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terça-feira, 22 de outubro de 2024

Conhecimento e o conhecimento de si mesmo - 3

Apostem o que puderem e creiam no que quiserem, que não temos nada com isso.
Já quanto a misturar tintas, seja pela razão que for, sinceramente, não é compatível com a necessidade de promover e de alcançar esclarecimento, antes pelo contrário.
Quando alguém não está interessado em esclarecer, ou ser esclarecido, o primeiro passo costuma ser confortar-se com a ignorância ou o mistério, em que assentam os seus pressupostos, ou crenças, assim se julgando justificado, como se esses pressupostos obrigassem à humildade de quem não se resigna à ignorância e se atreve a desvendar.
Causa mais satisfação a um crente, seja de uma religião, seja de uma teoria científica, seja de um apostador, ou mesmo de um investigador imparcial e isento, a confirmação das suas suspeitas, ou hipóteses, do que o contrário. Isto pode ser discutível, mas é muito curioso que o conhecimento obtido por confirmação possa dar mais satisfação do que o conhecimento adquirido por infirmação ou mesmo contradição.
É manifesto, notório e ostensivo, até no discurso dos cientistas mais experimentados, que, por formação e dever profissional, estariam imunes a essa espécie de fanatismo relativamente ao resultado do seu trabalho, um desejo, mais do que uma expectativa, desse resultado. É como se não fosse possível fazer um jogo, ou assistir a um jogo, sem torcer por um dos lados. Neste aspeto os cientistas não se distinguem dos não cientistas. Até eu, que não sou cientista, nem sou religioso, mas não tenho outro remédio senão viver em função da verdade dos factos, sou um fanático que, no jogo da verdade contra a mentira e as meias tintas, torço e sofro para que a verdade triunfe.
E não me atirem com autoridades aos olhos para me calarem, nem me deem chá para adormecer o tigre, como se eu não tivesse o direito de me pronunciar, porque isso é o contrário do que deve ser feito, para tentarmos sair da sombra das figuras, que devem a sua imponência à sombra que projetam e amplificam, e para percebermos e comunicarmos qualquer coisa, por mais misteriosa que possa parecer.
Aliás, em matéria de mistérios, bem podemos dizer que não há autoridades, ou que somos todos.
Daí que me aventure com confiança até onde me aprouver, em abono da verdade e contra a falsidade, a mentira e a ignorância, que são motivos mais do que suficientes para não me limitar a adormecer ou a acordar a ouvir o zumbido das palavras.
Quem começar por dizer que não sabemos o que é a consciência, ou, ainda mais enfaticamente, que não há explicação científica da consciência, estará a dar e a propor, ousada e displicentemente, que demos um passo em falso nos degraus dos problemas que envolvam a noção da consciência.
O resto já não importa, se são neurologistas, ou filósofos, ou profetas, se é vinho português, se a aldeia dos maus é daquele lado ou deste, porque isso já não tem a ver com o problema, é só para turvar o raciocínio.
E porque razão alguém haveria de crer que as máquinas nunca terão consciência?

Seria pela razão de não saber o que é a consciência?

Carlos Ricardo Soares

sábado, 19 de outubro de 2024

O tempo de cada um, o nosso tempo e o tempo de ninguém - I I I


Arriscaria afirmar que cada um de nós também é fruto dos tempos que privilegia, ou pratica mais frequentemente, sem querer significar com isto que uns são melhores do que outros, mas não é indiferente que alguém viva predominantemente o tempo da oralidade, ou o tempo da leitura, ou o tempo da escrita, ou o tempo do jogo, ou do fazer, não fazer comportamental. São atividades muito diferenciadas, nos objetivos e nos meios envolvidos, nomeadamente nas funções cerebrais e neurológicas.
Por outro lado, em muitas situações, os indivíduos têm de planificar e tentar prever o tempo de que dispõem para os seus tempos, por forma que, por exemplo, o tempo de ouvir e de falar, ou de observar, não impeça outros tempos, de refletir, de escrever, de ler, de fantasiar, de dormir...
Deixar às preferências e aos caprichos de cada momento o exercício dos nossos tempos, pode ter muitas desvantagens, inquietação e mal-estar, mesmo que seja por uma boa causa que sacrificamos os nossos outros tempos possíveis aos tempos da nossa predileção, ou mesmo paixão.
É muito interessante observar este fenómeno em nosso redor e sobre nós próprios, até porque nos ajuda e permite entender e compreender melhor as assimetrias comportamentais e de atitude entre as pessoas, mas sobretudo porque nos permite interrogar e compreender a relação causal entre as práticas desses tempos e as manifestações culturais dos indivíduos e dos grupos, desde preferências e valores até desenvolvimento de objetivos e respetivas técnicas de fomento desses tempos, passando por reconhecimento e análise de vantagens e desvantagens associadas ou, simplesmente, como instrumento de acuidade na descrição e caracterização do meio sócio-cultural.
Outro aspeto tem a ver com a oportunidade de estudos comparativos entre os tempos que atualmente predominam na vida das pessoas e os que predominavam no passado, mais ou menos remoto, porque nos ajudaria a entender de que novos modos temos vindo a ser condicionados na nossa vida pessoal e social e a avaliar se isso é bom, ou não, e a ensaiar formas de evitar o indesejável e o nocivo, promovendo, por sua vez, o desejável e o vantajoso.

