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quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Os meus poemas

Os meus poemas nem sempre iluminam
Nem sempre obscurecem
Os meus passos
Nem sempre sobem
Nem sempre descem
Escarpas
Escadas
A minha imaginação
Nem sempre se perde
Nem sempre me perde
Atalhos
O meu mundo nem sempre aparece
Nem sempre o reconheço
Recônditos de asas
Repouso
Um pouco por toda a parte
O meu diário nem sempre é aquilo
Em que escrevo
Nem sempre escrito
Nem sempre apagado
A minha aventura nem sempre no espaço
Poemas atraem
O futuro
O seu calor nem sempre mata
Ilha
No crepúsculo
Nem sempre
A montanha
Atrás de outra
Nem sempre perdi o cavalo
Nem sempre ouvi
Uivos.

domingo, 10 de outubro de 2010

Canção do tempo perdido


Hoje acordei de manhã
E acordei bem
A última é a melhor
Se não for a que lá vem

Canto para quem não está
e não canto para ninguém
Para cantar não é preciso
Mais do que a voz que se tem

Palavras leva-as o vento
Se a memória o deixar
Que nem tudo o tempo leva
Nem tudo há-de levar

Canção do tempo perdido
Não te percas a escutar
Se não tiveres ouvido
Para as horas a passar.



domingo, 3 de outubro de 2010

Agora dava-me jeito

Agora dava-me jeito escrever um poema
Preferencialmente o poema que toda a gente
Gostaria de ter escrito
E dava-me jeito sentir um grande amor
Pela humanidade
Preferencialmente pelo desgraçado
Que perdeu tudo o que ganhou com o suor
De uma vida de trabalhos honestos
Para financiar uma guerra de mafiosos
Extorcionistas

Dava-me jeito sentir que sou um herói
Na luta contra o mal e o terror
Dava-me jeito não sentir esta dor
Que dói
Porque nada sinto

Dava-me jeito sentir o que penso
E escrever o que sinto
Mas só penso o que sinto 
E não sinto o que minto.



segunda-feira, 27 de setembro de 2010

A Poesia e os malfeitores

Onde medra a anomia
É farta a vilanagem
O que não é feito com arte
Não é bem feito
Onde há arte
Há poesia
Não há crime perfeito
E se existisse
A arte não seria
A puta
Que o parisse
Se a arte tem defeito
Ainda ninguém o disse.
 

sábado, 18 de setembro de 2010

Amor adulterino

Luz e sombra sem perfídia
Emboscadas na ternura
Disputando à bela orquídea
Humidade e temperatura

Será como tu quiseres
E não como eu imagino
Será como te atreveres
No amor adulterino

Pelo tempo e pelos lugares
Emboscados na ternura
Celebrando nos altares
De uma absolvição futura

Luz e sombra sem perfídia
Emboscadas na loucura
Devolvendo à bela orquídea
Toda a razão da doçura.

domingo, 12 de setembro de 2010

Dá-se o caso

                                                       
Pequeno almoço com janelas

Para um quadro                          
Com milhares de anos             

É assim que pensas                 
É assim que dizes                     
O momento                                 

A mulher ao lado                         
Está doente                                   
E o homem ao fundo                  
Está a escrever no guardanapo
Para o outro mundo                   

Já se faz tarde                             
E temos pela frente                    
Um dia para visitar museus     

Dormimos pouco                       
Mas estou contente                   

Tu fazes-me sentir vivo           
Num mundo de memórias      
De imensas coisas mortas     

Fazes-me sonhar                      
E não devia ficar triste…         
                                                       

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

É assim que eu fico



Em lençóis de um linho antigo
De olhos abertos na noite sem estrelas
Como um navegante de um ranger

Constante

Do apodrecer dos lenhos
E ainda o mar não envelhece

Ao contrário do que me acontece.


quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Sem dinheiro



Um belo dia encontrou-se sem dinheiro. Estava sozinho. O dinheiro não, ele. Como sempre. Mas dessa vez, pior.
Estava um belo dia. Como o mundo nunca lhe parecera. Dizer mundo significa a perspectiva da esquina da rua das pontas de cigarro no chão com o beco das ratazanas arroxeadas de fome, como barrigas de figos.
Não. Decididamente, não era uma perspectiva friorenta e emporcalhada. De nauseabunda, só a ideia de que rir implicava abrir a boca e arreganhar a taxa e de que respirar, só pelo nariz e o estritamente necessário.
Sentia-se tão impossível… que tinha vontade de rir, senão a bandeiras despregadas, pelo menos a bom rir.
Estava um belo dia. Como o mundo nunca lhe parecera. Mas inacessível.
Em algum lugar, da sua imaginação, havia fartura e muito desperdício.
E ele, sem dinheiro.
Excluído? Não. Sentia-se incluído na ideia de que tudo lhe era estranho . Qualquer coisa em que tocasse tinha dono. Achava que até as ratazanas de felpos baços, à míngua de lixo e de toda a espécie de porcaria e de dejectos, o miravam como um concorrente a temer.
Triste e injusta conjectura. Poucos sítios como aquele dispensavam serviços de limpeza e recolha de imundícies. Cada dia que passava a população de ratazanas ficava reduzida a metade. Sem estudo se concluiria que, dentro de uma semana escassa , e sem qualquer desratização sistemática, o último abencerragem deveria os derradeiros momentos de sobrevivência ao facto extremo de devorar cadáveres dos congéneres.
Bichos alimentam-se da própria decrepitude. O poeta diz que a vida é o triunfo sobre a podridão. A podridão não diz nada, mas é a vida. Em teoria e na prática. Quem o disse ainda não foi identificado, mas as autoridades de investigação prosseguem no zeloso cumprimento das funções que lhes são cometidas de documentarem a estória.
Ao mesmo tempo, sentia uma nova e estranha alegria. Uma lucidez excepcional mostrava-lhe quão artificial é a organização social e os direitos e os conceitos e os preconceitos. Descobrir motivos racionais de desprezo e de ódio dava-lhe uma estranha e perversa satisfação. O desprezo e o ódio injustificados são insuportavelmente nojentos. Mas se tiverem razão de ser, pelo menos, tornam-se suportáveis e talvez deixem de ser nojentos e talvez se tornem filosóficos e eticamente toleráveis.
Tudo lhe parecia imagem e representações destituídas de senso. Um filme, consigo dentro. Personagem que se movia dentro de um mundo de ideias blindadas. E começou a ver muitas coisas que nunca tinha visto.
Dons Quixotes a aparecer com demasiada frequência, mas uniformizados e lustrosos e aperaltados, cheios de compostura e autoridade. Polícias tipo guardas-florestais da floresta de cimento. Lenhadores tipo resineiros da floresta de cimento. Um primo (não era macaco) feliz, que já não via desde a última vez em que cantou ao sol o grande poema das árvores de cimento com telhados de vidro, em cujos ramos os humanos refugiam seus ninhos com mil cuidados.
Muitos outros…
E eu? Quem era eu?