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sábado, 28 de setembro de 2024

Conhecimento e o conhecimento de si mesmo - 2

Na sequência do texto anterior é, de qualquer modo, importante prestar atenção no seguinte.

Se tenho dimensões que só ao meu conhecimento serão acessíveis (serão, se ainda não são), o conhecimento propriamente dito dessa esfera subjetiva não é algo que não dependa do que eu tenha adquirido e aprendido, ou seja, a forma como me vejo e me analiso e me interpreto e me julgo e me avalio, me penso, me sinto e me projeto, é algo inerente à minha relação umbilical com a cultura e com as linguagens que fazem parte dos meus repertórios .

Mesmo que eu diga “sou quem só eu sei”, “sou quem poderei ser e não aquilo que sou”, todas as representações que isto envolve ou tem subjacentes, não são, digamos, minhas, nem de ninguém em particular.

Os processos de consciência e de escolha, mesmo do que pensamos, com mais ou menos confiança na sua consistência e implicações, operam segundo o dever-ser, em função do que deve-ser. E os processos de auto-conhecimento não escapam à regra.

Ora, esta égide do dever-ser, nos processos de pensamento racional, de juízos, de escolha, de ação, seja científica, ética, moral, estética, religiosa, ou outra, é uma função mental originada e situada na cultura e na sociedade.

No mais recôndito e no mais íntimo do indivíduo, a subjetividade consiste mais na inacessibilidade, na imprescrutabilidade e na privacidade dos pensamentos e dos juízos, do que na sua incomunicabilidade. Esta incomunicabilidade está mais associada a uma incompetência, seja do emissor seja do recetor, devida, por exemplo, a uma linguagem deficiente, limitada, ou deficientemente utilizada.

Todavia, se falarmos de estados mentais como, por exemplo, a experiência musical, a experiência do silêncio, do devaneio, da fantasia, do sonho, dos sentimentos, das emoções e das sensações das qualidades, pelo menos enquanto não derem origem, ou não as transformarmos em pensamentos e juízos, operam fisicamente e não são expressáveis, ou comunicáveis. Em grande parte das situações, como estas, ainda assim, poderemos considerar a ocorrência de fenómenos de empatia, de simpatia, de comoção e compaixão que não deixam de ser, a seu modo, modos de expressão, de comunicação e de compreensão que, aliás, têm a primazia e não dependem de outras linguagens para se manifestarem.

            Carlos Ricardo Soares


sexta-feira, 27 de setembro de 2024

Conhecimento e o conhecimento de si mesmo - 1

FALAR DE SI MESMO E DA SUA RELAÇÃO COM O MUNDO (refletir sobre si para compreender-se a si próprio e fazer-se compreender pelos outros)

Ainda acerca da máxima, ou aforismo “conhece-te a ti mesmo”.

Se eu procurar saber quem sou, na perspetiva do que “dizem” o que sou, quem sou, seja na perspetiva das ciências, física, química, biologia, humanas, sociais, económicas, médicas, seja na perspetiva da ética, moral social ou individual, da ideologia, ou da religião, isso equivale a procurar saber sobre algo que me é objetivo e exterior, como um objeto que se oferece à possibilidade de conhecimento.

Ainda assim, se eu procurar saber quem sou, nessa perspetiva, tal não representa a mesma coisa que eu procurar saber quem tu és, ou o que é, por exemplo, uma árvore, ou o sol, ou a força da gravidade. Se eu procurar saber quem tu és, naquela perspetiva, e há outras, muito do que se poderá legítima e cientificamente conhecer sobre ti será válido também para todos os humanos, incluindo-me, obviamente. Desta forma, trata-se de ter um conhecimento de ti e de mim, da nossa natureza de seres humanos como os outros o que, sendo relevante e essencial, numa perspetiva de objetividade, nada diz sobre a tua, ou a minha condição individual e particular, a tua ou a minha história, nem sobre os teus, ou os meus estados mentais, nem sobre a tua ou a minha autoconsciência psicológica, cultural, social, ética, moral, estética, económica, etc..

