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sábado, 19 de setembro de 2020

O amor da sabedoria e a medicina

O amor da sabedoria foi e é um grande amor. 
Esta paixão revelou-se, para mim, o melhor antídoto contra outras paixões. 
Fosse por questõ
es de senso, de nexo, de coerência, de sentido, de valor, de entendimento e de harmonia com quem me rodeava, a forma de haver entendimento e harmonia com a catequista, o padre, as beatas e as professoras, era reproduzir de cor e salteado o que eles mandavam. 
Havia outras pessoas, analfabetas (de escrever, ler e contar), que me transmitiam a noção empírica de que todo aquele teatro, à volta de uma escola e de uma igreja e, lá mais em cima, na sede do concelho, o tribunal, o quartel e a esquadra da GNR, era de tal modo simbólico e cifrado, para não dizer enigmático, que tinha mais pena deles, com as suas plumas e vestes ritualizadas, quando não cheios de jactância na hierarquia das procissões coroadas de interminável e poderoso foguetório, do que dos pedreiros cobertos de pó, a tossicar na taberna, vítimas da silicose e do cancro do pulmão pela sílica, enquanto os filhos deles, que eram meus colegas de catequese e de escola, passavam fome e aprendiam a agradecer a Deus a sorte que tinham. 
As minhas dores e as minhas raivas e as minhas frustrações, por mim e pelos outros (familiares, amigos…) encontravam eco no conforto religioso das pessoas ignorantes que me rodeavam, em casa, na aldeia, na catequese diária, fosse da escola fosse da catequista, ou no castigo de algumas dessas pessoas que exerciam a autoridade, com violência, sem necessidade de a justificarem, fazendo recair sobre mim, criança, jovem, adulto, o ónus de justificar a minha conduta.
Quando entrei na fase de saber que o mundo não tinha começado quando nasci e que não era apenas o meu quintal, a minha aldeia, paróquia, professora, e que havia uma cidade, e médicos e farmácias e hospitais e depois, outra e outra e oceanos e filmes, tudo era mais difícil de conciliar, mas o amor da sabedoria, impaciente, tantas vezes cruel e ingrato, foi-se mostrando vantajoso como uma arma de defesa pessoal, ou de defesa geral, numa guerra. 
A todas as tentativas, mais ou menos reais, mais ou menos disfarçadas de ordem, ou simplesmente perpetradas, de me conduzirem, ou subjugarem, ou ignorarem, ou desprezarem, eu aprendi a perceber que a razão é a arma dos fracos e que a sabedoria é como um grande exército de razões. 
Esta consciência, resultante de muito pensamento construído sobre o pensamento e as ideias de tantos filósofos e pensadores e escritores, permitia-me colocar um médico, ou um juiz, ou um engenheiro, no seu lugar profissional, do mesmo modo que a mineralogia, a zoologia, a botânica, a química, estavam nos compêndios respectivos. 
A minha passagem pelas ciências, numa altura em que o país fervilhava por todo o lado e todo o tempo era pouco para nós, jovens à procura de saber quem tem razão, mostrou-me que a vida, a acção, a dinâmica, os desafios, os combates, a adrenalina, não estavam numa bancada de minerais, ou num laboratório de química, ou na exploração e conhecimento da flora. 
O carácter de urgência de certas situações, altera as prioridades.
Havendo prioridades a considerar na construção de um currículo académico, ou de um plano de formação profissional, estas têm mais a ver com questões de ordem técnica e prática, funcional, do que com razões de ordem teórica ou filosófica. 
Está fora de questão que um estudante, qualquer que seja a função ou a profissão que venha a desempenhar, só por ser estudante deva estudar tudo o que há para saber sobre todos os domínios.

Outra questão será: estará em melhores condições para abordar clinicamente um humano, do ponto de vista das medicinas, um médico robot, que só sabe de medicina (isto é possível?-esta era a provocação de Abel Salazar), ou um médico humano?
Para não me alongar, e deixando implícito muito do que poderia explicitar, não acredito que um robot possa filosofar. Que, tomando a realidade (que equivale ao que conhece) possa definir o ser tendo em consideração: o ser como um poder ser que foi /um dever ser (pelo menos quando falamos de ética) que é, e como ele, robot, quer ou deseja que seja…
Mas o médico, enquanto homem, é um filósofo que vive integrado num sistema de acção e de pensamento e de valores que, em grande parte, já assimilou o que os sistemas de cultura assimilaram ao longo da história. Este sistema de pensamento e de acção é um sistema de linguagens e de lógicas, nomeadamente matemática, cujo domínio varia muito de pessoa para pessoa e de robot para robot.

