O
amor da sabedoria foi e é um grande amor.
Esta paixão
revelou-se, para mim, o melhor antídoto contra outras
paixões.
Fosse por questões
de senso, de nexo, de coerência, de sentido, de valor, de
entendimento e de harmonia com quem me rodeava, a forma de haver
entendimento e harmonia com a catequista, o padre, as beatas e as
professoras, era reproduzir de cor e salteado o que eles
mandavam.
Havia outras pessoas, analfabetas (de escrever,
ler e contar), que me transmitiam a noção empírica de que todo
aquele teatro, à volta de uma escola e de uma igreja e, lá mais em
cima, na sede do concelho, o tribunal, o quartel e a esquadra da GNR,
era de tal modo simbólico e cifrado, para não dizer enigmático,
que tinha mais pena deles, com as suas plumas e vestes
ritualizadas, quando não cheios de jactância na hierarquia das
procissões coroadas de interminável e poderoso foguetório, do
que dos pedreiros cobertos de pó, a tossicar na taberna,
vítimas da silicose e do cancro do pulmão pela
sílica, enquanto os filhos deles, que eram meus colegas de
catequese e de escola, passavam fome e aprendiam a agradecer a Deus a
sorte que tinham.
As minhas dores e as minhas raivas e as
minhas frustrações, por mim e pelos outros (familiares, amigos…)
encontravam eco no conforto religioso das pessoas ignorantes que me
rodeavam, em casa, na aldeia, na catequese diária, fosse da escola
fosse da catequista, ou no castigo de algumas dessas pessoas que
exerciam a autoridade, com violência, sem necessidade de a
justificarem, fazendo recair sobre mim, criança, jovem, adulto, o
ónus de justificar a minha conduta.
Quando entrei na fase de
saber que o mundo não tinha começado quando nasci e que não era
apenas o meu quintal, a minha aldeia, paróquia, professora, e que
havia uma cidade, e médicos e farmácias e hospitais e depois, outra
e outra e oceanos e filmes, tudo era mais difícil de conciliar, mas
o amor da sabedoria, impaciente, tantas vezes cruel e ingrato, foi-se
mostrando vantajoso como uma arma de defesa pessoal, ou de defesa
geral, numa guerra.
A todas as tentativas, mais ou menos
reais, mais ou menos disfarçadas de ordem, ou simplesmente
perpetradas, de me conduzirem, ou subjugarem, ou ignorarem, ou
desprezarem, eu aprendi a perceber que a razão é a arma dos fracos
e que a sabedoria é como um grande exército de razões.
Esta
consciência, resultante de muito pensamento construído sobre o
pensamento e as ideias de tantos filósofos e pensadores e
escritores, permitia-me colocar um médico, ou um juiz, ou um
engenheiro, no seu lugar profissional, do mesmo modo que a
mineralogia, a zoologia, a botânica, a química, estavam nos
compêndios respectivos.
A minha passagem pelas ciências,
numa altura em que o país fervilhava por todo o lado e todo o tempo
era pouco para nós, jovens à procura de saber quem tem razão,
mostrou-me que a vida, a acção, a dinâmica, os desafios, os
combates, a adrenalina, não estavam numa bancada de minerais, ou num
laboratório de química, ou na exploração e conhecimento da
flora.
O carácter de urgência de certas situações,
altera as prioridades.
Havendo prioridades a considerar na
construção de um currículo académico, ou de um plano de formação
profissional, estas têm mais a ver com questões de ordem técnica e
prática, funcional, do que com razões de ordem teórica ou
filosófica.
Está fora de questão que um estudante,
qualquer que seja a função ou a profissão que venha a desempenhar,
só por ser estudante deva estudar tudo o que há para saber sobre
todos os domínios.
Outra
questão será: estará em melhores condições para abordar
clinicamente um humano, do ponto de vista das medicinas, um médico
robot, que só sabe de medicina (isto é possível?-esta era a
provocação de Abel Salazar), ou um médico humano?
Para
não me alongar, e deixando implícito muito do que poderia
explicitar, não acredito que um robot possa filosofar. Que, tomando
a realidade (que equivale ao que conhece) possa definir o ser tendo
em consideração: o ser como um poder ser que foi /um dever ser
(pelo menos quando falamos de ética) que é, e como ele, robot, quer
ou deseja que seja…
Mas o médico, enquanto homem, é um
filósofo que vive integrado num sistema de acção e de pensamento e
de valores que, em grande parte, já assimilou o que os sistemas de
cultura assimilaram ao longo da história. Este sistema de pensamento
e de acção é um sistema de linguagens e de lógicas, nomeadamente
matemática, cujo domínio varia muito de pessoa para pessoa e de
robot para robot.
Não
acredito que os robots decidam com base em valorações próprias,
que não sejam programadas por humanos, mas os médicos
fazem-no.
Neste
capítulo, por ex., se é indiferente para o mundo que uma pessoa
viva ou morra, já quanto à vantagem política e económica na sua
sobrevivência, ainda que enfermo, ou na sua morte, os médicos e a
indústria farmacológica e as tecnologias da saúde e todas as
profissões que dependem do tratamento das pessoas, tanto ou mais do
que os direitos fundamentais do homem e do cidadão, são um baluarte
e uma fortaleza, cujos interesses, quando mais não sejam, de facto,
garantem o respeito pela saúde e pelas vidas, por mais inúteis ou
absurdas que sejam do ponto de vista de qualquer filosofia, religião,
ideologia ou sistema de valores.
Carlos Ricardo Soares