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sábado, 12 de junho de 2010

O Velha - IX

O quadro clínico do Velha agravara-se e não havia ninguém referenciado como familiar ou amigo a quem o hospital pudesse comunicar a situação. A última pessoa com quem ele tinha vivido falecera dois dias antes dele se despedir da Serra Alta e de, ao chegar a Pérolas Falsas, chorar de inconsolável tristeza. E já tinha passado perto de um ano.
Era a tia-avó Anja, abandonada à solidão, numa aldeia de mais de cem casebres vazios, de portas e janelas escancaradas, cada vez menos visitados pelos fantasmas da memória enferma ao ponto de a ensurdecer e cegar a maior parte do tempo, desde que se levantava até que adormecia.
Com o seu rebanho de transístores, o Velha distraía-se de a ver, àquela que o criara de pequeno, que não conheceu pai nem mãe, nem lhe disseram alguma vez se eram vivos.
Com os anos, ele cresceu e a tia, envelhecendo, deixou, pouco a pouco, de o reconhecer. O Velha não saberia dizer a idade com que ela, arrastando o pesado corpo, no inverno, se deslocava para onde houvesse sol e, no verão, para onde a água fresca cantasse na fonte.
E não sendo capaz de, por si só, regressar a casa era ele quem, incerto de ser ouvido, a guiava, falando todo o tempo do doloroso e lento percurso sobre calhaus rolados, certamente pré-históricos, até aos cinco tormentos que era subirem cinco degraus de granito da escada desmantelada da entrada. A tia-avó, sem poder comentar, gemia e chorava, amparada ao sobrinho-neto e ao cajado cujas marcas da passagem do tempo haviam sido já por este apagadas. Quando, finalmente, chegavam à cozinha ela esperava que ele pusesse na mesa algum alimento para debicarem.
Também foram assim os derradeiros momentos da vida dessa mulher de quem não se sabe se chegou a pensar que o mundo existia para lá da Serra Alta.

terça-feira, 8 de junho de 2010

O Velha - VIII

O Amante de Catástrofes, como era conhecido o director da rádio local, correu mundos e fundos para encontrar o Velha. Assim que soube do interesse do pastor por transístores, pela primeira vez, desde que se dedica a noticiar catástrofes, deixou de dormir por um motivo diferente, para poder pensar num programa de que o Velha fizesse parte. Antes, porém, era preciso encontrá-lo e convencê-lo a participar. Depois de cinco dias de buscas infrutíferas, só conseguiu saber que estava hospitalizado por ter sido assaltado e agredido, quando regressava das aulas no ensino nocturno. Entrou no estúdio, ainda de madrugada e, antes de ir para o ar, ordenou aos repórteres de serviço «desta vez suspendam as reportagens de catástrofes; com um pouco de sorte, haverá um dia sem que ocorra alguma, e tratem de encontrar o pastor alucinado por rádios. Procurem-no no hospital. Quero entrevistá-lo, se possível, em directo.» Um dos repórteres, impensadamente, retorquiu «mas, ó chefe, olhe que isso pode ser uma catástrofe!». Sem contemplações, o Amante de Catástrofes ripostou «Deixe-se de ironias e traga-me notícias desse homem».

terça-feira, 1 de junho de 2010

O Velha - VII

O Velha mexeu-se. Estava a acordar da anestesia geral. O cirurgião que o operou inclinou-se para ver-lhe os olhos. A médica anestesista perguntou-lhe «está bem? Como se chama? Qual é o seu nome?». «Fernando Pessoa», respondeu. O cirurgião arregalou os olhos e abanou negativamente a cabeça. A anestesista insistiu na pergunta «Como? Qual é o seu nome?». «Álvaro de Campos», voltou a responder. Desta vez ambos os médicos esboçaram um sorriso. E consultaram a ficha clínica. Ovelha era o nome que lá constava. «Não se levante, não se esforce. Está tudo bem, não está?».
O Dr. Pedrinho olhou para a Drª Água, tirou os óculos com uma das mãos e, com a outra, massajou suavemente os olhos cansados. «Não se esforce, deixe-se estar em repouso.»
O Velha pôs-se a falar com muita lentidão e alguma dificuldade. Os médicos ficaram à escuta. «Sobe ao pódio dos teus pés/Que o prémio te sinta /Mesmo que não sejas vencedor/Te diga que o és/Canta o hino /Que aprenderes/A olhar para longe /Do que fores/Capaz/Que o silêncio/No fim /Seja murmúrio/De paz.»

quinta-feira, 27 de maio de 2010

O Velha - VI

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Depois das aulas, no regresso a casa, perdeu-se. Estava habituado a orientar-se pelas estrelas e, nessa noite, não havia estrelas. Os candeeiros da iluminação pública desorientaram-no. Deu voltas e voltas sem saber por onde e ao passar pela terceira vez na mesma ponte sobre um riacho convenceu-se de que devia seguir em frente, na direcção do pio dos mochos.  Quando parou de andar, vencido pelo cansaço, ao primeiro sol da manhã, viu que o lugar desconhecido em que se encontrava era o fim do mundo.
Incrível! – exclamou.
Uma regra de oiro dos montes penhascosos em que foi pastor durante vinte anos iluminou-lhe a mente «diante de um precipício, andar para trás é a única forma de andar para a frente». Mas não sentia vontade de retroceder.
Esses momentos ficariam na sua memória como os do primeiro encontro com aquela que viria a ser sua companheira inseparável até ao último dia de vida: a Insónia.
A sombra de uma árvore enorme que tinha sido arrancada pela mão de um gigante poderoso era um convite a que se abrigasse do sol para dormir.
Deteve-se diante daquele raizeiro ao ar, maior do que a casa dos sete anões.  Ao peso das pálpebras, fechou os olhos sem resistência, escutando rugidos rotundos que lhe lembravam trovões, mas eram as vagas do mar. Do mar que ele não via e nunca vira. A insónia não o largava. Quem dera rebanhos para contar.



