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sábado, 10 de outubro de 2009

O LIVRO DE TODO O CONHECIMENTO (I)

O dia de hoje foi normal até há pouco, quando decidi sentar-me para escrever sobre o dia de hoje. Ainda sem saber porquê, comecei logo a ter a percepção de que o dia de hoje foi, afinal, um dia extraordinário. Levantei-me de madrugada com a história do livro de todo o conhecimento na cabeça mas só escrevi o título porque as ideias não desenvolviam. Voltei para a cama e não dormi a pensar que tinha de levantar-me antes das oito, para a abertura da bolsa. Às oito já estava em frente do computador, como venho fazendo há anos. Nesta altura, a história do livro de todo o conhecimento parecia-me ainda mais difícil de escrever, como se tivesse sido um sonho. Sabem como é difícil, para não dizer impossível, passar os sonhos para o papel?! Quanto à bolsa, mais um dia à espera da abertura de Wall Street! Adiante. Banho. Aula de Economia sobre sociedade de consumo, laxismo, hedonismo e os males que podem advir para o mundo. “Quando as batalhas terminam aparecem os valentes”…
Apetecia-me tanto comer tripas à moda do Porto regadas com uma garrafa de tinto de 37,5cl…
Mas estava à minha espera o rei, desculpem, não era o rei, era a princesa, bem, vocês não conhecem, linda de entontecer, envergando diáfanos atributos, que me concederia o privilégio de a fazer feliz entre o período do almoço e o do lanche.
Cheguei atrasado. Não previra que uma fila de carros embandeirados retardasse o trânsito com euforias altifalantes porque é tempo de campanha eleitoral e “Viva a República”.
Logo constatei que um indivíduo, vestido de branco, de pé, num estrado colocado na rotunda, de megafone numa mão e uma bandeira branca na outra, tinha feito parar duas caravanas de manifestantes, uma do PS, que seguia em direcção indefinida e, outra do PSD, que andava às voltas. O indivíduo do megafone e da bandeira branca clamava distintamente, ora para a caravana dos do PS ora para a caravana dos do PSD, num tom messiânico:
«Eu não podia sentir-me mais à margem deste espectáculo. Será por isso que o considero triste? Eu não faço parte desta sociedade? Não me identifico com ela? Não me comprometo com ela? Não gosto dela? Se pudesse estava noutro sítio, com outras pessoas? Por favor, responda quem souber. Não pensem que não sou político dos sete costados ou que não tenho partido. O meu partido é não ter nenhum dos partidos existentes. Passividade não é comigo. E, quanto a ir votar, preciso de mais alternativas para me sentir livre. Ouviram? Livre. De Liberdade. O voto em branco é pouco. A abstenção, os mentores do sistema político converteram-na em nada, assim como os votos nulos.
Sou político, tenho política e a minha política é esta: deixem de manipular as pessoas pelos medos, tentem manipulá-las pelas genuínas alegrias e direitos. Não lhes acenem com direitos com o objectivo, dissimulado, de lhes cobrar obrigações e deveres. A democracia só não perdeu completamente o significado de poder exercido pelo povo, não porque os políticos, a classe política, o represente legitimamente, mas porque, apesar desta incongruência grave, o povo vai exercendo o seu poder por outras formas, pagando os custos elevados de todas, porque, na realidade o dito povo paga aos políticos para exercer o poder que não exerce e paga o contra poder para fazer face aos mesmos políticos que contra si o exercem.»
Julgo ter percebido bem estas últimas palavras, mas não garanto, porque as caravanas dos manifestantes faziam cada vez mais barulho, com claxons, apitos e altifalantes, com o objectivo aparente de abafarem o som do megafone.

