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segunda-feira, 13 de setembro de 2021

Ainda não chegamos


Naquela manhã o nosso objectivo era simples

montar nos cavalos

e numa hora

chegar ao ponto donde se avistava o castelo

depois cada um procuraria o melhor caminho

mas nunca atravessando o rio

Estávamos habituados a cavalgar a planície

e pernoitamos sob a via láctea

hipnotizados pelo concerto arrebatador

da fauna noctívaga

e pelo aroma inesquecível da pradaria

até os cavalos sonharam

que tinham asas

Para evitar o sol escaldante

ainda as estrelas brilhavam

arreamos as dóceis montadas

e sonolentos partimos

mas ainda não chegamos.


quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Perder de vista


Ao perderes de vista
O rio
Não inventes destinos
Nem sonhes origens
Que todos desconhecem
E não te apoquente a certeza
Mais do que a incerteza
Que te entristece
Existe o mar
E o socorro a náufragos
E sempre hás-de estar
Aonde chegarem as esperanças
Que a vida nunca é menos do que isso
Nunca é menos do que tudo
O que vem nos livros
Até a leitura de um poema que seja
Ultrapassa os limites da poesia
Que cai da borda da água
Porque o oceano não tem grades
E um barco não sobe escadas
Para o infinito
Não inventes o que não presta
Nem sonhes que perdeste
O que nunca tiveste
Ao perderes de vista
O rio.

sábado, 4 de setembro de 2021

Deambulação


Deambulas

De suave fragor

De vagas

De mar

De verão

De olhos

De peixes fora de água

De aves agora famintas

De teu pão.


quinta-feira, 26 de agosto de 2021

O MAIOR INIMIGO


Quando o velho bebeu o último copo
E foi embora
Fecharam o bar
Lá fora no escuro da noite
Ele sabia que os lobos só o espiavam
Por curiosidade
Para lhe farejarem a alma
E não lhe quisessem o coração
Mas por precaução
Levava consigo duas cabeças de carneiro
Para lhes arremessar
Quando se aproximassem
Não era a primeira vez
Que tinha de percorrer um caminho
Emboscado
Até chegar a casa onde vivia sozinho
E desencantado
Era como se os lobos em troca
O escoltassem
Porque matariam qualquer ladrão
Que arriscasse ser farejado
Nos seus intentos
Toda a vida preferiu percursos perigosos
E essa é a explicação que dá a si mesmo
Para a solidão em que sempre viveu
Em troca de não ser forçado a nenhuma alienação
Que não fosse o normal esquecimento
Faltava-lhe instinto de fuga
Vivia como se não passasse pelas coisas
Como se permanecesse num tempo de burro
A olhar para a experiência
Sem descartar nada
Nem o perigo
Até que já não podia mais
Enfrentar o maior inimigo
A tristeza
Das suas memórias.

domingo, 22 de agosto de 2021

Promessas

O que estragava a felicidade do presente
Era a ameaça do futuro
E nunca mais deixou de ser assim
Enquanto éramos crianças felizes
Sem futuro
E sem passado
Tudo tinha o seu tempo seguro
E as nossas palavras eram nossas
E as nossas alegrias eram nossas
Tudo era nosso
E o nosso era tudo
Mas quando nos disseram que tínhamos de deixar
De ser assim
Tivemos de aprender que não podíamos continuar
A ser felizes
Por mais que nos dissessem que a felicidade
Era outra coisa no futuro
Para nós não passava de uma ameaça
Que nunca acabou
E que nos foi convertendo
Em descrentes
A quem roubaram tudo
Com promessas.

sábado, 14 de agosto de 2021

História por contar

Há uma história recente para contar, desde o 25 de abril, que é a resposta à pergunta: "como a direita e os fascistas se têm vingado levando, pelas mãos da esquerda, um país livre à ruína, sabotando toda a economia e todos os apoios e toda a redistribuição de riqueza?". 

O panorama empresarial português, sobretudo algumas empresas que passaram ou ainda estão na bolsa de valores de Lisboa, e não apenas no PSI20, ou 18, ou 15, podem ser boas pistas de investigação e de reflexão. Mas trabalham numa amplitude temporal que lhes permite passarem despercebidos aos radares "fotovoltaicos" da atenção conjuntural. 

A direita percebeu muito bem que quem domina em ditadura domina em democracia, a questão do domínio não é meramente política. Basta afivelar a máscara no palco da tragédia.

domingo, 1 de agosto de 2021

Ser Poeta


Num mundo de ideais por realizar, em que idealizar deixou de ser prudente e sensato, em que o ideal é não ter ideais, ser poeta é a pena máxima a que alguém pode ser condenado por descobrir que um homem é uma ilha e sentir que isso é o contrário de praticamente tudo, excepto de um ideal.
Num mundo em que a indústria do som, das arengas, das propagandas e dos engodos é capaz de manter perpetuamente infatigável a máquina, a troco da nossa fadiga e alheamento, ser poeta é ser um pobre diabo sem procuração para representar nada nem ninguém.
Neste mundo estranho, fascinante para quem consegue, num concurso para escolher o seu sósia, o poeta não seria classificado nos três primeiros lugares.
De todos os que falam, ou lhe falam, em nome de qualquer coisa, ou entidade (é a mesma coisa), seja Deus (não há quem declaradamente se afirme mandatário do diabo), seja a Verdade, seja a Justiça, a Sabedoria, a Beleza, a Virtude, o poeta não se contenta com menos do que uma procuração conferindo-lhes esses poderes especiais, devidamente assinada por quem lhas, alegadamente, outorgou. E por não se contentar com menos do que isso, fica por contentar, porque ninguém tem esses poderes.
O poeta não fala por procuração. Não é advogado de causa nenhuma, nem professor de coisa nenhuma. Ao falar, em nome próprio, o poeta não está a falar acerca de nada, está a falar (a)penas.

Carlos Ricardo Soares 

quarta-feira, 21 de julho de 2021

Alguém o fará por eles

Gostar de, ou não, ou desprezar, Shakespeare, Gil Vicente, concordar ou discordar de Platão, Kant, contestar ou refutar Newton, Einstein, ser apologista ou contra Karl Marx, venerar Beethoven ou Mozart, adorar Deus ou renegar o diabo, não está ao alcance da veleidade e do capricho de todos, como dizer sim ou dizer não, desta liberdade natural e essencial do humano, e não está ao alcance de todos apresentar razões justificativas consistentes e aceitáveis para o fazer.

O sim e o não, como nos referendos, são actos ao alcance de uma cabeça que ouça e abane ou, para colocar uma cruz numa quadrícula impressa num papel, de uma cabeça, mesmo que não saiba ler, com olhos coordenados com uma mão, assinando de cruz o seu destino e o dos outros, sem necessidade de fundamentar por que o faz.

Alguém o fará por eles.

O que ninguém fará por eles são as obras, que são de quem as faz, apesar de sabermos que as obras, na realidade, pertencem a quem as detém, ainda que não seja quem as tenha mandado fazer.