A realidade humana, ainda assim, dá sentido a toda a realidade e nenhuma outra realidade dá sentido à realidade humana.
segunda-feira, 29 de março de 2021
Mais do que o teatro
A realidade humana, ainda assim, dá sentido a toda a realidade e nenhuma outra realidade dá sentido à realidade humana.
quarta-feira, 24 de março de 2021
Antes tivéssemos
Não quero pensar no dia em que
Também abandonaremos
As nossas carroças
Para não perdermos os cavalos
Prefiro pensar que a vida é feita de perdas
E não é que seja má
Porque ficamos com a memória
Para reviver sem perigo
Pelo menos enquanto a não perdermos também
E já não pudermos encontrar
Nem nos livros que escrevemos
O mínimo sinal
De termos vivido
Em nosso redor de há muito habituados
A não ver nem ouvir
De olhos fechados para ver melhor
As grandes distâncias que nos excitam
As nossas dores e prazeres são também
De pensar
No que não perdemos
Porque não tivemos
Mas antes tivéssemos
Perdido.
terça-feira, 23 de março de 2021
Ouvir o coração
Se reparares as casas
Não são um amontoado
Nas ruas
A luz e as sombras andam
De mãos dadas
Na praça
A domadora de gaivotas vadias
E o maestro de gritos
Fundem-se num abraço H2O
No chafariz
De momentos perfeitos
As cores fecundam
Os olhos da Pureza
Da cervejaria icebergue
Que serve canecas de maresia
À sede insaciável de saber
Se o vinho é mais puro do que a cerveja
E ela
Com deleite não fermentado
Diz tem graus
E eu a ver degraus
Sem palavras
Com o coração a bater.
sábado, 20 de março de 2021
Ainda tento explicar a beleza
Ainda tento explicar a tua beleza
E o cheiro de chuva
Que parou depois
De me encostar a ti
Como ser a árvore
Para construires os teus barcos
Sem que as aves desamorem
A tua respiração
No meu queixo
Enquanto fechava os olhos
Para desenhar janelas
Na nossa roupa
Com as mãos
No agasalho do teu corpo
Confirmava
Que não eras fantasia.
sexta-feira, 19 de março de 2021
Crentes e ateus
Há ateus que não permitem que serem ateus os incompatibilize com os crentes. Por exemplo, que sentido faria humilharmos a nossa mãe porque se sente feliz a rezar o terço pela nossa saúde? Ou pela paz do mundo? Ou pelo perdão dos pecados? Ou pela superação da nossa ignorância?
Os ateus não têm respostas, ou, pelo menos, melhores respostas do que os crentes para as questões a que aqueles respondem com a fé.
Os crentes colocam Deus no ponto de partida e os ateus não o colocam, em ponto nenhum, nem no ponto de chegada. Mas estão todos perante o desconhecido. Desconhecido, nesta matéria, significa mesmo que ninguém sabe, se bem que os crentes afirmem um tipo de conhecimento metafórico, adjectivo e analógico.
Não é como alguém dizer que não conhece a Condessa de Ségur, confessando a sua ignorância.
O problema dos crentes é que os ateus não têm razões para crer no que eles acreditam e não são capazes de lhas darem. Mas os ateus têm razões, muitas, aliás, para crerem que os crentes são pessoas de boa fé.
O problema dos ateus, no entanto, é que há falsos crentes e esses não são pessoas de boa fé.
Os crentes, por sua vez, têm muitas razões para crerem que os ateus não se dizem ateus só para os importunarem e porem à prova a sua fé, ou seja, os crentes têm razões para pensarem que os ateus o são de boa fé.
Agora, a questão é a seguinte: faz sentido que haja um ateu de má fé?
sábado, 13 de março de 2021
Bitolas, o papa e o sacristão
Novo ou velho não é nenhum certificado de valor, ou mérito, ou garantia de ser melhor, é apenas de ordem cronológica. Nem sequer é, penso eu, de ordem biológica. Os nossos esquemas mentais de classificação e ordenamento de tudo, seja no espaço, seja no tempo, seja na balança, seja na lógica, seja na causa, seja no efeito, seja na dor, seja no prazer, seja na memória, seja no esquecimento, seja no ganho, seja na perda, seja na verdade, seja na mentira, na fraqueza ou na virtude, no menos e no mais, no pequeno, ou no grande, no bom ou no mau, no bonito ou no feio, etc., conduzem-nos a avaliar tudo e mais alguma coisa tomando sempre qualquer bitola, ainda que seja a nossa bitola, em função seja do que for. Se assim é, parece que tem de ser. Mas não.