Não acredito que os robots decidam com base em valorações próprias, que não sejam programadas por humanos, mas os médicos fazem-no.
Neste capítulo, por ex., se é indiferente para o mundo que uma pessoa viva ou morra, já quanto à vantagem política e económica na sua sobrevivência, ainda que enfermo, ou na sua morte, os médicos e a indústria farmacológica e as tecnologias da saúde e todas as profissões que dependem do tratamento das pessoas, tanto ou mais do que os direitos fundamentais do homem e do cidadão, são um baluarte e uma fortaleza, cujos interesses, quando mais não sejam, de facto, garantem o respeito pela saúde e pelas vidas, por mais inúteis ou absurdas que sejam do ponto de vista de qualquer filosofia, religião, ideologia ou sistema de valores.

Carlos Ricardo Soares


sábado, 12 de setembro de 2020

A realidade e a razão

A realidade é expansiva, mágica, embrionária...abrange tudo o que existe (a realidade do que morre e do que não morre), razão, inteligência, conhecimento (aqui poderemos dizer que o que existiu e deixou de existir, conquanto seja conhecido, faz parte da realidade do conhecimento), linguagem, valores, comportamentos (a realidade dos comportamentos, que é imensa, é efémera, porque tem uma existência, a maior parte das vezes, instantânea, ficando dela, quando muito, a memória ou o registo fotográfico ou de vídeo, ou de relato...) o que se teve e já não se tem, ou se perdeu e o que se busca, caso exista ou venha a existir...enfim, a realidade do 1º segundo de tempo a seguir ao "big bang" não era nada daquilo que foi no tempo dos dinossauros, nem daquilo que foi no século XX, ou que é hoje.

Com este apontamento estou a ter um comportamento, a usar a razão e a linguagem e o conhecimento e estou a ampliar, a criar realidade.

Se, eventualmente, eu não tiver razão no que digo, nem por isso deixo de estar a criar realidade.

A realidade do conhecimento, baseada no uso da razão, está de tal modo ligada e intrincada com a realidade material e os comportamentos que, ao falarmos de sujeito de conhecimento e objecto de conhecimento, muitas vezes, estamos a falar da precedência da acção relativamente ao pensamento ou deste relativamente àquela.

A razão está para a experiência assim como esta está para aquela? Ter razão é o quê? E não ter razão? Quem tem razão?

Conheci um indivíduo que tinha razão, mas não tinha mais nada. E era acusado disso, de só ter razão...e fome. Conheci outros que tinham tudo, o que existia e o que viria a existir, mas não tinham razão. E também eram acusados disso.

A religião, muitas vezes, promoveu a razão da justiça e da solidariedade e do amor...Mas as suas premissas eram falsas.

A ciência da natureza descreve-a, verifica as causas e efeitos, quantifica-os, explica-os até ao ponto de dizer "isto é assim, porque acontece" ou, na geometria, "porque matematicamente é assim", pensemos no teorema de Pitágoras, mas não está a fazer mais do que constatar um facto.

Mas também podemos ter razão porque constatamos factos que são comportamentos, condutas, de pessoas que têm ou não têm razão.

E podemos ter razão, porque constatamos factos que são comportamentos, condutas, de pessoas, os quais não dependem de ter ou não ter razão.

Ter razão não é tudo e pode ser muito pouco, ou nada.

Nem tudo depende da razão. E nem todas as razões são boas.

Ser rico, saudável e feliz pode ser uma razão melhor para viver do que ser pobre, doente e infeliz.

