.

O problema é fundamentalmente de ordem existencial, ou, se quisermos, de ordem moral, do indivíduo como última e irredutível instância do valor, dos valores, mesmo quando adopta e segue e se identifica e se conforma e respeita e cultua esses valores.

Assim, o problema não está na ciência ser ciência, ou na arte ser arte, mas no cientista e no artista serem indivíduos, humanos, personalizados, únicos, com uma história e uma representação individual das experiências e um sentimento e mundivisão próprias. Nestas, a própria ciência e artes mais não são do que experiências, entre outras.

O problema existencial é o problema do que fazer com aquilo que sabemos, ou julgamos saber. E este problema, se não é insolúvel, é, pelo menos, o verdadeiro e único problema da vida de cada um, ou seja, a vida é isso.