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quarta-feira, 6 de abril de 2022

Agressão, defesa e contra-ataque

Não conheço maior maldade nem maior perversidade, pela monstruosidade dos intentos, mas mais ainda pela determinação e escolha do poder de causar dano e destruição e morte gratuita, sobretudo desencadeando um fenómeno de violência de imensas dimensões, antecipadamente admitido como possível e desejado e promovido, tendente a abalar os alicerces da organização social e política e económica, sem sequer ter o ensejo de tirar proveito disso, dizia eu, não conheço maior nojo do que alguém iniciar uma guerra.

E é-me tão odioso, tão revoltante e insuportável que alguém o faça que, enfrentar um tal inimigo, se torna o mais nobre e glorioso dos feitos.

Mas, até por assim ser, por a guerra desencadear mecanismos sociais de reorganização e de defesa e contra-ataque, que mobilizam grupos e organizações cada vez mais alargados, devendo atingir a eficácia necessária, desencadear uma guerra é uma decisão de incomparável responsabilidade e gravidade.

De positivo, ou tolerável, não tem nada. Censurabilidade máxima. Intolerância máxima.

Quem inicia uma guerra dá causa e terá que assumir a responsabilidade, não só da guerra que faz, mas também da guerra que lhe for movida. Esta sim, é uma guerra justa, honrosa e valente para os seus militares. E será gloriosa, ainda que não totalmente vitoriosa. 

Quando alguém inicia uma guerra, inicia uma guerra má, desumana, injusta, odiosa. 

Quando tocam os clarins dos exércitos de defesa e contra-ataque, o que acontece é uma grande epopeia, de inesquecíveis guerreiros, por uma causa sublime e magnânima, contra soldadesca desprezível, sem sentido de honra nem brio militar, cuja coragem e valentia é despejar explosivos a esmo sobre casas e gente desarmada, sem sequer pensarem nas consequências.

Mas, também por assim ser, quem inicia uma guerra não deixa de o fazer sob os auspícios de uma propaganda que apresenta a agressão como uma defesa ou legítima defesa, ou, no mínimo, de excesso de legítima defesa, para incutir ânimo aos profissionais do tiro a eito.

E isto agrava ainda mais a culpa de quem toma a decisão e dá as ordens com a coragem de quem está à distância, talvez acreditando que, quem começa a guerra pode pará-la quando quiser, como se estivesse num filme violento, em que tudo lhe corre mal e a violência se volta contra si.

E torna muito simples o trabalho de quem tiver de o julgar e de o condenar.

Mas a parte difícil de o combater, por fases, pacientemente, dolorosamente, com frentes e retaguardas sucessivas, sem perder a cabeça, essa parte é a que dá razão à história e pode dar sentido à vida.

Como um problema que não se pode deixar de resolver.

 