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Equacionar a realidade

As palavras impõem-nos respeito e, se já sentiste isso, não estranhas que te diga que esse poder das palavras é um poder à tua disposição, um grande poder, cujos limites nunca saberemos, porque as palavras mudam de cada vez que tentamos usá-las e não se deixam domar, nem manipular completamente, por mais que tentemos usá-las e, até, fazer delas nossas aliadas. 
Mas não devemos intimidar-nos perante elas. 
Quanto mais as respeitarmos, mais improvável será que elas nos traiam. Nada disto, porém, pode ser garantido por ti ou pelas palavras. 
Temos de admitir que não controlamos tudo, aliás, é mais fácil controlar um automóvel do que conduzir um pensamento ou meras palavras . 
Mas não te assustes com o poder das palavras. 
Quanto mais as enfrentares, mais realidade descobrirás/construirás, porque elas são portas e janelas e cortinas e mapas dinâmicos que poderás abrir para ver onde tu também te vês a construir, a destruir ou a fazer nada. 
 Vou falar-te de equacionar. 
Quando falamos ou escrevemos, se o fizermos voluntariamente, estaremos a equacionar ou a equalizar. 
Equacionar é uma forma de pensar que não se satisfaz com a analogia. 
Já pensaste como é raro encontrar duas coisas parecidas? E duas coisas iguais? Até poderíamos afirmar que não há duas coisas iguais, embora tenham as mesmas propriedades. 
Equacionar obriga a distinguir o que for distinto, ou, pelo menos, a reconhecer o indistinto como uno. 
 Então, se tu disseres que A=B, estarás a falar de uma mesma realidade, A ou B, mas não de duas. 
 Equacionar levanta problemas que não existiam antes de equacionarmos e são problemas, não são fantasias. 
Fantasia seria, por exemplo, dizeres que A=B, porque A está diante de um espelho e B é o seu reflexo. 
Uma criança ingénua poderia dizer-te que A, diante de um espelho, continuaria a ser um A.

sábado, 22 de agosto de 2020

A filosofia tem sido muito maltratada (e ninguém merece). Um tempo sem paralelo

A filosofia não está à mercê do opinativo.
O opinativo tem feito um percurso de sucesso, por alguma razão, talvez boa.
As considerações críticas dos autores, não raro, assentam que nem uma luva neles próprios. Expostos a elas, não resistem minimamente.
Vivemos um tempo que não tem paralelo.
Debalde se invocam classicismos e cânones e profundezas e profundidades e retóricas de antanho…
Há mil anos quem tinha um olho era rei.
Hoje, quem tem dois olhos nem sabe o que é um rei e um rei não sabe o que é um olho, embora tenha dois.
Conhecemos facilmente o mundo de há mil anos.
E não faltam eruditos sobre o passado remoto, de há milhões de anos, incluindo o dos dinossáurios.
Mas não se encontram eruditos sobre os séculos XVII, XVIII, XIX, XX.
Embora de filósofo (médico, etc.) e louco todos tenhamos um pouco, a filosofia não está para o opinativo (bombástico) como o opinativo (bombástico) está para a filosofia.
A filosofia tem sido muito maltratada (e ninguém merece).
É da máxima importância, irmã mais velha (verdadeira sobrevivente ainda longe da maturidade) da ciência.

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Ela, sem cabeça, ele, sem coração

Há quem não tenha um membro, um dente, um olho…

Há quem não tenha estômago para certas coisas, quem não tenha ouvido, quem não tenha cabeça, porque a perderam, ou porque nunca a tiveram…

Há quem não tenha dois dedos de testa, unhas para tocar guitarra, canetas para a corrida, fibra, garra, talento, paixão, coragem, fé, inteligência, juízo, cérebro, governo, dinheiro, visão…

Mas o pior de tudo é não ter coração.

Por isso, devemos ir ao médico, de vez em quando, para ele verificar.

A cabeça até pode estar noutro lugar, que não em cima dos ombros. Quem não ouviu ainda: "onde é que tens a cabeça?". E o coração pode estar longe, preso a algum tesouro "o teu coração estará onde estiver o teu tesouro", possivelmente inacessível dentro de algum cofre forte. 

Neste caso, o médico pode receitar umas drogas para esquecer o tesouro. Aos poucos o coração recomeçará os batimentos no lado certo. 

Assim sendo não é bom ter um tesouro. 

Pelo menos, não é bom que esteja longe e, se já tiver passado a fronteira para o outro mundo, o pior que pode acontecer é rogar a deus que "tão cedo de cá me leve a ver-te, quão cedo de meus olhos te levou". 

E não estou a brincar. Camões não era para brincadeiras, sabia o que escrevia.


domingo, 2 de agosto de 2020

A melancolia e a palavra melancolia

A melancolia, antes de mais, é uma palavra. Aqui, deixa de ser subjectiva. 

A linguagem tem a virtude de objectivar o subjectivo e o defeito de não comunicar o subjectivo. A dificuldade de comunicar, em grande parte das vezes, está em que, ao fazê-lo, o subjectivo deixa de o ser, porque a linguagem não é subjectiva. 

