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segunda-feira, 23 de junho de 2025

Aqui jaz um homem que tinha razão


Vi-vos passar

com os olhos cheios

de luzes

e as mãos quase sempre ocupadas

por objetos

ofuscados por promessas

alheios ao esplendor dos grifos

e das águias nas alturas

planando sobre o eco dos vales

e a sombra das suas asas

projetada pelo sol nos rios

ninguém vos culpe por não verdes

o mundo

ensinou-vos a correr antes de olhar

mas aqui debaixo desta pedra

onde já não corro nem quero

não me interessa ter razão

nem espero que alguém

algum um dia

pare para levantar os olhos

e a seus pés

neste lugar esquecido

acenda uma vela

e deixe uma luz

a tremer

entre o que foi dito

e o que ficou por dizer.

              Carlos Ricardo Soares

terça-feira, 17 de junho de 2025

Servidões voluntárias, involuntárias e sujeições


O ser bom ou mau é um problema de valoração ética, moral, ou simplesmente de sobrevivência. O ser ideológico, por si só, não colocando qualquer problema, não pode ser bom nem mau. É como uma coisa qualquer, uma pedra, um fruto, uma estrela, o Big-bang. Ideológico é da natureza da cultura, do humano. A linguagem é ideologia, ou está impregnada de ideologia. Ideologia é a matéria prima de algo que não consegue esconder aquilo de que é feito. O ser ideológico é como ser oxigénio. A ideologia, como o oxigénio, está em toda parte, invisível, mas essencial. Nós vivemos, pensamos, amamos, julgamos e agimos dentro de atmosferas ideológicas.
E assim como o oxigénio pode ser vital ou tóxico, dependendo da dose e do contexto, as ideologias também podem nutrir ou envenenar. Uma ideologia pode inspirar justiça e liberdade, ou aprisionar em preconceitos e desigualdades.
Talvez o mais importante seja ganhar consciência do ar que respiramos, ou seja, desenvolver um olhar atento sobre as ideias que naturalizamos e sobre aquelas que poderíamos reinventar.
O que faz a diferença é a nossa ideologia não se compatibilizar com as outras e não sermos capazes de conviver e de conciliar a nossa visão com a visão dos outros. Este problema costuma consistir em disputas por poder, porque ideologias não são apenas ideias. Elas moldam políticas, instituições, privilégios.
Se não temos forma de demonstrar que a nossa ideologia deve prevalecer, então devemos aceitar, no plano da ação política, uma negociação. Não no sentido de ceder princípios, mas de reconhecer que, num mundo plural, o convívio exige escuta, mediação e construção coletiva. A política vive da arte do possível.
Como dizia Norberto Bobbio, a democracia não é o regime da verdade absoluta, mas o da convivência entre incertezas.
À primeira vista, pelo que significa educar (“fazer sair” ou “conduzir para fora”, do latim educare, ligado à ideia de cultivar, desenvolver, orientar. Não é só transmitir conteúdo, mas despertar potência, revelar possibilidades que ainda não floresceram) a educação acontece numa dialética complexa entre aquilo que é e aquilo que deve ser, sem esquecer que este dever-ser está em constante reformulação. O que, ontem, devia ser, hoje pode já ser diferente, no entanto, o que foi não pode ser modificado, assim como muitas das suas consequências e efeitos.
Pensar em que deve consistir a educação é, no fundo, pensar no tipo de ser humano e de mundo que queremos cultivar.
Que horizontes poéticos e políticos seremos capazes de abrir com a trangalhadança horrível das bombas a demolir e a incinerar o resultado de todos os nossos esforços? Que poema seremos capazes de escrever quando o chão treme? Que poema podemos salvar do apocalipse? O que resiste? O que diz “estamos aqui!”?
 São cruciais e várias as questões levantadas, no artigo e nas referências a Étienne de La Boétie, que viveu tempos de grande conflitualidade que lançavam as bases do exacerbar do absolutismo e cujas preocupações acerca da tirania eram, sobretudo aos olhos do observador posterior, sintomáticas.
Vou focar a minha intervenção em dois ou três problemas, desde logo, o problema da servidão voluntária, algo de contraditório no plano da lógica de uma liberdade teórica e abstrata, mas em linha com a realidade da liberdade possível, ou a melhor possível. Um dos equívocos mais perniciosos ao entendimento das relações do indivíduo (cidadão ou não) com estruturas grupais, sociais, coletivas, estaduais, ou mesmo particulares, é supor a natureza contratual, voluntária (livre e esclarecida) dos vínculos.
O valor da liberdade, num mundo em que o indivíduo se confronta necessariamente, ou inevitavelmente, com outros, reside na sua capacidade de estabelecer um preço para essa liberdade. Ou, se quisermos, a liberdade tem um preço que nem todos podem pagar. Podemos gritar aos quatro ventos que a liberdade é inegociável, que é um valor indisponível, mas isso não altera o facto de que a liberdade tem um custo. Quanto a saber quem suporta esse custo, umas vezes quem o “paga” fá-lo à custa dos outros, mas o importante é que seja pago.
A servidão voluntária, nos tempos atuais, designa-se eufemisticamente por contrato social ou contrato de trabalho, ou sistema de reciprocidades (trocas) de interesses políticos e civis.
Saber a partir de que ponto ou momento de necessidade é que um indivíduo se dispõe, voluntariamente, a aceitar uma servidão é, certamente, diferente de saber a partir de que ponto ou momento de necessidade é que um indivíduo se dispõe a “comprar” essa servidão. Quem “compra” a servidão não está nem se coloca em servidão voluntária, ao contrário de quem “vende”. Mas isto é nos casos em que podemos falar de negociação, contratualização, da servidão. Quando se trata de relações, por exemplo, com o Estado, o problema assume outros contornos. E é legítimo (será?) questionar se e até que ponto o indivíduo tem o direito de prescindir do Estado e de, independentemente disso, ser respeitado. Aqui, a voluntariedade da servidão, ou da sujeição, é mesmo uma fantasia.