domingo, 3 de abril de 2022

Dialogar com quem não quer ouvir

Falar em dialogar já é colocar o problema num plano muito elevado de cultura e de civilização. Há coisas, ou temas, ou áreas culturais, afiliações, bandeiras, acerca das quais o diálogo é praticamente impossível, não por causa dos assuntos, mas por causa das pessoas. Em princípio, poderíamos dialogar sobre qualquer tema ou problema, diferendo, conflito de interesses, ou litígio. Mas isto requer uma preparação e uma cultura de convivencialidade e de aceitação de convenções e de mecanismos heterocompositivos das disputas que, parece-me, nenhum indivíduo está em condições de exercer, senão através de estruturas tutelares, institucionalizadas para esse fim e às quais essa competência seja reconhecida positivamente, normativamente e, ainda assim, sem prejuízo da moral individual, quando funciona como última instância.
Muitas vezes o diálogo é uma chusma de provocações e de desconversas, um não diálogo, de que é possível extrair algumas conclusões, sobretudo nos casos em que os dialogantes não estão, nem querem, pensar da mesma maneira, ou estar de acordo com uma linha de argumentação, ou estilo de questionamento, mormente quando se pelam em não reconhecer nenhuma das alegações ou razões da outra parte.
Se o diálogo for um travar-se de razões no plano académico, ainda é possível alguma consensualidade em torno da ciência e de teorias científicas, desde que estas não ponham em causa os interesses relevantes de alguém com poder.
Mas o diálogo não é, nem tem de ser, um litígio ou uma confrontação entre pessoas que não querem estar de acordo em nada.
Pelo contrário, fora das arenas dos gladiadores, normalmente, é pelo diálogo que as pessoas descobrem afinidades, interesses e ideias comuns e novidades de que nem sequer suspeitavam. Pelo diálogo aprendem o que antes não sabiam, encontram o que desconheciam, trocam informações, mais ou menos codificadas, que não trocariam de outro modo. Pelo diálogo, falam, formulam, organizam ideias, pacotes de significação, para elas próprias e para os outros, e escutam, tentam decifrar, compreender os outros através dos recursos próprios, das representações próprias daquilo que é formulado pelos outros. Pelo diálogo podem ser seduzidas ou avisadas, perder a inocência ou visitar cidades invisíveis.
Pelo diálogo, poderíamos continuar a sonhar, por exemplo, com uma democracia política que não seja pervertida pelo dogma das maiorias demográficas, nem pelo controlo do poder económico-financeiro.
Há barreiras para o diálogo, ou que se levantam ao diálogo, ou então para ocorrer diálogo (como em quase tudo na vida) é preciso mais do que querer.
A esfera da vontade, ou do capricho, por exemplo, de uma criança de dois anos, estabelece uma realidade respeitável, não em relação ao que é ou não é verdade, mas em relação ao que ela quer, ou não quer, gosta, ou não, está ou não “de acordo”, entendido aqui no sentido da satisfação do seu “interesse”.
A verdade, a moral, o direito, o bem comum, podem e devem ser objecto de diálogo, como tudo o mais, mas não é como tal, como problemas académicos ou filosóficos, que tocam a maioria das pessoas.
Na prática, os indivíduos, os grupos, os clubes, as religiões, os partidos, as tribos, as confrarias, acreditam naquilo que querem e tendem a considerar verdadeiro e justo o que lhes for favorável e não o contrário.
Até eu acredito, sem que isto me seja favorável, que o Luís XIV acreditasse que era rei por instituição divina e que a maior parte dos clérigos, incluindo o papa, todos os dias invocassem isso nas suas orações.
Mas não acredito que alguém pudesse dialogar com o rei ou com o papa sobre a hipótese de tal não ser verdade e, muito menos, de ser uma retumbante falsidade e, menos ainda, de ser uma mentira e, de todo, uma fraude.

