sexta-feira, 3 de março de 2023
Por que escreves?
Nem quando escrevia uma carta de amor eu era capaz de confessar a mim próprio que sabia o motivo pelo qual me sentava a buscar as melhores palavras e a mais eficaz concordância entre elas.
Às vezes, mas por razões bem diferentes, perguntava “por que estudas?”, ou “por que lês?”. Estas questões pareciam ser desnecessárias, como perguntar “por que trabalhas?”, ou “por que comes?”.
Hoje, julgo perceber que há um princípio de sabedoria na indagação dos motivos que nos levam a fazer o que fazemos, mais do que na indagação do ser quem somos.
Se considerarmos que cada um de nós é uma ilha, que não há mais do que o ponto de vista de cada um, e que somos seres de linguagem, sociais, que provavelmente não conseguimos demonstrar a objetividade de nada que comunicamos, do mesmo modo que não conseguimos saber até que ponto a subjectividade é comunicada, torna-se desafiante tentar perceber por que motivos tantas pessoas, e eu sou uma delas, se sentem atraídas pela linguagem, sobretudo a escrita, que começa por ser imposta como o fiel e o garante das verdades mais sagradas e mais inquestionáveis, por uma autoridade que remete a sua própria autoridade para essa escrita, como se a escrita, em si mesma, fosse já a face, não de alguma forma de verdade, mas da verdade a que estamos sujeitos, até pelo uso.
Assim que alguém percebe que as palavras para dizer verdades não são as verdades, ou que é preciso usar falsidades para dizer verdades, que é o modo de ser da linguagem, mormente a escrita, o fascínio pela escrita instala-se, se nisso formos tendo um repetido prazer, até se tornar um vício, uma busca do prazer pelo prazer, como um reflexo condicionado de pressionar um botão gratificante.
Na prática, descobrir que é difícil, ou impossível, dizer alguma coisa sem dizer o seu contrário, é como encontrar o santo graal.
sábado, 25 de fevereiro de 2023
Homem de palavra e Homem da palavra
Há poemas que me deixam
boquiaberto sem palavras
e há também palavras como água
que nos engolem se nos detivermos
e isso sabemos da experiência
e de nada mais
o homem da palavra fez deuses
que foram sendo tão iguais a um
único Deus de palavra
pela palavra de Deus
as palavras serviram
para construir as maiores fortalezas
que nenhum exército armado
logrou derrubar
apesar de todos sitiarem
as pontes e os fossos
com palavras de acesso
e sem precisar de coragem
Deus visita cada sitiado
sem abrir brechas
e promete uma passagem
por um túnel de lamechas.
sábado, 18 de fevereiro de 2023
A alma num porta-aviões
Os sonhos eram sempre irrealizáveis
Sonho e realidade
mas como sonhos que eram
já eram bons
e chegavam a iludir
ao ponto de parecer que os estava a viver
porque eles tinham essa aptidão
de me encher de ânimo
como uma música
ou um espetáculo
e de me mover a atenção
e os músculos
havia sempre o lado agradável
dos sonhos
que me predispunha à gentileza
de olhar para as coisas e para o mundo
a partir da minha vida interior
concebendo as pessoas em cenários
de harmonia e de bondade
a culpa das desgraças
nunca era dos sonhos
os desgostos e as frustrações
não me faziam desistir de sonhar
e tornavam os sonhos ainda mais imperiosos
mas era preciso não ficar apenas a sonhar
parado a imaginar o lado bom das coisas
era preciso agir comunicar sentir
confirmar que existe uma distância
entre a fantasia e a realidade
que a fantasia promete tudo
ao desejo
mas a realidade dificilmente ou nunca
satisfaz
e ainda bem
porque quase sempre a realidade
acabava por dar mais do que prometia
e muito mais do que eu sonhava.
sábado, 11 de fevereiro de 2023
Luta por um direito
Quantos se dão conta da falta de formação e de instrução e de leitura inteligente e discutida, numa abrangência suficientemente plural e geral (universal de universidade), sem cedências a monolitismos, presunções, água benta e caprichos individuais, que deita a perder a visão para além do próprio nariz, ou do autodidatismo, por maior que seja?
Quantos militantes, por ex., comunistas, se dispõem a ler e a interpretar, sem ser através das lentes da sua perspetiva ideológica e do seu preconceito político-social, com base numa cassete, ou catecismo, simplificador e demolidor, mais ou menos adotado e intelectualmente assimilado, algum autor que não esteja catalogado “pelo partido” numa preconcebida matriz ideológica?
Quantos militantes, por ex., católicos, se dispõem a ler e a interpretar, sem ser através das lentes da sua perspetiva ideológico-religiosa e do seu preconceito político-social, com base numa cassete, ou catecismo, simplificador e demolidor, mais ou menos adotado e intelectualmente assimilado, algum autor que não esteja catalogado “pela igreja” numa preconcebida matriz ideológica, ou “índex”?
Que leitura fazem uns dos outros, se é que se leem uns aos outros?
Que predisposição de “audiência”, leitura, compreensão, interpretação, por ex. haverá num homofóbico para autores, artistas, pensadores, homossexuais? E vice-versa?
Como é que um católico pode ler, por ex., Saramago?
Como é que Saramago poderia ler, por ex., um autor católico?
Que é que, por ex., um deles pode reclamar para si como um estatuto, ou um mérito, ou um valor, que deva ser recusado ao outro?
Que obrigatoriedade, ou conveniência, pode sentir, por ex., um comunista, de ler S. Paulo, ou Stº Agostinho, ou um católico de ler um ateu militante?