                             Carlos Ricardo Soares

O tempo de cada um, o nosso tempo e o tempo de ninguém - II


O tempo e os tempos na percepção, na emoção, no sentimento, no pensamento, no discurso, na exteriorização, na comunicação, no ensino, na aprendizagem e na função da memória, nomeadamente, do esquecimento.
Cada um de nós, qualquer que seja a noção que tenhamos dos nossos tempos, de quais desses tempos possíveis utilizamos mais, ou predominantemente, viveu e vive a seu modo, umas vezes passivamente, outras de modo intencional e direcionado, pelos mais diversos motivos, físicos, psicológicos, neurológicos, culturais, sociais, acidentais ou não, tempos de interioridade e de exterioridade, de interação, de exteriorização, de comunicação, de mera percepção, ou de observação.
Exemplificando, o tempo de ouvir (sons, música, palavras) não é igual ao tempo de ver (objetos, signos, palavras, imagens, movimentos, cores, formas, relações espaciais) nem é igual ao tempo de ler e descodificar. O tempo de pensar é ainda mais específico, com níveis e dinâmicas e exigências espaço-temporais muito particulares. Também são diferentes os tempos de falar e de escrever, cada um destes tempos envolvendo formas e condições de aprendizagem diferentes.
Cada pessoa vive estes tempos de modo particular e singular, desde aqueles que nem sequer leem, ou escrevem, àqueles que se limitam a ver, falar e a ouvir, em contextos ligados às necessidades práticas e básicas da vida.

Carlos Ricardo Soares

sábado, 28 de setembro de 2024

Conhecimento e o conhecimento de si mesmo - 2

Na sequência do texto anterior é, de qualquer modo, importante prestar atenção no seguinte.

Se tenho dimensões que só ao meu conhecimento serão acessíveis (serão, se ainda não são), o conhecimento propriamente dito dessa esfera subjetiva não é algo que não dependa do que eu tenha adquirido e aprendido, ou seja, a forma como me vejo e me analiso e me interpreto e me julgo e me avalio, me penso, me sinto e me projeto, é algo inerente à minha relação umbilical com a cultura e com as linguagens que fazem parte dos meus repertórios .

Mesmo que eu diga “sou quem só eu sei”, “sou quem poderei ser e não aquilo que sou”, todas as representações que isto envolve ou tem subjacentes, não são, digamos, minhas, nem de ninguém em particular.

Os processos de consciência e de escolha, mesmo do que pensamos, com mais ou menos confiança na sua consistência e implicações, operam segundo o dever-ser, em função do que deve-ser. E os processos de auto-conhecimento não escapam à regra.

Ora, esta égide do dever-ser, nos processos de pensamento racional, de juízos, de escolha, de ação, seja científica, ética, moral, estética, religiosa, ou outra, é uma função mental originada e situada na cultura e na sociedade.

No mais recôndito e no mais íntimo do indivíduo, a subjetividade consiste mais na inacessibilidade, na imprescrutabilidade e na privacidade dos pensamentos e dos juízos, do que na sua incomunicabilidade. Esta incomunicabilidade está mais associada a uma incompetência, seja do emissor seja do recetor, devida, por exemplo, a uma linguagem deficiente, limitada, ou deficientemente utilizada.

Todavia, se falarmos de estados mentais como, por exemplo, a experiência musical, a experiência do silêncio, do devaneio, da fantasia, do sonho, dos sentimentos, das emoções e das sensações das qualidades, pelo menos enquanto não derem origem, ou não as transformarmos em pensamentos e juízos, operam fisicamente e não são expressáveis, ou comunicáveis. Em grande parte das situações, como estas, ainda assim, poderemos considerar a ocorrência de fenómenos de empatia, de simpatia, de comoção e compaixão que não deixam de ser, a seu modo, modos de expressão, de comunicação e de compreensão que, aliás, têm a primazia e não dependem de outras linguagens para se manifestarem.

            Carlos Ricardo Soares


sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Conhecimento e o conhecimento de si mesmo - 1

FALAR DE SI MESMO E DA SUA RELAÇÃO COM O MUNDO (refletir sobre si para compreender-se a si próprio e fazer-se compreender pelos outros)

Ainda acerca da máxima, ou aforismo “conhece-te a ti mesmo”.

