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segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Ela, sem cabeça, ele, sem coração

Há quem não tenha um membro, um dente, um olho…

Há quem não tenha estômago para certas coisas, quem não tenha ouvido, quem não tenha cabeça, porque a perderam, ou porque nunca a tiveram…

Há quem não tenha dois dedos de testa, unhas para tocar guitarra, canetas para a corrida, fibra, garra, talento, paixão, coragem, fé, inteligência, juízo, cérebro, governo, dinheiro, visão…

Mas o pior de tudo é não ter coração.

Por isso, devemos ir ao médico, de vez em quando, para ele verificar.

A cabeça até pode estar noutro lugar, que não em cima dos ombros. Quem não ouviu ainda: "onde é que tens a cabeça?". E o coração pode estar longe, preso a algum tesouro "o teu coração estará onde estiver o teu tesouro", possivelmente inacessível dentro de algum cofre forte. 

Neste caso, o médico pode receitar umas drogas para esquecer o tesouro. Aos poucos o coração recomeçará os batimentos no lado certo. 

Assim sendo não é bom ter um tesouro. 

Pelo menos, não é bom que esteja longe e, se já tiver passado a fronteira para o outro mundo, o pior que pode acontecer é rogar a deus que "tão cedo de cá me leve a ver-te, quão cedo de meus olhos te levou". 

E não estou a brincar. Camões não era para brincadeiras, sabia o que escrevia.


domingo, 2 de agosto de 2020

A melancolia e a palavra melancolia

A melancolia, antes de mais, é uma palavra. Aqui, deixa de ser subjectiva. 

A linguagem tem a virtude de objectivar o subjectivo e o defeito de não comunicar o subjectivo. A dificuldade de comunicar, em grande parte das vezes, está em que, ao fazê-lo, o subjectivo deixa de o ser, porque a linguagem não é subjectiva. 

Suspeito de que um dos trunfos da comunicação científica para ter eficácia resulta do uso de uma linguagem descontínua (ou digital).
De igual modo, a eficácia que a comunicação corrente procura depende e exige o uso de uma linguagem contínua (ou analógica), que não existe, porque a linguagem é descontínua (ou digital).
Suspeito de que estas hipóteses sejam revolucionárias, como o foram os primeiros estudos e descobertas sobre a perspectiva.
A realidade observada através de um espelho com uma área de 50 cm2, pode ter uma área de muitos Km2. 

E podemos pintá-la (representá-la) num quadro a qualquer escala. 

Uma das maravilhas da linguagem (não só da matemática) é que ela permite que percorras todos os labirintos e dês muitas voltas ao mundo e fales disso, sem saberes nada do que andas a fazer.

terça-feira, 21 de julho de 2020

Ler livros e pensamento crítico

A notícia de uma professora de português que disse, numa entrevista, não ser de ler livros, primeiro inquietou-me mas, depois de pensar, concluí que não era nada que eu já não soubesse que podia acontecer. 
Não é fácil admitir que um professor é mais e muito menos do que "o modelo" de professor.
Fala-se muito em "perfil do aluno à saída da escolaridade obrigatória". 

Todos esperam que o professor seja mais habilitado e inteligente e responsável, etc., do que um aluno à saída da escolaridade.
Adquirir o estatuto de professor é um passe de mágica incrível. 

A simples mudança de papel no teatro das operações, faz toda a diferença. 
E todos acreditamos nisto, ou, pelo menos, funcionamos como se acreditássemos.
Se pusessem a chefe das funcionárias a Directora da escola, no dia seguinte, ela era a pessoa mais dotada e competente que alguma vez se viu e todos os doutores eram uma cambada de maledicentes, que tinham de ser metidos na ordem.
Mas a questão é mesmo "ler ou não ler".
É certo que quem lê tem imensa dificuldade em fazer-se entender por quem não lê.
Quem não lê cumpre os requisitos da sociedade do pré-formatado. 

Comprar tudo feito é o modelo em que vivemos. 
Não ter de aprender a fazer as coisas. 
Não ter de pensar, porque já tudo está pensado, etc..
Por que nos torturaríamos a pensar, com as nossas limitadas capacidades de iniciados, sobre aquilo que as maiores inteligências já pensaram e repensaram durante séculos e nos colocaram "gratuitamente" nas mãos?
O chamado espírito crítico é andar para trás, é perder tempo, é, no fim de contas, uma estupidez, porque a roda e a pólvora estão ali à vista, tudo o que precisamos de saber, está ali, não precisamos de inventar nada.
Aliás, ter pensamento crítico é justamente perceber o que acabo de referir. 

Sair disso é pedir uma reprovação por burrice. 
Ser questionador, perturba, ser dissonante é conflituoso, disruptivo, desagregador, desagradável, enervante, hostil, exigente e incompreensível. Quem quer isso?
Se já está tudo pensado e comprovado e simplificado e optimizado (e decidido) por que raio hás-de pensar e problematizar e dizer por outras palavras?
Não estão os problemas todos resolvidos? 

Somos nós que vamos resolvê-los?
Que é que estamos, então, a fazer na escola? 

