O real é uma experiência
De outro mundo
Que faz perder o pé
Quando procuras saber
Como deve ser
O que é.
Carlos Ricardo Soares
O real é uma experiência
De outro mundo
Que faz perder o pé
Quando procuras saber
Como deve ser
O que é.
Carlos Ricardo Soares
As coisas acontecem
Por elas próprias
O tempo passa
Enquanto tento perceber
Porque é que tudo o que faça
Se puder
Só pode alterar a forma
E não a matéria
De acontecer
E chamam a isso
Leis da natureza
Do ser
Mas não acho graça
Não deve ser assim
O nada
Impopular
Vazio do homem
Carlos Ricardo Soares
Hilário: sortudos são os que prescindem de mercado e de público, porque se contentam a si mesmos
Amiga: e há alguém assim?
Hilário: não sei, mas parece que concordas com a minha bem-aventurança
Amiga: estás a colocar uma questão dos diabos porque, se as pessoas se contentassem a si próprias, não se esforçavam tanto para ganhar os mercados e as aprovações dos outros
Hilário: o reconhecimento daquilo que se faz nem sempre acompanha o valor e o mérito daquilo que se faz
Amiga: tu passaste a vida inteira a preparar-te para fazeres o cristo nas argolas e, agora que deixaste as competições, de que é que te serve?
Hilário: eu ainda estou para perceber por que razão investi uma vida numa habilidade que só tem valor como espetáculo, se for bastante espetacular, caso contrário...
Amiga: nunca pensaste que estavas a desenvolver uma arte para teu próprio prazer e realização pessoal, como por exemplo, a poesia, ou a música?
Hilário: em momento algum pensei que passaria o resto da vida a divertir-me com as habilidades adquiridas na alta competição
Amiga: não é coisa que uma pessoa aprenda a fazer com o objetivo de se divertir e de ocupar os tempos livres
Hilário: ao menos, tu tiraste um curso e fizeste sempre tudo pelo prazer de satisfazer a tua curiosidade e de mostrares a ti mesma que eras capaz de algo importante
Amiga: deves estar a brincar, não?
Hilário: o mais importante é a satisfação e os frutos que podes colher daquilo a que te dedicas
Amiga: infelizmente, as pessoas falam muito nesse sentido, sem porem a tónica naquilo que fazem, se gostam ou não, se se sentem realizadas, se se sentem bem, para não dizer felizes.
Hilário: o que me faria feliz, não sei. O que me faz feliz é ter a possibilidade, em cada momento, de procurar e de obter satisfação para as necessidades e para aquilo que devo pensar e fazer
Amiga: também podes encontrar isso num emprego
Hilário: dadas as circunstâncias atuais, talvez tenhas razão. Mas depende muito mais do que são as minhas necessidades do que daquilo que posso fazer para as satisfazer
Amiga: seja como for, o problema de se contentar a si mesmo sem ser através dos outros, pelos outros, é algo enigmático e redutor e apresenta-se como hostil, mesmo que a intenção seja simplesmente prescindir dos outros, como se os aliviasses de um peso que, no fundo, tomas para ti, sem que te agradeçam.
Carlos Ricardo Soares
Amiga: já tens ideias para o que vais fazer este verão?
Hilário: um dia saberás
Amiga: eh lá, isso até parece o título de um romance
Hilário: quem sabe se já foi ou ainda será?!
Amiga: a única coisa que sempre quis e ainda não realizei
Hilário: um romance
Amiga: tu sabes: escrever um romance
Hilário: tens todas as condições para isso
Amiga: a imaginação não basta
Hilário: mas é necessária, ninguém escreve um romance do que lhe aconteceu
Amiga: é isso, comigo não acontece nada, mas imagino tantas coisas?!
