I
Sabes-me bem
Aos olhos
E isso
Sabe-me bem
Carlos Ricardo SoaresFalar da Escola, digo Escola Pública, não é o mesmo que falar de Escola, em geral, nem de Escola, enquanto Ensino Particular, como vem sendo entendido em Portugal. É uma frustração sem saída retomar os temas à volta da Educação e do Ensino, do que são e do que devem ser, sem delimitar convenientemente o tema e o problema. Uma afirmação válida para a Escola Pública pode ser descabida para o Ensino Particular.
A impressão com que fico sempre que leio opiniões sobre estes assuntos é que, um pouco à semelhança do que se passa no futebol, todos sabem o que é, porque as regras do jogo são simples, muitos dizem o que deve ser, mas só uns tantos jogam e, destes, nenhum se conforma com o jogo em que sai a perder. De qualquer modo, o que decide o resultado nunca é uma mera soma de factores, que são conhecidos de todos. Por isso é que, tal como também acontece nas missas, os treinos e as palestras dos treinadores, tirando a parte física e táctica, repetem-se e podiam ser substituídas por um robot.
Podia até ir mais longe para dizer que, tanto o jogo da bola como as missas, são passíveis de serem substituídos por estruturas a que, por simples comodidade, chamamos genericamente de robots. Mas só até certo ponto porque, tanto o espectáculo do futebol como os rituais religiosos, fazem parte de um sistema significativo de respostas culturais e de relações sociais cujos efeitos no “modus vivendi” e implicações na organização das prioridades e nos projectos de vida das pessoas tendem a sobrepor-se ao interesse do espectáculo e da participação religiosa em si mesmos. Nem os espectadores vibrariam com uma qualquer vitória de um jogo entre robots que não se identificassem com uma hoste, nem Deus aplacaria a sua ira tenebrosa se em vez de uns quantos humanos, esporadicamente suplicantes, fossem inúmeros robots dedicados, inteira e permanentemente, a orar e a entoar cânticos.
Na Escola, a parte humana, física e mental do processo de aprendizagem e de aplicação de competências e de conhecimentos, não deve ser metida numa trituradora altifalante e repetitiva, dos sentidos, da energia e da paciência para pensar, levando tantas vezes ao resultado oposto daquilo que devia ser realizado.
A forma como a Escola está estruturada e organizada, numa sala com um professor e um livro, ou outros recursos do mesmo tipo e com idêntica finalidade de incutir aprendizagem teórica em situação de simulação, se funciona com algum tipo de alunos, não resulta para a maioria.
A própria predisposição individual do aluno para se sentir bem e realizado num modelo que ele gere muito bem e com sucesso, é uma condição “sui generis” que, nos tempos em que fui estudante, era, praticamente, “conditio sine qua non” para ser encaminhado para a Escola.
Houve uma grande mudança social e político-económica que promoveu e potenciou a obrigatoriedade de um modelo que não se adaptou à nova realidade dos alunos. Digamos que, grosso modo, não conseguiu ultrapassar o problema de o aluno ser uma espécie de variável independente.
Na realidade, não é boa ideia fazer de conta que têm de ser os alunos a mudar para que a Escola continue a ser o que era. Boa ideia será encarar o facto de que, se não é possível adaptar os alunos à Escola, talvez o melhor seja pensar em adaptar a Escola aos alunos, porque a Escola é uma variável dependente.
Carlos Ricardo SoaresPor estar ali
O mar
Por estares ali
Sentiste
Por teres de ficar
Partiste
Por teres de contentar-te
Com estar triste
Por não poderes vingar-te
Do que não existe.
Carlos Ricardo SoaresSedutora
Poderosa ninfa
A minha memória está cheia
De pessoas encantadoras
A maior parte
Que eu não conheci
E de lugares de sonho
Que talvez nunca chegue a visitar.
Carlos Ricardo Soares
Hilário: simplesmente bela!
Amiga: estás a cometer uma imprudência
Hilário: essa palavra faz arrepiar o mais pintado
Amiga: qual palavra?
Hilário: imprudência
Amiga: tens noção do perigo que existe para a tua reputação se elogiares uma mulher?
Hilário: foi por impulso, ou instinto, sei lá, já elogiei tantas mulheres e vi sempre a minha reputação ganhar com isso
Amiga: elogiaste quem? As tuas avós, a tua mãe, a tua madrinha, as tuas tias, a tua sogra, a tua mulher, a tua filha?
Hilário: e elogiei-te agora mesmo
Amiga: a imprudência é que eu poderia pensar que te estás a atirar a mim
Hilário: eu sei que nunca pensarias uma coisa dessas
Amiga: pois eu acho que a imprudência está aí na linha que separa o elogio do galanteio
Carlos Ricardo Soares
Quantos de nós já fizeram esse
E o percurso inverso
Quantos de nós já remaram
Na ida
E estão a remar de regresso
Mas todos os caminhos vão dar ao fim
Nenhum ao começo
Carlos Ricardo Soares
Hilário: compreendo a dificuldade que sentes em ouvir-me quando falo de recordações minhas que são narrativas do que não viveste
Amiga: sobretudo quando me falas de sítios onde nunca estive e de sentimentos que eu não sei se tive alguma vez
Hilário: são imensas as coisas que nunca poderemos comunicar com ninguém, nem através da música, nem através dos gestos, nem através das palavras
Amiga: até a saudade, nesse aspeto, é um fardo pesado
Hilário: é como se não tivéssemos sido capazes de dominar o tempo como soubemos preservar as memórias
Amiga: não fomos capazes de parar nesses cenários, saímos deles por alguma razão que, agora, nem nos interessa saber qual era
Hilário: mas era a vida a fluir, não éramos só nós a deslocarmo-nos de uns cenários para os outros, era toda a gente
Amiga: nem quando estamos sozinhos, muito tempo no mesmo lugar, pensamos na mesma cena mais do que uns instantes
Hilário: termos esta noção é como se víssemos o tempo a passar diante dos nossos olhos
Amiga: sem o podermos parar
Hilário: mesmo que o quiséssemos parar
Hilário: e não lhe disseste
Amiga: disse, mas quando disse já não estava no tempo desse encanto, já estávamos no tempo de olhar para o que passou e, uma hora mais tarde, já estava a viajar em sentido contrário, de regresso a casa, que também seria a minha casa por pouco mais tempo, e assim sucessivamente
Hilário: quando olho para o passado só vejo desastres, demolições, tempestades, guerras, mortes, aflições, trabalhos, um mundo a ruir à nossa volta
Amiga: mas tivemos a sorte de tudo isso ter acontecido à nossa volta e não nos ter acontecido a nós
Hilário: aconteceu-nos, também nos aconteceu e o que aconteceu ainda continua a afetar-nos de múltiplas formas
Amiga: do mesmo modo que não paramos nos melhores momentos, com pena nossa, também não paramos nos piores, para nosso alívio.
Carlos Ricardo Soares