O grande mérito da ciência, que é um grande paradoxo, está em, ao tentar conhecer o ser, o que é, o que tem-de-ser, por força da objectividade e do rigor, descobrir que o ter-de-ser é um conjunto de possibilidades daquilo que é.
Enquanto a religião e os sistemas morais e éticos, já para não falar em político-militares e económicos, de subjugação do indivíduo, coarctando a sua vontade e os seus interesses, ainda, alegadamente, em nome do seu interesse, indivíduo que, na retórica da publicidade, é rei, mas sem que tenha uma palavra a dizer, desde que nasceu, ditam, sem pejo e sem respeito pelo indefeso indivíduo, numa tábua de deveres tão ampla e tão violentadora do ser, as leis, não naturais, do que eles devem ser, em nome de deuses ou divindades que antecipam, por revelação misericordiosa, a resposta que não precisa de ser questionada, nem procurada, sem contemplação do que eles são ou sejam, ou possam ser.
O verdadeiro problema do humano não são tanto as bitolas, mas quem as estabelece e quem não está sujeito a elas.
Aceitaríamos as leis mais duras, se todos, e em primeiro lugar quem as dita, estivessem sujeitos a elas. Não aceitaremos nem as leis mais sofríveis, se quem as dita não estiver igualmente obrigado por elas. Podemos por a tónica nos direitos ou nos deveres, tanto faz.
Supostamente, não conseguimos viver sem elas. Mas há quem viva.
Elas tornaram-se mais importantes do que nós. Mas não para nós. Nós não somos nada, as bitolas são tudo. Sobretudo no dia em que só vai haver bitolas.
A explicação da música vai estar em registos, assim como toda a explicação do universo, que até já pode existir, mas enquanto não passar pela minha cabeça, é como se não existisse, para mim.
Nenhuma ciência, filosofia, ou música, religião ou discurso poderão, todavia, abrir uma simples caixa de sapatos, ou limpar as lentes de uns óculos embaciados. Nem todo o saber do mundo o poderá fazer. Até o papa, que lê os evangelhos, precisa de um sacristão que lhe abra o livro. E o sacristão, provavelmente, não achará interesse em saber lê-lo.
segunda-feira, 8 de março de 2021
As coisas e os números
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021
Um país sabotado
Entre as preocupações e frustrações, neste país, uma das maiores é ser um país ao contrário. Não é um país para viabilizar e facilitar e ajudar o cidadão.
É um país para derrotar, diminuir e anular o trabalhador crédulo e confiante de boa fé.
É ser uma plataforma de sabotadores.
É uma engrenagem em que se entra grande e se sai pequeno. Em que se entra optimista e se sai aniquilado.
Isto aprende-se, desde muito cedo. Só há lugar para os melhores, mas, no fim, não há lugar para ninguém. É muito preocupante a nossa cultura de sabotagem e de sabotadores. É no que dá a aprendizagem, até pela experiência diária, de que toda a gente anda a sabotar o trabalho de toda a gente.
Nós não somos um país adiado, somos um país sabotado.
E quando esta cultura se instala, não está tudo perdido, mas estamos perdidos. A parte interessante e positiva é que não está tudo perdido.
Quem mais e melhor sabota, mais e melhor faz. Não é o salve-se quem puder, é o sabote quem puder.
Nem precisava de referir a escola superior da política.
Mas, o que tem sido a política senão a sabotagem mais concertada e mais imbatível dos sonhos e das aspirações e do trabalho de quem acredita na solidariedade e na justiça, enfim, no amanhã?
Ao serviço de quem têm estado os nossos partidos e os nossos governantes, sob a capa da impunidade? Que miserável visão nos proporcionam os governantes!
Muitos dirão que é tudo uma questão na perspectiva do lado de que se está.