Hilário: aproveita as férias
Amiga: ando com ideias para o meu romance “Um Verão a dois”
Hilário: mal posso esperar para ler
Carlos Ricardo Soares
Hilário: qualquer pessoa sabe muito mais do que sabe que sabe
Amiga: muito mais e para além
Hilário: mas vale a pena dedicar atenção e pensar acerca do assunto
Amiga: isso é metacognição e é essencial na aprendizagem
Hilário: saber mais do que sabemos que sabemos é apenas um efeito de não ser possível monitorizar completamente a nossa memória, seus repertórios e processos de pensamento
Amiga: uma grande preocupação com a metacognição pode sobrecarregar a memória com problemas meramente teóricos e intelectuais
Hilário: em casos extremos pode ser paralizante, se tentares monitorizar comportamentos reflexos ou de rotina
Amiga: se sempre que deres um passo quiseres ter o controlo de tudo o que está a acontecer e, ao mesmo tempo, quiseres ter o controlo do que estás a perder por não pensares noutras coisas, etc, o melhor é “delegares” certas tarefas a esses operadores automatizados
Hilário: não conseguiríamos fazer o que fazemos se muitas das tarefas não fossem resolvidas por hábito, sem termos que pensar
Amiga: por hábito, por instinto, por natureza
Hilário: mas muitos dos nossos hábitos começaram por ser atos pensados que fomos repetindo até termos a sensação de que fazemos as coisas sem termos de pensar nelas
Amiga: o homem é um animal de hábitos
Hilário: se fossemos capazes de reforçar positivamente apenas bons hábitos e de reforçar negativamente os maus, a vida seria mais fácil
Amiga: isso permitir-te-ia a proeza de seres feliz sem pensares que o eras, sem teres a noção
Hilário: não sei se gostaria de me habituar a não ter que pensar
Amiga: eu fui-me habituando a pensar cada vez mais em tudo.
Carlos Ricardo Soares
Sabemos o que é a lógica? Existe lógica sem uma linguagem?
Não confundamos racionalidade, consciência e lógica. Esta é um fenómeno linguístico, a racionalidade não.
Quanto ao pensamento, ele começa por se estruturar na consciência e na racionalidade, mas só se torna um problema de lógica com a linguagem.
Esta é a minha tese sobre a anatomia do pensamento.
Carlos Ricardo Soares
Linhas de orientação
Na linha do que disseste
Não são linhas ténues
À volta da fogueira
Ou dos vigilantes do museu
Que ninguém conhece
Porque não há intérpretes
Privilegiados
Que se aproximem o necessário
E o suficiente
Do que não foi feito para eles
Cada vez mais sós
Os que estão sós
Os que não têm ninguém
Que os defina
Por não estarem ligados
A nenhuma mágoa encantadora
A alguém
Que os mata
De um mundo morto
Ou agonizante
Aparte póstumo
Testemunho que sobra
Sem remédio
Porque nada diz
E nada retira ao que disse
Que nunca se perdeu
Nas distrações felizes
Do acaso
Num teatro humano
E tempo desumano
De caça ociosa
Como modo subtil de vida
E de liberdade
Como se aí estivesse a razão
E o ser absorvido na difusão
Dos lugares e das obras
Presenças e fugas
Preponderantes
Da posse da própria vida
Afeições de versos e deriva
Destino abandonado ao jogo
Que o destino é de aparências
Inquietações de poeta
Impressões de vagabundo
Que separa junta e aproxima
Eroticamente
Aberturas de fuga ilusória
E de gozo
Entre objetos e sentidos simultâneos
Quando a melodia e o baile
Bem poderiam ser reais
Se a morte não fosse mais
Do que a mortalidade
Uma obscuridade
Embrulhada em suspiros
Impossíveis desabafos
Chamar liberdade ou amor
À perdição
Poemas sem juízo
Rosas em silêncio no tumulto
Dos lábios
Dedos sobre as cordas
De um instrumento de feições
De alegria de fantasmas
Louca e fugaz como a fala
Que contrabandeia literatura
Como forma de prazer
Sem compromisso
E sem mais intimidade
Que a decisiva
Como se houvesse lugares
Essenciais
Por serem interditos
Nada é mais belo
Do que escapar
Aos significados de uma vida
Sem paz
De densidades insolventes
De pedras que crescem
Como se os cristais uivassem
Quem somos
Ou dores enraizassem mais fundo
Que o sentimento de resgate
De nós
Não apenas sós
Os que estando sós
Não são ninguém
Como nós.
Carlos Ricardo Soares