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quarta-feira, 28 de maio de 2025

Primum vivere, deinde philosophari


Quando um operário fabril, presidente de junta de freguesia, para criticar e diminuir um adversário político, disse “é um filósofo”, eu, que não me canso de tentar compreender o que é um filósofo, e que tenho grande apreço pelos filósofos, fiquei a pensar em qual seria a representação negativa que o senhor presidente tinha dos filósofos e como a construiu. Que tinha conhecido um filósofo, era patente. Mas seria esse personagem um filósofo? Teria conhecido outros filósofos? Ele que, tanto quanto sei, nunca leu um livro, menos ainda de um filósofo? Saberia o nome de um filósofo? Sim, o do tal opositor político.
O senhor presidente, meu conhecido, não estava a fazer figura de estilo, estava simplesmente a dizer-me algo que ele supunha que eu interpretasse de modo pouco abonatório para o personagem referido, não por lhe chamar filósofo, que eu interpretaria como grande elogio, mas pelo contexto da conversa que estávamos a ter.
Vindo de quem vinha, de uma pessoa com parcos recursos discursivos, habituado a executar o que é da praxe sem precisar de ter ideias ou teorias acerca dessa praxe, qualquer tentativa, ou manobra, para o levar a jogar num campo diferente, não lhe era agradável, nem conveniente. Supus que se referia, nesse epíteto, a alguém que tinha facilidade em falar e que procurava alcançar com a palavra o que ele, presidente, só entendia ser possível com a prática conhecida. Ou talvez houvesse algum vislumbre de o considerar sofista, no pior sentido da palavra.
Inclino-me para pensar que um filósofo talvez não fosse a melhor escolha para ocupar um cargo político, ou militar, e mesmo como professor tenho grandes reservas, a menos que lhe conferissem um estatuto específico. A experiência filosófica faz parte de uma atividade que não se reproduz, não se replica, não se repete, mesmo que se repitam as palavras em que se traduza.
Devemos esperar que uma qualquer pessoa faça uma experiência filosófica no mesmo sentido em que se faz uma experiência de laboratório?
A filosofia é uma experiência humana proporcionada por uma linguagem, mas esta, só por si, não proporciona a experiência filosófica. Um jovem pode papaguear todos os compêndios de ideias de todos os filósofos, à semelhança do que, em poucos segundos, faz a IA, mas não será capaz de experiências filosóficas compatíveis com as que estiveram na origem da autoria delas. Os antigos gregos representavam os filósofos como anciãos e, com efeito, um bebé, como por exemplo a IA, papagueia mais filosofia do que qualquer humano, por mais sábio e enciclopédico que seja, mas não é um filósofo e não tem experiência filosófica.
A expressão latina “Primum vivere, deinde philosophari” adquire, neste contexto, um significado especial acerca das prioridades, mas também de uma ordem natural e necessária das coisas e das causas. Como é possível filosofar sem ter vivido? Aliás, seria ilusão acreditar ou supor que a IA filosofasse. Ainda que processe a linguagem e os discursos filosóficos, isso corresponde, em termos do que considero ser filosofar, à confirmação de que filosofar, longe de ser um processo e efeito de linguagem, deve ser um processo de iniciativa humana, segundo o qual e por efeito do qual se origina e gera linguagem acerca de um problema humano, com vista a resolvê-lo. A IA opera apenas sobre a linguagem, seus significados e padronização, sem qualquer iniciativa ou outra finalidade que não sejam as que procedem dos comandos humanos. Por mais que isto seja útil e instrumental para o filósofo, não é filosofia.
O filósofo não pode ser compreendido por alguém, ou algum mecanismo, que não tenha a mínima noção do que é falar em nome próprio de algo, ou sobre algo, que não esteja e não caiba na linguagem mas que só pode ser comunicado através de uma linguagem.
Ao filósofo não é legítimo pedir que fale em representação seja de quem for. Por isso, os professores de filosofia não podem ser confundidos com filósofos e, mesmo que o sejam, tal não faz parte do seu estatuto e não estão autorizados a filosofar. Basta um aluno queixar-se que imediatamente será atendido pela Direção, no seu direito à estrita verdade do manual.
O filósofo assemelha-se a um músico que toca o seu instrumento perante uma plateia com quem partilha a música, mas dificilmente, ou nunca, um significado e o professor de filosofia assemelha-se ao professor de instrumento que o aluno não aprenderá a conhecer e a tocar e a explorar por mera observação.
A filosofia é uma experiência que requer maturidade para dar frutos.
Há génios na matemática e nas ciências da natureza, para referir estas parentes da filosofia, que se manifestam na juventude, mas a filosofia e a sabedoria não se compadecem com o génio (nem com a juventude).
Diria até que não se compadecem com nada.
E, qual ironia do destino, o filósofo viveu até ser velho para ver, como já pudemos constatar através do episódio do operário fabril, que era também presidente da junta de freguesia do filósofo, o que os fregueses esperam que um e outro possam fazer por eles.
Se o filósofo vive por amor da sabedoria e se esta acontece tarde e a más horas, ou nunca, que sentido pode fazer?