 De qualquer modo, choca-me muito mais a servidão voluntária dos que se acolitam e, afobadamente, se prestam a servir estruturas de poder ditatoriais e não democráticas, ou piores, investindo-se e envergando as prerrogativas de senhores, apesar de o fazerem com sentido de servidão, tanto mais repugnante quanto menos se questionam e mais se atropelam para conseguirem as prerrogativas que não desdenham designar, com falsa modéstia, de servidão. Estou a pensar em todos aqueles que, de bom grado e sem sentido de responsabilidade se alienam ao cumprimento de ordens, venham de quem vierem, desde que sejam ordens de quem pode e que seja preferível, na economia das servidões humanas, servir ordens do que ficar-lhes sujeito, porque há sempre nestes casos algum grau de escolha, entre servir uma lei injusta ou lutar por um direito. Mas para estes a questão do direito já resolveu tudo na origem da sua formação.
Não se sentem responsáveis, até porque, para eles não faz sentido falar de direito que não seja lei. Dirão “o direito não é uma questão nossa”, e di-lo-ão tanto mais convictamente quanto mais se sentirem privilegiados e satisfeitos na sua servidão.
Os tais para quem a liberdade é um problema dos outros, pelo menos enquanto o for apenas dos outros. E servem tanto melhor quem mais poder detiver. Aliás, quanto mais fiéis forem a esse poder, pelo qual não se sentem responsáveis, mais zelosos se consideram.
 Daqui passo para o problema dos valores e da universalidade de certos valores éticos. O que é que faz com que algo seja correto ou incorreto, se não for a norma?
Esses são daqueles para quem o assassínio de inocentes só é crime se houver uma lei que o diga. E são os mesmos que declaram não saber o que é uma lei injusta. E que não sabem nem aceitam razões para se lutar contra uma lei.
E há aquela questão dos valores serem ou não serem construídos pelas crianças e pelas pessoas, em geral. Diria que os valores normativos não dependem, na sua formulação e na sua vigência, de ninguém em particular. 
Já a valorização e a avaliação, ética, jurídica, moral, de convivência, que cada indivíduo faz, desde a infância, incluindo a avaliação das próprias normas expressas, é algo inevitável, desejável e que deve ser promovido se a nossa perspectiva for aquela que favorece uma “servidão” mais livre e mais esclarecida, em todas as situações em que não seja possível escapar-lhe, como acontece na “sujeição” ao Estado.
Nascemos e crescemos num ambiente cultural e social de relações de servidão, em que estas, algumas vezes, se apresentam como vantajosas. Os indivíduos, normalmente, anseiam, desde muito cedo, e competem entre si, até no mercado de trabalho, por servidões que são vistas como meios de obter alguma liberdade, como é a que resulta de um trabalho retribuído, de envergar uma farda, obter uma classificação, ganhar uma medalha. Nestes casos, servir é preferível a, simplesmente, estar desmobilizado, ou desempregado, que é uma forma de sujeição, ainda mais gravosa do que, por exemplo, a mera sujeição ao Estado.
Mas retomando as questões de ética, de fé e de religião, analisá-las filosoficamente, ou como meros problemas sociológicos, representa desafios diferentes com resultados diferentes, ainda que complementares. Baseando-me na minha experiência e nas minhas percepções, as pessoas funcionam, e comportam-se, muito pragmaticamente, mesmo quando praticam uma fé ou uma religião e, no que respeita à ética, também serão raros os casos em que alguém entende e pratica uma ética que seja contrária aos seus interesses. Até pessoas muito devotas, e não só guardiões dos costumes, tendem a ignorar completamente as razões que subjazem aos seus hábitos, por vezes escrupulosos, de se posicionarem no observatório que para si próprios reclamam. Vão à missa mas não querem saber de evangelhos, nem de Deus, vão aos tribunais mas não querem saber de leis, nem de direito, vão à escola mas não querem saber do que lá se trata, dão-lhes uma arma e disparam sem saberem contra quem, participam nas procissões mas não querem saber de bíblias, falam mas não querem saber de dicionários, cantam e dançam mas não querem saber de música. É tudo na ótica do utilizador. Mas, por mais dissecável e compreensível que seja esta realidade, é inquietante e um tanto fictício tentar encontrar outra ordem nisto que não seja a do consumidor (de todo o tipo de produtos, inclusive culturais).
Só por si a servidão, e mesmo a escravidão, não são negativas, quer na perspectiva do indivíduo, quer na perspectiva social e ético religiosa, dependendo do “senhor” a quem se serve e do que é servido. Ser escravo da virtude é uma forma de liberdade que alguns proclamam como a verdadeira liberdade, justamente por ser voluntária, mas é duvidoso que dispense ou libere o indivíduo de outras servidões sociais, quiçá mais comezinhas.
Quando se nasce e se cresce e se vive em democracia, mais ou menos ampla e efetiva, perde-se um pouco a perspectiva daquilo que seria nascer, crescer e viver em ditadura, em que, não apenas a sujeição do indivíduo ao poder do Estado seria mais severa, como as servidões, em geral, seriam menos voluntárias e as mais voluntárias também seriam ética e moralmente condenáveis.
Quando se nasce e se cresce e se vive em democracia, mais ou menos ampla e efetiva, a perspectiva da cidadania, por outro lado, corre risco de não ser perceptível por aqueles que não são chamados a indagar e a responder acerca da relação que o indivíduo mantém com os outros e com o Estado, porque nem sempre o indivíduo equaciona quanto o seu estatuto é devido aos outros e ao Estado, ainda que, em alguns casos, os outros e o Estado lhe devam mais do que têm a haver.

