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segunda-feira, 8 de dezembro de 2025

A Arte de Ser Eu

A arte nasce sempre de uma exigência. Não é apenas expressão, nem apenas impulso, nem apenas desejo. A arte é uma tensão para a forma, uma forma que ainda não existe, mas que já pede, já chama, já exige ser encontrada. O artista não cria o que quer. Cria o que a obra exige. Há um dever‑ser na arte: um dever‑ser estético, interno, silencioso, inevitável. A obra pede coerência, pede ritmo, pede unidade, pede acabamento. Pede verdade.
A arte é o lugar onde a liberdade se submete à forma, onde o possível se organiza segundo uma necessidade interna, onde o gesto se curva à exigência do que ainda não existe, mas já é lei. 
A arte é dever‑ser.
Mas se a arte é orientada pelo dever‑ser estético, o eu não é orientado por nenhum dever‑ser. O eu não é forma. O eu não é obra. O eu não é exigência. 
O eu é origem. O eu é o lugar onde a forma ainda não se decidiu, onde a possibilidade ainda respira, onde o futuro ainda não tem contorno. 
O eu não é aquilo que deve ser. O eu é aquilo que pode ser. É potência, não é destino. É abertura, não é estrutura. É margem, não é centro. É horizonte, não é figura.
O eu é o espaço onde a liberdade ainda não se tornou forma, mas pode vir a tornar-se.
À luz da Lei das Escolhas, cujo ensaio estou a concluir, o eu não é substância, nem essência, nem identidade fixa.
É um campo de possibilidades. Aquilo que pode ser escolhido e aquilo que pode ser recusado: uma plasticidade, uma margem de variação, uma ecologia de alternativas, uma abertura ao possível, uma obra inacabada que não tem dever‑ser, mas poder‑ser.
O eu não tem teleologia, nem forma prévia. Não tem exigência estética interna. É o lugar onde a escolha acontece.
Podemos dizer, então, que a arte é forma e o eu é possibilidade; a arte tem dever‑ser e o eu tem poder‑ser; a arte exige e o eu escolhe; a arte tende para a unidade e o eu tende para a pluralidade; a arte quer acabamento e o eu quer horizonte; a arte é obra e o eu é autor; a arte é aquilo que se faz e o eu é aquele que pode fazer, ou não fazer; a arte é o resultado e o eu é a fonte.
Quando dizemos “a arte de ser eu”, estamos a juntar duas ordens diferentes: a ordem estética (forma) e a ordem ética (escolha). A arte de ser eu não é estética, é ética. Não é forma, é liberdade. Não é dever‑ser, é poder‑ser.
A arte de ser eu é a tentativa de dar forma à liberdade, sem transformar a liberdade em forma fixa. É a tentativa de escolher sem se aprisionar na escolha. É a tentativa de viver sem se reduzir ao vivido.
A arte de ser eu é a obra mais difícil, porque é a única obra que nunca se completa.
O eu é uma obra aberta, não no sentido estético, mas no sentido existencial. O eu é o que se lembra, o que imagina, o que deseja, o que teme, o que escolhe, o que recusa, o que se torna.
O eu é uma obra que se escreve enquanto se vive. Uma obra que não tem rascunho, não tem versão final, não tem edição definitiva.
A arte de ser eu é a arte de viver com a consciência de que cada gesto é escolha e cada escolha é forma e cada forma é provisória.
Se a arte é orientada pelo dever‑ser estético, o eu é orientado pela liberdade de escolher a forma. A arte procura coerência. O eu procura possibilidade. A arte quer acabamento. 
O eu quer horizonte.
A arte é forma. O eu é liberdade. 
E é por isso que a arte de ser eu é a mais humana das artes. Porque é a única em que a forma nunca se impõe, e a única em que a liberdade nunca se completa.
O eu é a obra que nunca termina e é precisamente por isso que vale a pena ser feita.

              Carlos Ricardo Soares