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quinta-feira, 24 de março de 2022

Até prova em contrário

Se quisermos ser rigorosos no uso das palavras, temos que aceitar usá-las dentro de uma convenção de significado e de comunicação em que, pelo menos, se assegure que as subjectividades se reconhecem no intersubjectivo e, quanto ao objecto e ao objectivo/objectivação, que, pelo menos, as subjectividades acreditem ser coincidentes.
Se alguém, seja biólogo, neurocientista, filósofo ou teólogo, cartomante ou adivinho, matemático ou relojoeiro, poeta ou asceta, souber um modo ou forma de garantir que aquilo que uma pessoa pensa, ou sente, corresponde àquilo que ela diz, ou, por outra, que aquilo que lhe dizem corresponde àquilo que ela pensa, ou sente, creio que teremos resolvido um severo problema humano.
Acreditar em Darwin, ou naquilo que o médico diz, ou nas razões de Darwin, ou do médico, ou acreditar em dados, ou que uma teoria está certa, vai dar tudo ao mesmo e não adianta jogar com as palavras para as esvaziar de significado.
Perante os factos, a nossa condição física, humana, sensorial, perceptiva, cognoscente, é o que é e os factos são o que são. Tentar compreender o fenómeno do conhecimento dos factos é tentar compreender e explicar o fenómeno das crenças, que não são apenas verdadeiras ou falsas, certas ou erradas, mas não apenas o fenómeno das crenças. A maior parte dos factos relevantes para nós não coloca problemas de verdadeiro/falso, de certo/errado, mas já coloca problemas de bom, mau, bem, mal. Outros, ainda, colocam problemas de expectativas e de investimento, de apostas, que poderão ou não ser goradas. E isto é quanto aos factos, passado, a ciência é sobre factos, passados, não é sobre futuro, nem previsão, ou previsibilidade. Prever não é ciência. Ainda assim, a ciência sendo declaração acerca de factos, só acredita nessa declaração quem sabe, pode e quer. E, como dissemos no início, o acreditar nessa declaração (mesmo reproduzindo-a ipsis verbis) não garante qualquer correspondência entre essa declaração e aquilo que o declarante pensa ou entende acerca dela. A prova de um facto, sendo um facto, não é o facto, mas ainda há o problema do entendimento, que é subjectivo e, na melhor das hipóteses, intersubjectivo, porque, quanto à objectividade, não creio que seja possível demonstrá-la, ou prová-la, mesmo num contexto de ciência física pura e dura.
A questão do acreditar levar-nos-ia mais longe e tem mesmo a ver com a ciência e as hipóteses, porque acreditar ou não acreditar é, de algum modo, acreditar, até prova em contrário.

domingo, 20 de março de 2022

Democracias, autocracias e tiranias

As democracias têm-se adaptado razoavelmente à convivência forçada com ditaduras e ditadores e tiranias, ditas autocráticas, ou que, segundo um conceito de democracia muito particular, pela tomada do poder, se auto legitimaram, ou arrogaram, senhores naturais, de facto, das leis e dos governos. 

As democracias têm-se adaptado com uma resiliência, que é um dos seus atributos mais positivos, às políticas do facto consumado e do abuso de direito, que são apanágio dos autocratas e dos conquistadores. 

As democracias têm-se ajustado à conveniência de serem exemplo, pela via pedagógica e paciente da tolerância e do pluralismo democrático, para as autocracias arrogantes e fanfarronas, oferecendo-lhes também a outra face. 

Tudo na esperança de que a razão e a informação e a justiça e a democracia realizem aquilo que a democracia acredita serem seus méritos intrínsecos. 

Salvo raras excepções, porém, as ditaduras, os ditadores, as tiranias, os autocratas, não só se revelam irascíveis e esquivos à proximidade das democracias, como se perfilam ostensivamente perante o que consideram ser, não méritos, mas fragilidades destas.

sábado, 12 de março de 2022

Criar o divino

Depois de ter escrito dez bíblias

Achou que faltavam duas

Para perfazer doze

Como as horas do relógio

Mas no dogma da sua fé

Não havia mais que dez deuses

E teve que inventar dois

Durante sete dias

Dilacerado pela tentação

De criar o divino

Pressentindo que os deuses

Não são como as explicações

Que não pode haver duas verdadeiras.

quarta-feira, 9 de março de 2022

Templo em que se converte o templo

Quando lhe perguntaram quem era

Deu um nome

De onde viera

Outro nome

A que perguntas sabia responder

Não sabia

Mesmo quando respondia

Se tinha querer

Não queria ter

Mas tinha

E imensa tristeza

Cantava

Em pranto

Encantado canto

Estátua de movimento

Arrebatada do vazio

Do templo

Em que se converte

O templo.