                            Carlos Ricardo Soares
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quarta-feira, 11 de junho de 2025

O problema do amor à verdade

É impossível ficar indiferente à vida e obra de Pico Della Mirandola. Considerando a época em que viveu e a idade com que escreveu as suas Teses, aqueles que reconhecem a originalidade e o caráter revolucionário das suas ideias, que foram inovadoras e influenciaram profundamente o humanismo renascentista, podem dar-se por felizes ao conseguirem essa experiência filosófica.
Quanto à motivação, às condições e às razões para os pensadores, filósofos, cientistas e artistas se dedicarem a fazer o que fazem e como o resultado da sua dedicação e do seu trabalho podem ser, e são mais ou menos, afetados e influenciados por esses fatores, são problemas da maior relevância. Sobretudo no que respeita à filosofia que é uma disciplina, por excelência, egocêntrica, no sentido em que é essencialmente da ordem dos discursos autoreflexivos, não vinculada a quaisquer valores. Isto não significa que cada filósofo, à sua maneira, não lhe encontre aquele valor que faz com que lhe valha a pena filosofar. Mas uma profissão de filósofo como o é, por exemplo, de advogado, ou de psicólogo, ou de professor, ou de comentador, supõe determinados serviços a que a filosofia não é suscetível de se prestar.
No mundo dos factos e das constatações é possível distinguir o que é da natureza física objetiva e o que é da ordem da cultura, da linguagem e dos discursos. É nesta que encontramos o conhecimento e os valores, como produto, criação e função humana, sendo que é esta função que lhes confere realidade de conhecimento e de valores.
Diria que conhecimento e valores são realidades funcionais, só existem enquanto funcionam e na medida, muito variável e incomensurável, em que funcionam. Se deixar de haver quem os pense, deixam de existir. Ao contrário das realidades físicas.
As constatações a que o filósofo se dedica são principalmente desse mundo da linguagem e dos discursos. Quer se trate de juízos de verdade ou de ciência, quer se trate de juízos de valor, ninguém paga a um filósofo para fazer a defesa ou a apologia de um veredicto, ou de uma sentença, porque um filósofo não se vincularia a tal, sob pena de não estar a ser filósofo e, por outro lado, se isso acontecesse, logo surgiriam filósofos a impugnar e a contrariar, propondo outros veredictos e outras sentenças, ou seja, ninguém pagaria por um veredicto não vinculativo, ou que não tivesse a aptidão de vir a tornar-se vinculativo.
A questão sobre o conhecimento ser ou não ser valorativamente neutro é muito pertinente, sobretudo nos casos do filósofo e do cientista. Se, no caso do filósofo, temos o problema do amor ao conhecimento, ao saber, à verdade, à sabedoria (como não dizer que é um problema se o amor é cego e se, em matéria de conhecimento, todas as visões são poucas?); no caso do cientista, mesmo que não esteja determinado pelo fim, ou ao serviço de uma técnica, como geralmente está, sendo o interesse da descoberta o maior apanágio do trabalho científico, o amor pela verdade não é “conditio sine qua non”.