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Só tu és bela


Eu nunca fui senhor de nada
Olhei sempre as coisas
Como a alegria ou a tristeza
Dobra a alma de um escravo

Às vezes andei por onde gostaria
E aprendi que há quem aprenda a gostar
Eu não
Não saberia falar de coisa nenhuma
Porque o canto das aves
É a minha obsessão pelas virtudes
Saber que não morrerei delas
Mas da arte
Que falta sempre na vida
Como nas obras
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De arte

Só tu és bela para sempre
Despindo-te da vaidade
Aos abismos do meu desejo
Como um espelho irresistível
Te rouba o corpo.

domingo, 4 de outubro de 2009

Se houver adeus

Se houver adeus
Afastar-me-ei do que sou
E deixar-me-ei mergulhado
No silêncio predestinado
Não como nu vou e volto
Do mar
Mas morto
Que tem na memória
Uma vida
Cheia de vozes
Se não
Afastar-me-ei a pensar na ignorância
Nos horizontes sufocantes
Das catedrais que vão ruindo
Com uma lágrima insensível
Com a semente de um rio
Deixarei o que amava
Sem direcção

Até a brisa mais suave
Se não me ignorar
Me sentenciará de penas eternas
Se não
A minha existência
Não passou de uma ilusão.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Da tua pele que se aflige

Com lábios devassos e impuros
Afloro as camuflagens sensíveis
Da tua pele que se aflige
Abro com os dedos
As folhas do teu livro casto
Como uma tempestade impiedosa
Para o fruto bamboleante.

domingo, 27 de setembro de 2009

De como se mata e como se morre

Um lago um mar um oceano
A verdade
Não sei
Um céu talvez
Uma fundura por explorar
No mastro alto do dia
Um corvo pousado
Uma bandeira negra
Que à noite se oculta
Na casca de noz sem horizonte

Os meus olhos triunfam com a visão
Das grandiosas cidades
Mas a memória das florestas devastadas
É a história de como matam os homens
E como morrem
E uma lição de como se mata
Que não nos ensina a morrer

O nosso país tão grande
Que não cabe em Portugal
Os nossos automóveis
As nossas casas e
Os nossos computadores
Todas as lojas com tudo
E as músicas omnipresentes
Não são suficientes
Para nos salvar

O linguajar excelente
Que sai dos abismos do coração
É como aquela bandeira ao vento
Plantada na areia
Pelo porta estandarte
Que tombou

Se a alma tem fome
Nunca se sacia dos dias
Que voltam sempre
Sobre as carnificinas
No seu altivo triunfo

Terra e mar são poderosos aliados
Dos homens na escuridão
Que escutam no vento
Gemidos dos vingados

Se tropeçares n’alguma certeza
Por andares perdido na cidade
Pensa como é inquietante
Ver um exército que dorme.

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Enquanto a morte não chega


O vento lá fora
Numa dança de folhas sem fim
Embalo do tempo
Demora
Futuro presente em mim

Crianças jogam à bola
Na relva seca pelo verão
Que deixa em volta da escola
A forma de um coração

Paisagem para uma alma
Que o corpo não libertou
A dor é vindima calma
Do sol que já declinou

Como é belo dar a face
Oh vida como nos demos.

domingo, 20 de setembro de 2009

Como é belo o teu dizer

Como é belo saber ver
Do lugar onde cheguei
Do luar que acreditei
Do deitar tudo a perder
Do não sei pra onde vou
Como é belo compreender
Que o tempo nunca parou
Nas rosas que vi nascer
No vaso do nosso amor
Como é belo saber ver
Que a vida lança raízes
No solo estéril da dor
Como é belo ouvir dizer
As palavras que me dizes.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

