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sexta-feira, 14 de maio de 2010

O Velha - III

                                                                                                                                                                      
Até ao dia em que foi à cidade, só tinha convivido com dez pessoas entre família e vizinhos. Habituara-se a falar e a cantarolar sozinho, para os animais, para as plantas e para as coisas. Lembrava-se de quando se mirou no espelho da água do rio pela primeira vez. Teve a sensação nítida de que se tratava de outra pessoa e, mesmo sozinho, sentia-se como se estivesse acompanhado por uma espécie de sombra.
Na cidade, tudo era intensamente novidade. Os seus olhos e o seu cérebro não tinham memória de nada do que viam. Anos mais tarde ainda estaria refém da memória desse encontro fabuloso com a cidade, dessa experiência tão marcante. Via as pessoas a entrar e a sair das casas e das lojas e imitava-as. Sorria para elas como se as conhecesse e achava graça às expressões delas. Entrou num café e não sabia o que fazer nem o que pedir. Era de tal modo o centro das atenções que sentiu algo parecido com felicidade, sentimento que ele praticamente nunca havia experimentado. Em nenhum rosto viu sinais de hostilidade ou desdém. E quando se riam dele, então é que ele gostava. E ria também. Com dificuldade, porque não tinha rido mais de duas vezes na vida. Uma, quando ouviu pela primeira vez a rádio. Outra, quando um missionário passou pela aldeia e o ensinou a fazer o sinal da cruz.  
                                                                                                                                                                     

segunda-feira, 10 de maio de 2010

O Velha - II

Um dia teve uma ideia que o fez saltar. Deu um grito e as ovelhas pararam de mastigar. Se estivesse numa grande cidade teria um rebanho imenso de transístores. Quando teve de ir ao médico, ao passar à porta dos estabelecimentos comerciais, que tinham, quase todos, um rádio a tocar, ficou encantado. Achou tanta graça à cidade que perdeu o gosto de viver no monte. Assim que saiu do consultório com o diagnóstico de desnutrição crónica, em vez de ir comer, que já o não fazia há mais de cinco horas, deixou-se perder pelas ruas da cidade de Pérolas Falsas enquanto pensava que todas as pérolas são falsas.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

O Velha - I



O Velha apresentava-se sempre como Alberto Caeiro e dizia ser pastor de transístores. Para muitas pessoas isso correspondia ao anúncio de uma seita esotérica, religiosa ou política. Mas não era. O Velha não era pastor de uma seita, era mesmo pastor de rebanhos de ovelhas e de cabras. Com o tempo foi-se tornando também pastor de transístores e, pouco a pouco, declarava-se a si próprio como pastor de transístores que deixara de ser pastor de gado. Na infância foi pastor de gado. Nunca pertenceu a uma tribo. Aprendeu a viver sozinho e a lidar sozinho com os seus medos. Mais tarde frequentou a escola para adultos e descobriu que era Alberto Caeiro e que tinha mais que um heterónimo, sendo um deles Fernando Pessoa. Mas a maior descoberta da sua vida foi o transístor. Desde o dia em que o descobriu que passou a fazer-se acompanhar dele para os montes com os rebanhos. Assim que pôde comprou mais alguns e levava-os todos para os sintonizar em estações diferentes. Enquanto as ovelhas pasciam, colocava os transístores em posições estratégicas no solo e ouvia de tudo em simultâneo. Se mais estações de rádio houvesse mais transístores teria comprado.


quarta-feira, 7 de abril de 2010

Cantarei os pacíficos

Não me dêem o que não faz falta
A tragédia menos trágica que a tragédia
De ser testemunha do mal
Se não fosse mais trágico pensar que sentir
De um mundo belo por natureza
O odioso da desumanidade
Enquanto puder
Que a vida é breve
Mas o tempo não
Amarei os pacíficos.

quinta-feira, 1 de abril de 2010

O pregador e o propagandista

Está sol num grande largo povoado de sombras um pregador sob uma árvore adverte em nome do bem como um sol que faz desaparecer sombras no canto de lá um propagandista reclama liberdade como um sol que faz sombras.

quarta-feira, 31 de março de 2010

Aceito o teu convite

Aceito o teu convite para ir a tua casa
Tomar café
Mas como estarás vestida?
E não aparecerá ninguém
(a cantar numa voz de ópera?)
Já te vi subir o pano
Como o suave sol de Maio
Sobe a colina
Faz-me ver grandes nuvens brancas
E temer adormecer
Sem o desejar.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Ao amor desconhecido

Se tivesses uma morada ou telefone
Que eu soubesse
Um telemóvel ou e-mail que
Provavelmente tens
É improvável que escrevesse esta carta sem endereço
Nem sequer a escreveria
Faço-o porque não te conheço
E sou fiel
Ao sonho e mais profundo desejo
Sem trair o anjo do meu cortejo
E sem temer
Vir-me a arrepender
Pelo menos enquanto não te encontrar
Se tivesse dúvidas sobre o ridículo das cartas de amor
Elas cessariam com esta
Não por ser simples carta de amor
Mas por ser ao amor desconhecido
Que confiança pode merecer-te alguém que viveu
Oitenta anos sem te ter tido
Ou que o afirma
Mais indigno de ti
Quem diz que amou sem te conhecer
Ou quem não amou à espera que isso acontecesse
Mas tu não vieste?

domingo, 21 de março de 2010

Lady


Distingue-se o doce do amargo
Sem subtil virtude
Sem febril verdade
Nestes rios e nestes mares
Sem calma
A pomba do dilúvio
É o falcão
 Da liberdade
Sem esconder os apetites
 A paixão
Sai ao caminho
A solidão
À companhia dos pensamentos
Prefere a das folhas ao vento
A do dia aos olhos
A dos ouvidos à noite
Ao sabido
O que não sabe.