Suspeito de que um dos trunfos da comunicação científica para ter eficácia resulta do uso de uma linguagem descontínua (ou digital).
De igual modo, a eficácia que a comunicação corrente procura depende e exige o uso de uma linguagem contínua (ou analógica), que não existe, porque a linguagem é descontínua (ou digital).
Suspeito de que estas hipóteses sejam revolucionárias, como o foram os primeiros estudos e descobertas sobre a perspectiva.
A realidade observada através de um espelho com uma área de 50 cm2, pode ter uma área de muitos Km2. 

E podemos pintá-la (representá-la) num quadro a qualquer escala. 

Uma das maravilhas da linguagem (não só da matemática) é que ela permite que percorras todos os labirintos e dês muitas voltas ao mundo e fales disso, sem saberes nada do que andas a fazer.

terça-feira, 21 de julho de 2020

Ler livros e pensamento crítico

A notícia de uma professora de português que disse, numa entrevista, não ser de ler livros, primeiro inquietou-me mas, depois de pensar, concluí que não era nada que eu já não soubesse que podia acontecer. 
Não é fácil admitir que um professor é mais e muito menos do que "o modelo" de professor.
Fala-se muito em "perfil do aluno à saída da escolaridade obrigatória". 

Todos esperam que o professor seja mais habilitado e inteligente e responsável, etc., do que um aluno à saída da escolaridade.
Adquirir o estatuto de professor é um passe de mágica incrível. 

A simples mudança de papel no teatro das operações, faz toda a diferença. 
E todos acreditamos nisto, ou, pelo menos, funcionamos como se acreditássemos.
Se pusessem a chefe das funcionárias a Directora da escola, no dia seguinte, ela era a pessoa mais dotada e competente que alguma vez se viu e todos os doutores eram uma cambada de maledicentes, que tinham de ser metidos na ordem.
Mas a questão é mesmo "ler ou não ler".
É certo que quem lê tem imensa dificuldade em fazer-se entender por quem não lê.
Quem não lê cumpre os requisitos da sociedade do pré-formatado. 

Comprar tudo feito é o modelo em que vivemos. 
Não ter de aprender a fazer as coisas. 
Não ter de pensar, porque já tudo está pensado, etc..
Por que nos torturaríamos a pensar, com as nossas limitadas capacidades de iniciados, sobre aquilo que as maiores inteligências já pensaram e repensaram durante séculos e nos colocaram "gratuitamente" nas mãos?
O chamado espírito crítico é andar para trás, é perder tempo, é, no fim de contas, uma estupidez, porque a roda e a pólvora estão ali à vista, tudo o que precisamos de saber, está ali, não precisamos de inventar nada.
Aliás, ter pensamento crítico é justamente perceber o que acabo de referir. 

Sair disso é pedir uma reprovação por burrice. 
Ser questionador, perturba, ser dissonante é conflituoso, disruptivo, desagregador, desagradável, enervante, hostil, exigente e incompreensível. Quem quer isso?
Se já está tudo pensado e comprovado e simplificado e optimizado (e decidido) por que raio hás-de pensar e problematizar e dizer por outras palavras?
Não estão os problemas todos resolvidos? 

Somos nós que vamos resolvê-los?
Que é que estamos, então, a fazer na escola? 

Isto não é pensamento crítico?
Os partidos, as seitas, as religiões, os clubes, os filósofos, os cientistas, os fabricantes, os comerciantes…, não têm as respostas para as questões e os problemas?
Quem és tu/sou eu para discutirmos e pormos em causa o que quer que seja?
As bíblias e os altares não tinham todas as respostas para tudo?
Se tu fores capaz de reproduzir as crenças da tua igreja, as ideias dos principais filósofos, as teorias dos maiores cientistas, os argumentos do teu partido, já serás tido como sábio.
Se questionares tudo isso, ainda que abras brechas nos edifícios de terracota, o que te perguntarão será sempre sobre aquilo que é sabido.
Aprende de cor o catecismo da tua disciplina ou religião, ou a cassete do teu grupo ou partido e representa o respectivo papel que, para seres excelência, só não deves fazer ondas.

sábado, 18 de julho de 2020

O protagonismo dos livros

Os livros também são protagonistas de aventuras e de histórias, por alguma razão, empolgantes e inesquecíveis. 
Como o livro, se houver, serão poucas as realizações humanas que mobilizaram e mobilizam tanto o labor, a criatividade, o génio, a inteligência e a paixão do homem. 
Se não acolhe tudo o que importa exprimir e comunicar, porque nem tudo é susceptível de ser plasmado ou veiculado em livro, poder-se-á dizer que nada do que aspira a ser dito e merece deixaria de ser feito em livro, se pudesse.