O que é que está na base da atenção e do respeito que devemos uns aos outros?
O que é que está na base da atenção e do respeito que temos uns pelos outros?
É muito interessante e edificante quando assistimos a uma manifestação de cultura e de luta e de revolta que reúne muita gente, sem sabermos qual é a sua “identidade”, seja de filiação, ideológica, partidária, religiosa, étnica, nacional, clubística, regional, bairro, musical, gastronómica, seja de género, orientação, preferência, de qualquer ordem, por uma causa comum, por exemplo, de respeito por um direito, ou por uma resposta política.
sábado, 4 de fevereiro de 2023
Aprende-se a agir a pensar e a sentir
Os humanos têm uma desenvolvida aptidão para agirem, reagirem e aprenderem a agir e a reagir; para pensarem e aprenderem a pensar; para sentirem e aprenderem a sentir; para chorarem e aprenderem a chorar e a não chorar; para rirem e aprenderem a rir e a não rir...
Aprende-se a agir, aprende-se a pensar, aprende-se a sentir, mas é necessário ser bem ensinado e ser bem orientado. O contrário, pode ter efeito contrário.
Essa aptidão tem sido aproveitada, inúmeras vezes, de modo abusivo, para treinar e ensinar a ter determinados comportamentos, ou desenvolver trabalhos.
É possível, através da instrução, das letras, dos desafios, da discussão de problemas, levar o ser humano a essa capacidade de colocar problemas e tentar equacionar soluções, desenvolvendo práticas e métodos de análise e de reflexão sistemática.
Aparentemente, cada um sente o que tem de sentir, porque sente e nada mais. Mas quantos dos sentimentos são ensinados e incutidos?
É possível ensinar e treinar, por exemplo, para a tolerância, para o respeito, para o amor e para o ódio.
A função e o papel da Família, da Escola e dos meios de comunicação social, enquanto divulgadores dos atores políticos, religiosos, desportivos, policiais, artísticos, no desenvolvimento e orientação destas aptidões podem ser mais ou menos eficazes consoante o grau de coerência e o nível de satisfação que permitirem, em termos de compensações intrínsecas e extrínsecas, uma vez que toda a ação tem em vista uma satisfação.
segunda-feira, 30 de janeiro de 2023
Aprender a agir a pensar e a sentir
sexta-feira, 27 de janeiro de 2023
A talho de foice
Como já escrevi noutros espaços, e aqui a talho de foice, a incompetência dos governantes é tão gritante que corremos o
risco de desordem geral e alienada. Talvez isso ainda não tenha acontecido, mercê das estruturas institucionais que, em vez de maldizerem os ventos, fazem velas e as colocam a jeito, para disso beneficiarem.
O
que para uns é uma maldição, para outros é uma bênção. O governo não precisa de fazer acrobacias para atingir certos fins, como, por exemplo, desamparar a escola pública.
Basta-lhe fazer o que está a fazer para que as escolas privadas vejam aumentar significativamente a procura.
Mas o governo não tem o direito de provocar, seja com a sua ação, seja com a sua
inércia, determinados efeitos, contra uma vontade democrática não despicienda e, menos ainda, contra o interesse público e, sobretudo, contra a razão. Uma das posições reiteradamente
assumidas, há décadas, pelo Governo, tem sido estrangular as despesas públicas onde isso é menos problemático: na educação.
Fazer greve na Educação parece
ser tão vantajoso para os cofres do Estado que até dá a sensação de que as greves são bem-vindas. Os alunos e os pais já perceberam que o Estado tem outras prioridades. Aliás,
sempre que é preciso, não digo necessário, fazer austeridade, a receita está à mão e nem é preciso inovar: cortes na educação. A educação, a investigação,
a ciência, a cultura, em geral, parece que não lhes são imprescindíveis.
Afinal, até poderíamos dizer que durante séculos se viveu sem a educação que temos
e sem alfabetização. Mas a principal razão não é essa, é que aí podem meter a mão à vontade, que não lhes acontece nada (pensam eles, que não têm
respeito pela educação, nem a valorizam minimamente).
Onde eu queria chegar, e já me fui desviando para outros planos, era à questão da razão, indissociável da questão
do interesse público, mas este, infelizmente para os professores, não é entendido pelos governantes como algo que envolva seriamente a Educação. Este desprezo seria igual a tantas outras
formas de desprezo que se ignoram, ou de que se faz vista grossa, se não fosse ultrajante e ofensivo dos genuínos interesses dos professores, alunos e famílias e, por extensão, do interesse público
e do país. Basta pensar no caso do congelamento do tempo de serviço para constatarmos a inépcia dos sucessivos “ilusionistas” que têm passado pela pasta da Educação.
Neste
momento, em que o descongelamento ainda interessa a alguns profissionais, nomeadamente professores, o descongelamento já não aproveitaria a uma boa parte daqueles que viram a sua progressão suspensa. Por
outro lado, o que perderam com o descongelamento, ou o que deixaram de usufruir, mesmo que, agora, lhes fosse contado esse tempo, ficaria irrecuperável, ou seja, a contagem para o futuro não lhes restituiria
o que deixaram de receber todos os anos em que estiveram congelados.
De resto, e para não me alongar demasiado sobre um assunto que é muito aborrecido, sobretudo para os professores prejudicados, quando
os sucessivos governos, em vez de apresentarem argumentos atendíveis e razoáveis para a sua intransigência generalizada, tentam justificar a sua recusa em satisfazer todas as reivindicações,
em bloco, com a alegada falta de verbas orçamentais, não é crível que estejam à espera de que se lhes reconheça razão, a não ser que eles sejam mesmo ineptos.