 

terça-feira, 1 de março de 2022

A minha teoria

Os animais, em geral, e o animal humano, em particular, são estruturas físico-químicas em interação com outras estruturas físico-químicas, que resolvem tudo de um modo físico-químico, mais ou menos ruidoso, mais ou menos conflituoso, ou harmonioso, segundo reações de acomodação, incomodação, satisfação/insatisfação, que nós constatamos serem efeitos/causas umas das outras, que não estão propriamente sob controlo, embora pela sua natureza nos apareçam como tal. Por exemplo, quando sete cães disputam um osso, o emaranhado de causas e efeitos que se potenciam e estão por detrás da violência que podemos observar, não é nem mais nem menos descontrolado do que a calma que se segue ao facto de o osso ter sido devorado. São apenas modos, ou formas físico-químicas de estar. Anular o apetite dos cães para ossos, se resolve algum problema, talvez crie outros.
Os humanos aprenderam que os interesses e a partilha dos interesses se fazem pela físico-química, nomeadamente pela coacção e pela violência e que o exercício destas constitui a parte não menos importante da organização social.
É efectivamente o resultado natural de escolhas que não podem deixar de ser feitas, num quadro de possibilidades, reais ou imaginárias, subjectivas, intersubjectivas, ou objectivas, segundo critérios racionais de dever-ser.
Esta é a minha teoria, que julgo ser aplicável, aliás, a todo o tipo de acção, desde o pensamento mais simples, até à conclusão científica, passando pelo juízo estético, ético ou moral.
A parte não menos interessante desta teoria, na minha óptica, é que ela considera a escolha como a melhor (mesmo não sendo boa) e conduz a pensar, em geral, que, mesmo quando opta pela violência, o ser humano o faz na perspectiva de melhor.
Assim sendo, a humanidade, se não se aniquilar, vai progredir inelutavelmente, até por força da natureza do determinismo físico-químico, que não tem outro modo de ser.

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Dar certo

Não digas que nada dá certo

Se com esta certeza nada podes

E se puderes

O mais certo é não o ser.

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

O dinheiro do diabo

As árvores não resistem mais
mas não é nisso que eu penso
já fui inocente como a pomba
e pacífico como o ramo da oliveira
voava como só o vento voa
sobre o mar
subia as montanhas
sempre até aos cumes
sem vertigens
e penetrava nas profundezas
sem medo
da escuridão
porque o mundo era o único lugar
que não trocaria pelo céu
que muitos diziam querer trocar
e não faltou quem fechasse negócio
e ficasse com o dinheiro
do diabo.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

O modo como o objecto molda o sujeito

O modo como o objecto molda o sujeito e estrutura os seus processos de percepção, cognição, valoração, escolha, comunicação, convenção, negociação, é um modo em que o sujeito é quem tem o papel de ser moldado (ainda que isso não corresponda sempre a deixar-se moldar, ou não, ou não suponha a intenção, consciência, vontade de ser moldado).
O objecto não desempenha nenhuma actividade, nenhum papel, ou intencionalidade de moldar, influenciar, condicionar, o sujeito.
Estou a falar dos objectos físicos, não culturais e não biológicos, que estão no nosso ambiente.
Quanto aos objectos culturais e biológicos que interagem com o sujeito, a situação é diferente.
Desde os casos em que a interacção dos objectos culturais ou biológicos é mera interacção, por exemplo acidental, ocasional, não dirigida a “atingir” um certo efeito no sujeito, mas que efectivamente interfere e tem efeitos, até aos casos em que essa interacção é propositada e assumidamente, intencionalmente, dirigida a produzir efeitos no sujeito, o objecto molda o sujeito de inúmeros modos, muitos dos quais não estavam previstos e sem que o sujeito tenha o poder ou a liberdade de lhes escapar ou subtrair.