É nesta acepção que me parece fazer sentido, com seu quê de desafio “atreve-te a conhecer-te a ti mesmo”, de provocação “ousa conhecer-te a ti mesmo”, de advertência “é preciso que te conheças, não apenas no sentido em que os outros te podem conhecer, mas no sentido em que há uma parte, ou dimensão de ti que é só tua e que só a ti é acessível, ou te será acessível se fores capaz de te conhecer a ti mesmo”.

Carlos Ricardo Soares

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

O tempo de cada um, o nosso tempo e o tempo de ninguém - I


A nossa relação com o tempo é tão importante que, muito mais tarde, podemos entender que o presente é o lugar de quase todos os futuros que não aconteceram e que isso pode não significar algo que devamos lamentar. 
Este tema é dos mais promissores para quem aborde a psicologia individual na perspetiva do próprio indivíduo, mais do que na perspetiva do que seja uma psicologia, geral e abstrata. 
O modo como cada um vive, ainda que se não dê conta, voltado para o passado, criando narrativas, ou projetado para o futuro, criando narrativas, é um modo de viver o presente. 
O importante não é ter consciência de que se vive numa ilusão, é ter consciência de que esse modo de viver funciona. 
Nem todas as ilusões são convenientes e algumas são desastrosas. 
A nossa relação com o tempo é delicada e exigente do ponto de vista das contrapartidas. Sempre que tentamos enganar o tempo, fugir ao tempo, passar tempo, perder tempo, ganhar tempo, lutar contra o tempo, estamos em conflito com alguma realidade que nos ultrapassa e preferimos tentar ignorar. 
O tempo não é nosso, apenas nosso. 
O meu tempo e o teu tempo não são o nosso tempo. 
Cada indivíduo vive, irremediavelmente, num tempo que é, simultaneamente, seu e de ninguém. 
A ilusão a que me referi acima desempenha aqui o papel crucial de nos fazer acreditar que o meu tempo, o teu tempo, o tempo dos outros, é o nosso tempo.

Carlos Ricardo Soares

domingo, 15 de setembro de 2024

Aproximações à verdade XXXII


Hilário: és feliz?

Amiga: às vezes, e tu?

Hilário: eu não sei, nem sei se a felicidade existe

Amiga: queres que te diga?

Hilário: se pudesses mostar-me a felicidade, agradecia

Amiga: eu aposto que és feliz e não sabes

Hilário: e é possível alguém ser feliz sem saber?

Amiga: o ser não é da mesma ordem do saber

Hilário: não sei o que queres dizer

Amiga: e isso não impede que o diga

Hilário: mas então como é que sabes se és feliz?

Amiga: perguntei ao vento

Hilário: a sério? Ao vento?

Amiga: achas que devia ir ver na enciclopédia?

Hilário: mas se não sabes o que é a felicidade, como é que sabes se és feliz?

Amiga: sou feliz e não é por saber dizer, ou não, o que é a felicidade, nem ando atrás dela

Hilário: até podes acreditar no que estás a dizer, mas é algo contraditório

Amiga: e tu não sabes o que é a felicidade, nem sabes se és feliz?

Hilário: talvez me sentisse feliz se soubesse dizer-te o que isso significa

Amiga: mas isso é estranho, devia ser ao contrário, talvez soubesses dizer o que isso significa, se te sentisses feliz.

                      Carlos Ricardo Soares 

sexta-feira, 13 de setembro de 2024

Aproximações à verdade XXXI


Hilário: tu e eu tocamos

Amiga: e cantamos a mesma canção

Hilário: tu pões a ênfase na letra

Amiga: tu pões na música

Hilário: a mesma canção

Amiga: canções diferentes.


         Carlos Ricardo Soares

domingo, 1 de setembro de 2024

Aproximações à verdade XXX


Hilário: que livro andas a ler?

