Blogs Portugal

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Dar certo

Não digas que nada dá certo

Se com esta certeza nada podes

E se puderes

O mais certo é não o ser.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

O dinheiro do diabo

As árvores não resistem mais
mas não é nisso que eu penso
já fui inocente como a pomba
e pacífico como o ramo da oliveira
voava como só o vento voa
sobre o mar
subia as montanhas
sempre até aos cumes
sem vertigens
e penetrava nas profundezas
sem medo
da escuridão
porque o mundo era o único lugar
que não trocaria pelo céu
que muitos diziam querer trocar
e não faltou quem fechasse negócio
e ficasse com o dinheiro
do diabo.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

O modo como o objecto molda o sujeito

O modo como o objecto molda o sujeito e estrutura os seus processos de percepção, cognição, valoração, escolha, comunicação, convenção, negociação, é um modo em que o sujeito é quem tem o papel de ser moldado (ainda que isso não corresponda sempre a deixar-se moldar, ou não, ou não suponha a intenção, consciência, vontade de ser moldado).
O objecto não desempenha nenhuma actividade, nenhum papel, ou intencionalidade de moldar, influenciar, condicionar, o sujeito.
Estou a falar dos objectos físicos, não culturais e não biológicos, que estão no nosso ambiente.
Quanto aos objectos culturais e biológicos que interagem com o sujeito, a situação é diferente.
Desde os casos em que a interacção dos objectos culturais ou biológicos é mera interacção, por exemplo acidental, ocasional, não dirigida a “atingir” um certo efeito no sujeito, mas que efectivamente interfere e tem efeitos, até aos casos em que essa interacção é propositada e assumidamente, intencionalmente, dirigida a produzir efeitos no sujeito, o objecto molda o sujeito de inúmeros modos, muitos dos quais não estavam previstos e sem que o sujeito tenha o poder ou a liberdade de lhes escapar ou subtrair.

domingo, 30 de janeiro de 2022

Subjectivo/Objectivo

O desfasamento entre o subjectivo, enquanto operador, pensante, juiz, ainda que moldado de inúmeros modos pelo mundo, sem disso ter consciência, e o objectivo, positivo, normativo geral e abstracto, imperativo impositivo, em suma, o desfasamento entre o dever-ser individual, pessoal, moral e o dever-ser heterónomo, social, ético-jurídico, é uma dinâmica viva, social, crítica, problemática, de equilíbrio instável, em conflito de interesses sempre iminente.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

A arte e a crítica (da arte)

Ninguém critica a pedra por ser o que é, ou a nuvem, ou o mar. Ninguém faz pensamento crítico das aves ou dos peixes. Ninguém tem sentido crítico das coisas que não são obra humana. As ciências da natureza, a física e a química e a mineralogia e a biologia...não têm uma palavra crítica sobre as coisas que estudam.

A crítica, o pensamento crítico, é sobre o humano cultural, sobre a produção cultural humana, a acção, incluindo a acção de manifestar pensamentos e ideias e sentimentos.

Mas a crítica também pode ser exercida, por exemplo, sobre os deuses, ou sobre Deus, por aqueles que acreditam na sua autoria de algo, ou de tudo.

A crítica é, assim, uma função, ou faculdade humana muito curiosa.

E é, das acções humanas, a que está, talvez, mais sujeita a crítica.

Não obstante, as obras de arte, que tanta crítica suscitam, em si mesmas, enquanto meras obras, não me parece que forneçam razões para serem criticadas. Se o são, talvez não seja por serem obras de arte, mas por aquilo que se diz delas, ou que elas dizem.

sábado, 22 de janeiro de 2022

Longe de tudo


Muito longe de tudo

as pessoas sentaram-se numas pedras

e alguém lembrou que ali tinha sido o lugar

de uma fonte medicinal 

à sombra

ninguém estava com vontade de falar

todos infelizes por não poderem ouvir

senão um canto cansado

de pássaros a carpir

alguém falou em rebanhos

mas estava a sonhar

e muitos dos que ali estavam

fecharam os olhos

a olhar para dentro 

de um lugar

muito longe

de tudo.


quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Linguagem e comunicação

Pôs-se a publicar coisas
que só deviam ser entendidas
por eles os dois
mas que todos podiam ler
e entender como quisessem
que ninguém iria saber
o que estava a escrever
de infinitos modos
mas privados todos.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Alcateias a uivar

Avistamos finalmente

Com grande emoção

Uma águia cujo voo culminou

No penhasco sobranceiro

A um lugarejo muito escondido

A quilómetros de distância

Aonde já não chegaríamos

Nos próximos dias

Quase ao cair da noite

Aquele avistamento era algo

Em que não deixávamos de pensar

Todas as nossas ideias eram acerca

De como lá chegar

Ao mesmo tempo que suspeitávamos

De muitas incógnitas

Do que nos esperava

Porque não sabíamos nada acerca

Daquele lugar

Nem do sítio onde estávamos

Nem dos sítios por onde já tínhamos passado

Nunca nos cruzamos com alguém

Que nos pudesse contar

Onde encontraríamos uma casa

E quão longe estávamos de tudo

No escuro da noite

Um de nós começou a chorar

Primeiro uma lágrima silenciosa

Depois num incontrolável soluçar

Audível ao longe

Em ecos lancinantes de alcateias

Que em sobressalto

Se puseram a uivar.


Carlos Ricardo Soares