Seria pela razão de não saber o que é a consciência?
Carlos Ricardo Soares
Seria pela razão de não saber o que é a consciência?
Carlos Ricardo Soares
Na sequência do texto anterior é, de qualquer modo, importante prestar atenção no seguinte.
Se tenho dimensões que só ao meu conhecimento serão acessíveis (serão, se ainda não são), o conhecimento propriamente dito dessa esfera subjetiva não é algo que não dependa do que eu tenha adquirido e aprendido, ou seja, a forma como me vejo e me analiso e me interpreto e me julgo e me avalio, me penso, me sinto e me projeto, é algo inerente à minha relação umbilical com a cultura e com as linguagens que fazem parte dos meus repertórios .
Mesmo que eu diga “sou quem só eu sei”, “sou quem poderei ser e não aquilo que sou”, todas as representações que isto envolve ou tem subjacentes, não são, digamos, minhas, nem de ninguém em particular.
Os processos de consciência e de escolha, mesmo do que pensamos, com mais ou menos confiança na sua consistência e implicações, operam segundo o dever-ser, em função do que deve-ser. E os processos de auto-conhecimento não escapam à regra.
Ora, esta égide do dever-ser, nos processos de pensamento racional, de juízos, de escolha, de ação, seja científica, ética, moral, estética, religiosa, ou outra, é uma função mental originada e situada na cultura e na sociedade.
No mais recôndito e no mais íntimo do indivíduo, a subjetividade consiste mais na inacessibilidade, na imprescrutabilidade e na privacidade dos pensamentos e dos juízos, do que na sua incomunicabilidade. Esta incomunicabilidade está mais associada a uma incompetência, seja do emissor seja do recetor, devida, por exemplo, a uma linguagem deficiente, limitada, ou deficientemente utilizada.
Todavia, se falarmos de estados mentais como, por exemplo, a experiência musical, a experiência do silêncio, do devaneio, da fantasia, do sonho, dos sentimentos, das emoções e das sensações das qualidades, pelo menos enquanto não derem origem, ou não as transformarmos em pensamentos e juízos, operam fisicamente e não são expressáveis, ou comunicáveis. Em grande parte das situações, como estas, ainda assim, poderemos considerar a ocorrência de fenómenos de empatia, de simpatia, de comoção e compaixão que não deixam de ser, a seu modo, modos de expressão, de comunicação e de compreensão que, aliás, têm a primazia e não dependem de outras linguagens para se manifestarem.
Carlos Ricardo Soares
FALAR DE SI MESMO E DA SUA RELAÇÃO COM O MUNDO (refletir sobre si para compreender-se a si próprio e fazer-se compreender pelos outros)
Ainda acerca da máxima, ou aforismo “conhece-te a ti mesmo”.
Se eu procurar saber quem sou, na perspetiva do que “dizem” o que sou, quem sou, seja na perspetiva das ciências, física, química, biologia, humanas, sociais, económicas, médicas, seja na perspetiva da ética, moral social ou individual, da ideologia, ou da religião, isso equivale a procurar saber sobre algo que me é objetivo e exterior, como um objeto que se oferece à possibilidade de conhecimento.
Ainda assim, se eu procurar saber quem sou, nessa perspetiva, tal não representa a mesma coisa que eu procurar saber quem tu és, ou o que é, por exemplo, uma árvore, ou o sol, ou a força da gravidade. Se eu procurar saber quem tu és, naquela perspetiva, e há outras, muito do que se poderá legítima e cientificamente conhecer sobre ti será válido também para todos os humanos, incluindo-me, obviamente. Desta forma, trata-se de ter um conhecimento de ti e de mim, da nossa natureza de seres humanos como os outros o que, sendo relevante e essencial, numa perspetiva de objetividade, nada diz sobre a tua, ou a minha condição individual e particular, a tua ou a minha história, nem sobre os teus, ou os meus estados mentais, nem sobre a tua ou a minha autoconsciência psicológica, cultural, social, ética, moral, estética, económica, etc..
É nesta acepção que me parece fazer sentido, com seu quê de desafio “atreve-te a conhecer-te a ti mesmo”, de provocação “ousa conhecer-te a ti mesmo”, de advertência “é preciso que te conheças, não apenas no sentido em que os outros te podem conhecer, mas no sentido em que há uma parte, ou dimensão de ti que é só tua e que só a ti é acessível, ou te será acessível se fores capaz de te conhecer a ti mesmo”.
Carlos Ricardo Soares
Hilário: és feliz?
Amiga: às vezes, e tu?
Hilário: eu não sei, nem sei se a felicidade existe
Amiga: queres que te diga?
Hilário: se pudesses mostar-me a felicidade, agradecia
Amiga: eu aposto que és feliz e não sabes
Hilário: e é possível alguém ser feliz sem saber?
Amiga: o ser não é da mesma ordem do saber
Hilário: não sei o que queres dizer
Amiga: e isso não impede que o diga
Hilário: mas então como é que sabes se és feliz?
Amiga: perguntei ao vento
Hilário: a sério? Ao vento?
Amiga: achas que devia ir ver na enciclopédia?
Hilário: mas se não sabes o que é a felicidade, como é que sabes se és feliz?
Amiga: sou feliz e não é por saber dizer, ou não, o que é a felicidade, nem ando atrás dela
Hilário: até podes acreditar no que estás a dizer, mas é algo contraditório
Amiga: e tu não sabes o que é a felicidade, nem sabes se és feliz?
Hilário: talvez me sentisse feliz se soubesse dizer-te o que isso significa
Amiga: mas isso é estranho, devia ser ao contrário, talvez soubesses dizer o que isso significa, se te sentisses feliz.
Carlos Ricardo Soares
Hilário: tu e eu tocamos
Amiga: e cantamos a mesma canção
Hilário: tu pões a ênfase na letra
Amiga: tu pões na música
Hilário: a mesma canção
Amiga: canções diferentes.
Carlos Ricardo Soares