Amiga: o primeiro volume de «As coisas não têm de ser como são»

Hilário: já vi à venda aqui

Amiga: se quiseres comprar o segundo volume, depois trocamos

Hilário: cada volume tem mais de 400 páginas

Amiga: isso para leitores como nós não é nada

Hilário: não brinques, deves ter lido páginas que dão muito que pensar

Amiga: andaste a ver a amostra que está disponível no site

Hilário: aquilo que li é muito impactante, tipo terramoto de ideias feitas

Amiga: sim, mas deixa-me a pensar que vivo num mundo diferente e melhor do que julgava

Hilário: o autor está sempre a questionar a cultura e os valores

Amiga: mas não é fatalista, nem deixa lugar para a resignação e mostra a cada passo que, se te entristece e revolta que as coisas sejam como são, na verdade, esse é um passo necessário para melhorar, porque nada tem de ser como é.

                                    Carlos Ricardo Soares

terça-feira, 27 de agosto de 2024

Valor, preço e utilidade


A Escola, em Portugal, não escapou ao processo de mercantilização dos valores, que é o processo normal e costumeiro que envolve os valores venais a que, mais coisa menos coisa, todos aspiram. Uma excepção talvez seja a dos anacoretas ascéticos isolados do mundo que optam por uma forma de morte que é um sucedâneo de vida, num mundo em que, realmente, não há espírito, nem valores espirituais, mas que, paradoxalmente, eles acreditam haver em algum lugar, ou, como se diz também, algures no céu. 
A renúncia deles, ainda assim, pode ser questionada como uma recusa em participar ativamente.
A própria Escola, desenhada por, e para, elites cultoras do não venal, ou espiritual, que detinham, porém, as vantagens do venal, foi sendo crescentemente crítica da venalidade, na medida em que a não venalidade ganhou ascendente e reclamou para si a primazia dos valores culturais e da sua respeitabilidade. 
Este jogo de cintura conduziu à inversão dos valores: os valores venais só seriam espirituais se tivessem o batismo e a bênção da Escola. A sociedade, porém, ou o mercado (a sociedade é uma grande feira, com mais ou menos fiscais e cobradores) não podia deixar de entrar no jogo, ou nessa bolsa de valores.
Então, o facto de alguém, por exemplo, ser perdulário, ou viver luxuosamente, não devia ser entendido como materialista, mas como desprendido da materialidade, sem apego ao dinheiro e aos bens materiais. 
Quando as coisas se tornam, ou são apenas questões de linguagem, a realidade passa ao lado, porque o importante parece ser a linguagem.
Ainda assim, não nos iludamos com a magia das palavras.
A Escola, os professores, o próprio conhecimento, não podem ficar dependentes, nem eternamente à espera de quem se enamore e se apaixone por eles, ou pelo valor deles, cada vez menos promovido, mas que não tem preço. E aí entram os tais valores venais, o preço em vez do valor, e as relações, ou casamentos (dissolúveis), por interesse. Um pouco à semelhança de «quem não tem cão caça com gato».

                    Carlos Ricardo Soares

domingo, 25 de agosto de 2024

Tesouros e paixões


A força da paixão

Quem a conhece?

Não estou a falar de objetivos

Nem de devaneios

Ou ambição

Diz-me se tens alguma paixão

Diz-me qual é a tua paixão

E talvez te compreenda melhor

Alguém que tem uma paixão

Tende a organizar a sua vida à volta dela

E vai sacrificando tudo por ela

Paixão não é o mesmo que objetivos

As pessoas tendem a organizar a vida

Em função de objetivos convenientes

Ou planos eficientes de realização

De vantagens de sobrevivência

Mas paixão é diferente

Sobrevive-se para ela

É pessoal e pode ser impercetível

Para os outros

Pode ser desastrosa como um vício

Ou uma dependência muito forte

Muitas vidas e muitos destinos

São decididos ou sacrificados a paixões

E não há como lamentar certas paixões

De artistas e de estudiosos

De poetas e sonhadores

O amor ardente dos criadores

Que estão fascinados

Como abelhas obreiras

Com a realização de uma grandeza

Que colocam sempre em primeiro lugar

Porque dá à própria vida

O sentido que almejam dar.


             Carlos Ricardo Soares