sábado, 26 de março de 2022

Acordar

Acordar, tanto no sentido de sair do sono, como no sentido de chegar a acordo. Este acordar, porém, não é viável sem que, previamente, saiamos do sono ou do sonambulismo. O estado de vigília e de consciência parece estar a atingir um estado de alerta e de alarme. Já não nos é possível viver na ignorância dos efeitos, consequências, resultados, que os nossos actos têm nos ecossistemas de que dependemos, porque são efeitos desastrosos e insustentáveis. A nossa relação com a natureza (não humana) que nos rodeia é mais estreita, imprescindível e simbiótica do que a nossa relação com a natureza humana. A natureza, entendida como mãe natureza, mantém com cada um de nós uma relação íntima tão forte e inseparável que se diria sermos um só corpo, não fosse o facto de cada um de nós depender absolutamente da natureza, ao passo que a natureza prescinde absolutamente de nós. E tudo isto tem a ver com o facto natural de, para vivermos, termos de, por diversos modos, tirar da natureza, agredir a natureza, interagir com a natureza, transformar a natureza, utilizar a natureza, mesmo sem darmos muita importância ao facto de estarmos, assim, a ser transformados por ela.
O ponto a que chegou, porém, o poder e a capacidade dos humanos tranformarem e explorarem a natureza, em todos os aspectos da sua utilidade egoística e de curta visão, coloca-nos perante um cenário desolador e desmoralizante de destruição da natureza de que abusamos. E, o que é mais grave, dando-nos conta, sem tomarmos medidas colectivas adequadas a evitar mais destruição irrecuperável e a tentar recuperar ou reparar os danos causados.
As principais vítimas, feitas as contas, são os humanos e isso devia ser um motivo acrescido de especial preocupação em reverter processos de exploração económica e de comportamentos cujas externalidades negativas já foram devidamente identificadas e avaliadas.
Mas os humanos não têm um fértil historial de aceitarem restrições e limitações por causa dos outros.
As democracias aparecem como tentativas excepcionais e não muito generalizadas pelo planeta.
Ainda há quem pense que os problemas da corrida para o abismo ambiental e da destruição da biodiversidade sejam problemas dos outros e continue a espreitar aí mais uma oportunidade para fazer dinheiro.
E há quem não tenha sequer a noção daquilo que verdadeiramente está em causa, tal é o modo como tudo continua a ser vendido e propagandeado, como sempre, como se na nossa função de consumidores residisse alguma soberania individual.
Já não é suficiente invocar os direitos humanos para mover a humanidade.
Aliás, a Declaração Universal dos Direitos Humanos talvez devesse ser simplesmente Declaração Universal dos Direitos, incluindo aí os dos outros seres vivos.
Ainda assim, e pelo que vem acontecendo nos dias de hoje, a Declaração Universal dos Direitos Humanos é maior afronta e ameaça, para a Rússia ou a China e outros Estados antidemocráticos, que a temem muito mais do que a eventualidade de serem bombardeados.
E é sobretudo neste poder e nesta força dos princípios e do Direito que devemos apostar.

quinta-feira, 24 de março de 2022

Até prova em contrário

Se quisermos ser rigorosos no uso das palavras, temos que aceitar usá-las dentro de uma convenção de significado e de comunicação em que, pelo menos, se assegure que as subjectividades se reconhecem no intersubjectivo e, quanto ao objecto e ao objectivo/objectivação, que, pelo menos, as subjectividades acreditem ser coincidentes.
Se alguém, seja biólogo, neurocientista, filósofo ou teólogo, cartomante ou adivinho, matemático ou relojoeiro, poeta ou asceta, souber um modo ou forma de garantir que aquilo que uma pessoa pensa, ou sente, corresponde àquilo que ela diz, ou, por outra, que aquilo que lhe dizem corresponde àquilo que ela pensa, ou sente, creio que teremos resolvido um severo problema humano.
Acreditar em Darwin, ou naquilo que o médico diz, ou nas razões de Darwin, ou do médico, ou acreditar em dados, ou que uma teoria está certa, vai dar tudo ao mesmo e não adianta jogar com as palavras para as esvaziar de significado.
Perante os factos, a nossa condição física, humana, sensorial, perceptiva, cognoscente, é o que é e os factos são o que são. Tentar compreender o fenómeno do conhecimento dos factos é tentar compreender e explicar o fenómeno das crenças, que não são apenas verdadeiras ou falsas, certas ou erradas, mas não apenas o fenómeno das crenças. A maior parte dos factos relevantes para nós não coloca problemas de verdadeiro/falso, de certo/errado, mas já coloca problemas de bom, mau, bem, mal. Outros, ainda, colocam problemas de expectativas e de investimento, de apostas, que poderão ou não ser goradas. E isto é quanto aos factos, passado, a ciência é sobre factos, passados, não é sobre futuro, nem previsão, ou previsibilidade. Prever não é ciência. Ainda assim, a ciência sendo declaração acerca de factos, só acredita nessa declaração quem sabe, pode e quer. E, como dissemos no início, o acreditar nessa declaração (mesmo reproduzindo-a ipsis verbis) não garante qualquer correspondência entre essa declaração e aquilo que o declarante pensa ou entende acerca dela. A prova de um facto, sendo um facto, não é o facto, mas ainda há o problema do entendimento, que é subjectivo e, na melhor das hipóteses, intersubjectivo, porque, quanto à objectividade, não creio que seja possível demonstrá-la, ou prová-la, mesmo num contexto de ciência física pura e dura.
A questão do acreditar levar-nos-ia mais longe e tem mesmo a ver com a ciência e as hipóteses, porque acreditar ou não acreditar é, de algum modo, acreditar, até prova em contrário.

domingo, 20 de março de 2022

Democracias, autocracias e tiranias

As democracias têm-se adaptado razoavelmente à convivência forçada com ditaduras e ditadores e tiranias, ditas autocráticas, ou que, segundo um conceito de democracia muito particular, pela tomada do poder, se auto legitimaram, ou arrogaram, senhores naturais, de facto, das leis e dos governos. 