terça-feira, 25 de maio de 2010

O Velha - V


O primeiro texto que subscreveu como Alberto Caeiro levantou um problema ao professor Ruga. O Velha não compreendia onde estava o problema. Não estava a plagiar. Também não estava a usurpar a identidade de ninguém. Mas o professor não aceitou que ele se fizesse passar por um autor consagrado. Como é que alguém ousava atribuir os seus escritos a uma celebridade das letras?
Para o Velha não havia problema, porque as coisas não eram assim. Ele não atribuía a autoria dos seus escritos ao Alberto Caeiro que, aliás, nunca escreveu nada. Ele atribuía a autoria dos seus escritos a si próprio, verdadeiro Alberto Caeiro. De carne e osso, com larga experiência de pastoreio.
Cão tomara partido pelo Velha e dizia de cor os seguintes versos do poema “Observo”:
               A terra treme a água salta o vento arranca
               A bata branca
               A rã enxuta
               A bruxa manca
               A puta ama a ama puta.

terça-feira, 18 de maio de 2010

O Velha - IV

Nem ele próprio sabe quando é que percebeu a origem da alcunha o Velha. Mas foi em casa que, carinhosamente, começaram a tratá-lo assim. Nas próprias palavras, quando nasceu, já tinha aspecto de velha. À medida que foi crescendo, esse aspecto acentuou-se e, como ele não dava por outro nome, porque nunca o baptizaram e não saberia dizer outro nome por que fosse tratado ou conhecido, um colega da escola para adultos, zarolho e corcunda, identificava-o por Velha. E Velha continuou. O zarolho era a sua companhia preferida que o tratava assim, não por despeito, mas por genuína simpatia.
Por sua vez, tratava as pessoas por alcunhas que lhes atribuía por associá-las a animais, a coisas e a outras pessoas. Ao corcunda, que se tornou seu amigo, chamava Cão, honrando-o assim com a associação ao notável navegador português que explorou o rio Congo. Apesar de ser zarolho, nunca lhe ocorreu cognominá-lo de Camões. O Cão, como ele lhe chamava, não tinha nada que o pudesse associar ao grande vate, a não ser a deficiência ocular. A associação pelo mais, não pelo menos, anuiu o Velha consigo próprio.
Ao Antunes, um colega sisudo e pouco sociável, que ficava no fundo da sala de aula e se torturava ao computador, com jogos de justas medievais, enquanto fingia trabalhar nas fichas que o professor distribuía, o Velha chamava Lobo Sem Alcateia.
A sua descoberta gloriosa, no entanto, veio a ser que o Alberto Caeiro era ele e que Fernando Pessoa era um dos seus heterónimos.
Foi o começo de uma nova era.

sexta-feira, 14 de maio de 2010

O Velha - III

                                                                                                                                                                      
Até ao dia em que foi à cidade, só tinha convivido com dez pessoas entre família e vizinhos. Habituara-se a falar e a cantarolar sozinho, para os animais, para as plantas e para as coisas. Lembrava-se de quando se mirou no espelho da água do rio pela primeira vez. Teve a sensação nítida de que se tratava de outra pessoa e, mesmo sozinho, sentia-se como se estivesse acompanhado por uma espécie de sombra.
Na cidade, tudo era intensamente novidade. Os seus olhos e o seu cérebro não tinham memória de nada do que viam. Anos mais tarde ainda estaria refém da memória desse encontro fabuloso com a cidade, dessa experiência tão marcante. Via as pessoas a entrar e a sair das casas e das lojas e imitava-as. Sorria para elas como se as conhecesse e achava graça às expressões delas. Entrou num café e não sabia o que fazer nem o que pedir. Era de tal modo o centro das atenções que sentiu algo parecido com felicidade, sentimento que ele praticamente nunca havia experimentado. Em nenhum rosto viu sinais de hostilidade ou desdém. E quando se riam dele, então é que ele gostava. E ria também. Com dificuldade, porque não tinha rido mais de duas vezes na vida. Uma, quando ouviu pela primeira vez a rádio. Outra, quando um missionário passou pela aldeia e o ensinou a fazer o sinal da cruz.  
                                                                                                                                                                     

segunda-feira, 10 de maio de 2010

O Velha - II

Um dia teve uma ideia que o fez saltar. Deu um grito e as ovelhas pararam de mastigar. Se estivesse numa grande cidade teria um rebanho imenso de transístores. Quando teve de ir ao médico, ao passar à porta dos estabelecimentos comerciais, que tinham, quase todos, um rádio a tocar, ficou encantado. Achou tanta graça à cidade que perdeu o gosto de viver no monte. Assim que saiu do consultório com o diagnóstico de desnutrição crónica, em vez de ir comer, que já o não fazia há mais de cinco horas, deixou-se perder pelas ruas da cidade de Pérolas Falsas enquanto pensava que todas as pérolas são falsas.