Se eu procurar saber quem sou, na perspetiva do que “dizem” o que sou, quem sou, seja na perspetiva das ciências, física, química, biologia, humanas, sociais, económicas, médicas, seja na perspetiva da ética, moral social ou individual, da ideologia, ou da religião, isso equivale a procurar saber sobre algo que me é objetivo e exterior, como um objeto que se oferece à possibilidade de conhecimento.

Ainda assim, se eu procurar saber quem sou, nessa perspetiva, tal não representa a mesma coisa que eu procurar saber quem tu és, ou o que é, por exemplo, uma árvore, ou o sol, ou a força da gravidade. Se eu procurar saber quem tu és, naquela perspetiva, e há outras, muito do que se poderá legítima e cientificamente conhecer sobre ti será válido também para todos os humanos, incluindo-me, obviamente. Desta forma, trata-se de ter um conhecimento de ti e de mim, da nossa natureza de seres humanos como os outros o que, sendo relevante e essencial, numa perspetiva de objetividade, nada diz sobre a tua, ou a minha condição individual e particular, a tua ou a minha história, nem sobre os teus, ou os meus estados mentais, nem sobre a tua ou a minha autoconsciência psicológica, cultural, social, ética, moral, estética, económica, etc..

É nesta acepção que me parece fazer sentido, com seu quê de desafio “atreve-te a conhecer-te a ti mesmo”, de provocação “ousa conhecer-te a ti mesmo”, de advertência “é preciso que te conheças, não apenas no sentido em que os outros te podem conhecer, mas no sentido em que há uma parte, ou dimensão de ti que é só tua e que só a ti é acessível, ou te será acessível se fores capaz de te conhecer a ti mesmo”.

Carlos Ricardo Soares

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

O tempo de cada um, o nosso tempo e o tempo de ninguém - I


A nossa relação com o tempo é tão importante que, muito mais tarde, podemos entender que o presente é o lugar de quase todos os futuros que não aconteceram e que isso pode não significar algo que devamos lamentar. 
Este tema é dos mais promissores para quem aborde a psicologia individual na perspetiva do próprio indivíduo, mais do que na perspetiva do que seja uma psicologia, geral e abstrata. 
O modo como cada um vive, ainda que se não dê conta, voltado para o passado, criando narrativas, ou projetado para o futuro, criando narrativas, é um modo de viver o presente. 
O importante não é ter consciência de que se vive numa ilusão, é ter consciência de que esse modo de viver funciona. 
Nem todas as ilusões são convenientes e algumas são desastrosas. 
A nossa relação com o tempo é delicada e exigente do ponto de vista das contrapartidas. Sempre que tentamos enganar o tempo, fugir ao tempo, passar tempo, perder tempo, ganhar tempo, lutar contra o tempo, estamos em conflito com alguma realidade que nos ultrapassa e preferimos tentar ignorar. 
O tempo não é nosso, apenas nosso. 
O meu tempo e o teu tempo não são o nosso tempo. 
Cada indivíduo vive, irremediavelmente, num tempo que é, simultaneamente, seu e de ninguém. 
A ilusão a que me referi acima desempenha aqui o papel crucial de nos fazer acreditar que o meu tempo, o teu tempo, o tempo dos outros, é o nosso tempo.

Carlos Ricardo Soares

domingo, 15 de setembro de 2024

Aproximações à verdade XXXII


Hilário: és feliz?

Amiga: às vezes, e tu?

Hilário: eu não sei, nem sei se a felicidade existe

Amiga: queres que te diga?

Hilário: se pudesses mostar-me a felicidade, agradecia

Amiga: eu aposto que és feliz e não sabes

Hilário: e é possível alguém ser feliz sem saber?

Amiga: o ser não é da mesma ordem do saber

Hilário: não sei o que queres dizer

Amiga: e isso não impede que o diga

Hilário: mas então como é que sabes se és feliz?

Amiga: perguntei ao vento

Hilário: a sério? Ao vento?

Amiga: achas que devia ir ver na enciclopédia?

Hilário: mas se não sabes o que é a felicidade, como é que sabes se és feliz?

Amiga: sou feliz e não é por saber dizer, ou não, o que é a felicidade, nem ando atrás dela

Hilário: até podes acreditar no que estás a dizer, mas é algo contraditório

Amiga: e tu não sabes o que é a felicidade, nem sabes se és feliz?

Hilário: talvez me sentisse feliz se soubesse dizer-te o que isso significa

Amiga: mas isso é estranho, devia ser ao contrário, talvez soubesses dizer o que isso significa, se te sentisses feliz.

                      Carlos Ricardo Soares 

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Aproximações à verdade XXXI


Hilário: tu e eu tocamos

Amiga: e cantamos a mesma canção

Hilário: tu pões a ênfase na letra

Amiga: tu pões na música

Hilário: a mesma canção

Amiga: canções diferentes.


         Carlos Ricardo Soares