                 Carlos Ricardo Soares
 

quinta-feira, 22 de maio de 2025

Reflexões à luz dos princípios da Igualdade, Liberdade, Responsabilidade e Garantias

Reflexões à luz dos princípios da Igualdade, Liberdade, Responsabilidade e Garantias.
Eles são de tal modo intrínsecos e estruturantes da ideia de Direito que, em qualquer situação social concreta, mesmo na ausência de normas, funcionam como princípios de direito e critérios de justiça sobre a ação dos indivíduos e dos grupos. 
Na mais primitiva das situações, aquele que se arroga um direito e uma liberdade, por efeito reflexo da identidade de razões, legitima igual direito e liberdade dos outros, e o mesmo é válido para a ação. 
Aos humanos nunca terá faltado este sentido de justiça, que é o cerne das questões de justiça, que funciona como um jogo cujas regras são iguais para todos, numa base tão instintiva que nem carece de formulação lógica para operar.
No entanto, e em geral, o domínio da ação e o domínio normativo estão longe de serem reflexo um do outro, bem pelo contrário, porque, desde logo, é a ação que torna necessário o normativo. Para utilizarmos o exemplo do jogo, o jogo (a ação) e as regras do jogo (o normativo) são realidades diferentes em que as regras existem para o jogo, mas não o jogo para as regras. 
Muitas vezes, o problema surge mais na aplicação da justiça do que nos incidentes do jogo e mais ainda do que nas regras do jogo. Os vencidos tendem a ser mais descontentes, contestatários, insatisfeitos e inconformados do que os vencedores. Estes, por sua vez, sobretudo se estiverem habituados a vencer, tendem a não aceitar as derrotas e a querer mudar as regras do jogo, quando elas deixam de lhes ser favoráveis.
Quando se passa da área lúdica, desportiva, ou de mero comércio, para o domínio jurídico e jurídico do político, mormente do Direito Internacional, os problemas complicam-se sobretudo porque as respostas do Direito não conseguem conciliar ideais de uma justiça atualizada com realidades históricas consolidadas por práticas e “regras de jogo” que foram definindo e estabelecendo expectativas e estatutos jurídicos, sociais e políticos.
Neste enquadramento, parece-me da maior oportunidade recorrer à ideia de imperativo categórico formulada por Kant, tal como eu a entendo, para sugerir o abismo que existe entre o dever-ser ético e moral, enquanto abstração teórica, e a ordem económica, política, jurídica e social da realidade histórica.
À luz daquele imperativo, em meu entender, a realidade histórica é de tal modo imoral, injusta e monstruosa que, qualquer tentativa para reverter os estatutos, as situações de domínio e as práticas, dos Estados e dos agentes económicos, arrisca-se a chocar como um barco de pesca contra o iceberg que afundou o Titanic.
Estou a pensar num direito geral e abstrato de cada ser humano a um quinhão do património da humanidade, definido como a riqueza e os recursos que a todos pertencem e a todos são igualmente devidos por herança, mas também estou a pensar numa simples fórmula “ninguém tem o direito de usar recursos de modo que o seu uso, em geral e abstratamente considerado, não seja possível, mesmo materialmente, a todos os humanos”. Exemplificando, o meu direito a ter um automóvel cessaria se, em geral e abstrato, esse direito não pudesse ser satisfeito por todos os humanos.
Para agravar os problemas, estas considerações morais são extensíveis aos outros seres vivos, com quem partilhamos recursos que não foram criados, ou produzidos, por nós e, consequentemente, relativamente aos quais não existe nenhum direito de apropriação exclusiva.
                 
                   Carlos Ricardo Soares

quinta-feira, 1 de maio de 2025

A linguagem do conhecimento e as outras

O conhecimento é uma linguagem acerca do ser, da realidade, das coisas, não apenas das coisas da natureza física, material, exterior ao homem, mas também da cultura, das coisas culturais, da realidade cultural, social, política e económica. 
O ser, a essência de algo imutável é um problema diferente do ser, da essência de algo mutável, ou de algo muito mutável. A essência do átomo do oxigénio permite uma abordagem, em termos de definição, que já não é possível, por exemplo, quanto à essência de um pinheiro, ou de um peixe, ou de uma estrela.
O ser, a essência, nunca é pelo que é, e isto é contraditório. Quando sabemos o que é, sem sabermos o que foi nem o que virá a ser, sabemos o quê?
Que sentido faz, por exemplo, afirmar que o ser deve ser o que é, ou como é? Que a afirmação, ou descrição, daquilo que é deve ser uma afirmação verdadeira? Relativamente ao átomo, por exemplo, o que se disser deve ser algo que corresponda à realidade do átomo, àquilo que o átomo é. O dever de verdade é uma condição sem a qual não há conhecimento. 
O conhecimento não é uma linguagem qualquer acerca da realidade, mas uma linguagem como deve ser, uma linguagem que satisfaça as exigências e as normas, o dever-ser, da linguagem de conhecimento. 
O ser, em si, não é como deve ser, porque isso não é da sua natureza, ou seja, por exemplo, o átomo não é o que é porque exista ou tenha existido um dever de assim ser ou de assim se ter tornado. 
As coisas não culturais, por exemplo, as plantas, os animais, as pedras, as estrelas, não são o que são, por efeito de um dever ser a que obedeceram. Mas o conhecimento acerca do ser, a linguagem acerca do ser, deve ser de certo modo e não deve ser de outro, quer dizer, deve ser como deve ser. Existem normas para o conhecimento. 
Se, em vez de conhecimento acerca do ser, alguém falasse das suas representações subjetivas, por exemplo, do átomo, das árvores, etc., deixaria de estar sujeito ao dever ser de verdade. Quando falamos das coisas que nos são exteriores, relativamente às quais temos, ou assumimos, uma relação de sujeito para objeto, esta só é possível se respeitarmos as normas da objetividade. 
Quando falamos das coisas subjetivas, praticamente não há limites, ou condições. Mas se tivermos pretensões estéticas, então, deparamos com aquilo que designo por dever ser estético.

                Carlos Ricardo Soares