As democracias têm-se adaptado com uma resiliência, que é um dos seus atributos mais positivos, às políticas do facto consumado e do abuso de direito, que são apanágio dos autocratas e dos conquistadores. 

As democracias têm-se ajustado à conveniência de serem exemplo, pela via pedagógica e paciente da tolerância e do pluralismo democrático, para as autocracias arrogantes e fanfarronas, oferecendo-lhes também a outra face. 

Tudo na esperança de que a razão e a informação e a justiça e a democracia realizem aquilo que a democracia acredita serem seus méritos intrínsecos. 

Salvo raras excepções, porém, as ditaduras, os ditadores, as tiranias, os autocratas, não só se revelam irascíveis e esquivos à proximidade das democracias, como se perfilam ostensivamente perante o que consideram ser, não méritos, mas fragilidades destas.

sábado, 12 de março de 2022

Criar o divino

Depois de ter escrito dez bíblias

Achou que faltavam duas

Para perfazer doze

Como as horas do relógio

Mas no dogma da sua fé

Não havia mais que dez deuses

E teve que inventar dois

Durante sete dias

Dilacerado pela tentação

De criar o divino

Pressentindo que os deuses

Não são como as explicações

Que não pode haver duas verdadeiras.

quarta-feira, 9 de março de 2022

Templo em que se converte o templo

Quando lhe perguntaram quem era

Deu um nome

De onde viera

Outro nome

A que perguntas sabia responder

Não sabia

Mesmo quando respondia

Se tinha querer

Não queria ter

Mas tinha

E imensa tristeza

Cantava

Em pranto

Encantado canto

Estátua de movimento

Arrebatada do vazio

Do templo

Em que se converte

O templo.

 

terça-feira, 1 de março de 2022

A minha teoria

Os animais, em geral, e o animal humano, em particular, são estruturas físico-químicas em interação com outras estruturas físico-químicas, que resolvem tudo de um modo físico-químico, mais ou menos ruidoso, mais ou menos conflituoso, ou harmonioso, segundo reações de acomodação, incomodação, satisfação/insatisfação, que nós constatamos serem efeitos/causas umas das outras, que não estão propriamente sob controlo, embora pela sua natureza nos apareçam como tal. Por exemplo, quando sete cães disputam um osso, o emaranhado de causas e efeitos que se potenciam e estão por detrás da violência que podemos observar, não é nem mais nem menos descontrolado do que a calma que se segue ao facto de o osso ter sido devorado. São apenas modos, ou formas físico-químicas de estar. Anular o apetite dos cães para ossos, se resolve algum problema, talvez crie outros.
Os humanos aprenderam que os interesses e a partilha dos interesses se fazem pela físico-química, nomeadamente pela coacção e pela violência e que o exercício destas constitui a parte não menos importante da organização social.
É efectivamente o resultado natural de escolhas que não podem deixar de ser feitas, num quadro de possibilidades, reais ou imaginárias, subjectivas, intersubjectivas, ou objectivas, segundo critérios racionais de dever-ser.
Esta é a minha teoria, que julgo ser aplicável, aliás, a todo o tipo de acção, desde o pensamento mais simples, até à conclusão científica, passando pelo juízo estético, ético ou moral.
A parte não menos interessante desta teoria, na minha óptica, é que ela considera a escolha como a melhor (mesmo não sendo boa) e conduz a pensar, em geral, que, mesmo quando opta pela violência, o ser humano o faz na perspectiva de melhor.
Assim sendo, a humanidade, se não se aniquilar, vai progredir inelutavelmente, até por força da natureza do determinismo físico-químico, que não tem outro modo de ser.