O meu sonho

Ao olhar para a agenda pus-me a reflectir sobre as tarefas marcadas para este dia e perdi-me em pensamentos sobre as minhas origens e como tenho sido, desde sempre, um homem sem sonhos (se é que eu, por não ter sonhos, compreendo o que isso é). A primeira coisa que me ocorreu ao ver que tinha de apresentar-me no posto da GNR às 14:30h, foi que, aos oitenta anos, eu podia ser preso por crimes que nunca cometi. De repente, este pensamento tomou-me completamente ao ponto de eu esquecer que a minha morte que o meu médico tinha agendada devia preocupar-me mais. Nem sei se houve algum motivo inconsciente para que deixasse de anotar na agenda o facto previsto (com data marcada) da minha morte. Se calhar foi porque numa agenda só devem constar coisas da vida. É capaz de haver quem consiga explicar lindamente estas curiosidades. E, sem me aperceber, acabei por embrenhar-me em profundas meditações sobre os meus pais e os meus primeiros tempos de vida. Éramos uma família rica. Diria até, podre de rica. Faltava-nos o que não tínhamos, e que era imenso, como a toda a gente, mas tínhamos muitas coisas que faltavam à esmagadora maioria da população. Ouro tínhamos muito. Sonhos, que eu saiba, nenhuns. Ignoro se alguma vez estes nos fizeram falta, aos meus pais e a mim. Nem quando ouvia continuamente na rádio uma cançonetista ligeira repetir em notas alegres que não tinha ouro mas tinha tudo porque tinha sonhos. Hoje, interrogo-me sem saber a razão de o meu cavalo lusitano, que eu montava com cinco anos de idade, se chamar Sonho. Só os meus amigos percebiam que era de um cavalo que se tratava quando eu dizia que cavalgava o Sonho. Um dia, referindo-se a um homem andrajoso que percorria as freguesias a pedir esmolas e que eu admirava por, na sua simplicidade, dizer poesias em tom profético e magistral, Valquíria, a mulher mais velha da quinta, que já servira no tempo dos meus avós, segredou-me, convicta da minha cumplicidade, que aquele homem era muito rico porque tinha um sonho. Eu sempre quis ter um sonho, porque parecia evidente que isso era o melhor que se pode ter. E dizia-o sem rebuço. Até nas minhas orações, sobretudo quando a vida corria mal, eu pedia a Deus que me desse um sonho. À medida que os anos passavam e que eu tinha cada vez mais tudo o que queria, mais intensa e perplexa era a minha necessidade, o meu desejo, de ter aquilo que todos tinham sem dificuldade e que eu nem com rezas conseguia. No meu décimo aniversário, quando o meu avô perguntou o que eu queria de prenda, não pensei no regresso da minha querida mãe, que tinha abalado há menos de um ano e nos deixara inconsolavelmente inconformados e infelizes. Disse-lhe simplesmente que queria ter um sonho. Ele não mostrou surpresa. Sorriu com um sorriso de compreensão que me deixou confortado e, por fim, disse «também vivi até hoje com esse sonho». O meu avô tinha setenta anos. Era um poeta que nunca vi a escrever ou a ler versos que tivesse escrito. Não tenho a certeza de ter compreendido o alcance da resposta que o avô me deu. Uns anos mais tarde, uma miúda cujo nome não esqueci mas não vou revelar e que eu achava a única rapariga digna de ser considerada bela, cruzou-se comigo no escuro do corredor de acesso à biblioteca do liceu, encostou-me um dedo ao umbigo e de olhos fulminantes atirou: «todas as raparigas sonham com um rapaz como tu!». Há coisas que têm mais ou menos influência e repercussões na vida das pessoas. A minha vida foi definitivamente marcada por este episódio. E ainda agora me surpreendo a tirar ilações desse acontecimento: ela não disse que eu era o sonho de todas as raparigas, nem que eu era o sonho dela. A tosse cavernosa do reitor, que saiu do seu gabinete a escassos passos de nós, anulou a minha tentativa de fazer algo mais que ficar calado. E a única rapariga digna de ser considerada bela foi embora sem saber o que eu lhe teria dito. Desse episódio a imagem que guardo com mais nitidez é a do reitor envolto numa nuvem de fumo de tabaco a expelir relâmpagos de um cigarro seguidos do trovejar assustador da última vez que tossiu. Não estive nas cerimónias fúnebres.