Isto não é pensamento crítico?
Os partidos, as seitas, as religiões, os clubes, os filósofos, os cientistas, os fabricantes, os comerciantes…, não têm as respostas para as questões e os problemas?
Quem és tu/sou eu para discutirmos e pormos em causa o que quer que seja?
As bíblias e os altares não tinham todas as respostas para tudo?
Se tu fores capaz de reproduzir as crenças da tua igreja, as ideias dos principais filósofos, as teorias dos maiores cientistas, os argumentos do teu partido, já serás tido como sábio.
Se questionares tudo isso, ainda que abras brechas nos edifícios de terracota, o que te perguntarão será sempre sobre aquilo que é sabido.
Aprende de cor o catecismo da tua disciplina ou religião, ou a cassete do teu grupo ou partido e representa o respectivo papel que, para seres excelência, só não deves fazer ondas.

sábado, 18 de julho de 2020

O protagonismo dos livros

Os livros também são protagonistas de aventuras e de histórias, por alguma razão, empolgantes e inesquecíveis. 
Como o livro, se houver, serão poucas as realizações humanas que mobilizaram e mobilizam tanto o labor, a criatividade, o génio, a inteligência e a paixão do homem. 
Se não acolhe tudo o que importa exprimir e comunicar, porque nem tudo é susceptível de ser plasmado ou veiculado em livro, poder-se-á dizer que nada do que aspira a ser dito e merece deixaria de ser feito em livro, se pudesse.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

Letra morta

Há imensas coisas que não passam de letra 
e outras tantas que são letra 
morta.
Até há imensos projetos de arquitectura 

que só o arquitecto vê.
São coisas, correspondem a ideias, 

mas enquanto não saem do papel...

terça-feira, 16 de junho de 2020

Quando olho é como se já não visse


Quando olho é como se já não visse
por ser tão longe e tão profundo
o significado em que tudo o que vejo
se tornou
nesta surpresa que sempre procurei
quando acreditava que o futuro
era o tempo de realizar sonhos
que o presente então
ao meu esforço negou
 eu olhava e era como se não visse
por não ser preciso
mesmo assim eu queria ver
o significado em que tudo se tornaria
o presente me dá quase sem eu querer
quando olho como se já não visse
o que desejava ver.

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Continuidade/descontinuidade

Gostava de referir algumas questões atinentes à continuidade/descontinuidade entre empirismo/racionalismo, considerando que, no tocante ao inato, às ideias inatas, percepções inatas, emoções, as neuro-ciências têm apresentado estudos muito curiosos em recém-nascidos.
Por outro lado, parece-me que o empirismo é, pelo menos, tão racional quanto o racionalismo é empírico. A própria experiência racional é uma experiência. Experiência, neste sentido, é também a experiência estética, poética, religiosa.
Estamos imersos na experiência, mesmo quando flutuamos até à superfície e colocamos a cabeça de fora (se é que isso acontece, ou pode acontecer). A música e o prazer e a dor são experiências.
Parece-me um trocadilho afirmar, como já tenho lido em enciclopédias, que "só a experiência permitirá decidir da verdade ou falsidade de um enunciado".
Não é a experiência, mas a razão, que permitirá decidir da verdade ou falsidade de um enunciado. Mas o que é a razão sem a experiência?
Outra questão é a da objectividade/subjectividade. A comunicação processa-se no plano da objectividade. O subjectivo deixa de o ser quando se comunica. A linguagem é um domínio objectivo.
O relativismo é outro problema inerente ao conhecimento, mormente enquanto correlação empírica, e não necessidade lógica.
Agora, brincando um pouco, em inúmeras situações em que estamos cheios de razão, nem por isso temos mais do que aqueles que, não tendo razão, têm o que não temos. Quando só temos razão, ainda podemos ser acusados de não termos nada.

sexta-feira, 29 de maio de 2020

Os democratas que não construíram a democracia

Ainda nos falta um bocado de trabalho científico e filosófico, descontraído e desinteressado, isento e tranquilo, para começarmos a compreender o problema da linguagem, como parte das respostas e das perguntas sobre a realidade incluindo a dela própria.
Mas estão a fazer-se progressos notáveis. 
A linguagem, segundo uma abordagem interessante que li, parece que funciona num esquema digital, descontínuo, e a realidade, a vida, as emoções, funcionam analogicamente, sem descontinuidade. 
Esta hipótese, para mim, foi uma grande descoberta (andamos sempre a descobrir o que já foi descoberto?). 
O alcance desta conjectura, de que a linguagem comunica, ou pretende comunicar, a realidade mas que o faz representando-a digitalmente, envolve um conjunto de problemas interessantíssimos e que podem ser perigosos. 
Deixa o caminho aberto a todas as formas de comunicação e de mal-entendidos e de equívocos, voluntários ou não, sobre a realidade, que sempre será diferente da nossa representação dela e, inerentemente, da comunicação que dela se faz. 
A literatura, a poesia, o teatro e as artes...não obstante serem de algum modo jogos que "pervertem" e "subvertem" e "transgridem" a linguagem digital para tentarem ser analógicas, como a realidade, não deixam de ser linguagens... 
Não estou muito certo de estar a ser suficientemente rigoroso na linguagem e não tenho mais do que a suspeita de que estou a pensar numa questão algo revolucionária, em termos de teoria do conhecimento.
Quanto à democracia, enquanto ideia, nunca será destruída por ninguém. Se existe um problema porque a democracia nunca existiu para além da ideia e quanto mais se deseja, mais parece estar longe da sua concretização, é preciso identificá-lo e resolvê-lo, mas não me parece que seja com jogos de palavras como "os democratas que destruíram a democracia". 
 Apostaria na expressão “os democratas que não construíram a democracia”.