                  Carlos Ricardo Soares

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Liberdade, a minha, a tua e a deles

Ainda nos rescaldos do 25 de abril de 1974, quis o acaso que um proprietário rural entrasse na tasca da aldeia, onde nunca tinha estado antes, que não era homem de tascas, nem de familiaridades com a populaça, embora fosse dono de adegas e constasse que até dormia nelas, se desse jeito. Ia a passar e lembrou-se de parar para cumprimentar o tasqueiro, que já não via há uns anos e a quem já vendera muitas pipas de vinho.
A propósito de uma lengalenga de propaganda partidária, que ia saindo dum transistor com tantas interferências que o dito proprietário rural julgou tratar-se de um mar agitado com alguém a afogar-se que gritava por socorro, o tasqueiro lamentou que viesse aí o comunismo. Fosse porque essa alusão ao bicho papão do comunismo lhe soasse a provocação, fosse por outro motivo, o proprietário rural aproximou-se do tasqueiro e, a meia voz para que as paredes não ouvissem, disse “quem dera que viesse, senhor Amílcar”. Mas então não ia ter que repartir as suas terras por aqueles que não têm nenhuma? “Se vier um comunismo, eu ainda vou receber terras daqueles que têm mais do que eu”.
Este proprietário rural já tinha enfrentado um grupo de revolucionários num comício da paróquia esclarecendo-os acerca da sua posição político ideológica “Eu não tenho nada contra o poder absoluto se for eu a detê-lo”. Os revolucionários, a propósito da liberdade de abril, insistiam que a liberdade que ele defendia não era a mesma que eles defendiam. Que ele defendia a liberdade dos liberais capitalistas, de poderem usar o seu poder e riqueza sem restrições, que não aceitavam ter de prestar contas a ninguém e muito menos aos desapossados que deles dependiam e que eles exploravam. Assumiam-se como legisladores, que estavam acima da lei, e a usavam em seu benefício exclusivo, como ditadores com os quais, de resto, se identificavam e colaboravam.
Que a liberdade que eles defendiam, pelo contrário, era a liberdade do jugo e da condição de sujeição e de exploração que lhes impunham, era a liberdade dos oprimidos e dos desapossados, dos indigentes sem voz e sem poder, aos quais eram negadas quaisquer oportunidades de participar politicamente na definição e no estabelecimento das condições concretas de uma liberdade igual para todos.
Neste grupo havia uns que diziam “nós não queremos ter uma liberdade como a vossa, não queremos ser admitidos no vosso clube e poder beneficiar de privilégios como os vossos. Essa não é a liberdade pela qual lutamos. Essa é a liberdade contra a qual lutamos.” e havia outros que proclamavam “nós queremos a mesma liberdade que vós tendes, isso é que é liberdade, podermos fazer o mesmo que vós e, se possível, mais. Essa é a liberdade pela qual lutamos. Não lutamos contra essa liberdade.”
Passados tantos anos, 50?, desde esses eventos, as lutas continuam. Porque o problema da liberdade existe realmente para aqueles que a não têm e não a conseguem.

             Carlos Ricardo Soares