A paixão pelos livros existe e tentar explicá-la pode ser um desafio muito interessante, quando percebemos que é uma paixão muito secreta
e estranha, até por dizermos que é paixão, em vez de lhe darmos outro nome.
Desde ser de tanta subjectividade que dificilmente se conceberá que alguém trate da paixão pelos livros
sem ser apaixonado pelos livros, até à suspeita de que não haverá duas paixões iguais pelos livros, ou sequer parecidas, a paixão pelos livros é uma boa aproximação
aos livros enquanto arte de tentar revelar e descrever e explicar paixões, esse reduto de subjectividade que alguns se atrevem a objectivar, acreditando e contando com alguma possibilidade da linguagem para o comunicar.
Cada
paixão é única e, muitas vezes compreensível a partir, não de quem a vive, mas da interpretação que dela faz.
É problemático, para não dizer ilegítimo,
falar de paixões sem aceitar entrar e falar das próprias paixões, como se pudéssemos falar, em abstracto, de paixões concretas.
Duvido que haja paixão sem uma narrativa, embora nem sempre
haja uma narrativa disponível e, muitas vezes, seja até impossível uma narrativa verdadeira de uma paixão.
Teço estes pensamentos ao pensar que fui e sou apaixonado pelos livros e que,
ainda hoje, ao tentar reconhecê-lo e explicá-lo a mim mesmo, me surpreendo com a dificuldade de fazer-me entender o que é isso.
Se nem todas as paixões têm o seu quê de conflituosas
(conflito interior), há paixões que o são muito e colocam o indivíduo num campo de batalha em que é invariavelmente vencido. Talvez por isso, há quem tenha como lema precaver-se de
paixões e quem nem tenha de o fazer, porque não sabe o que é.
Os livros entraram na minha vida não à força, como a catequese, as orações, a escola, a cana da Índia,
a palmatória, a polícia, mas com a sedução de poder rejeitá-los ou pegá-los a meu bel-prazer.
Quanto à catequese, escola, polícia, não vi alternativa à
coerção. Quanto aos livros, nunca desisti de pensar que, enquanto não ler um livro, não sei o que ele encerra, e porque aprendi a namorar os livros muito antes de saber o que é amá-los,
percebi que os livros são inesgotáveis fontes de prazer, por mais que nos revelem a escala que é preciso ter em mente, quando lemos.
E se esse namoro era do mais estranho e engraçado, para
não dizer infantil, e envergonhado, que há, o amor ainda o é mais.
Mas como passar bem sem o que se ama?
Quem quer ver-se livre do que ama?
sexta-feira, 14 de outubro de 2022
Falar com paixão
sábado, 8 de outubro de 2022
Completa escuridão
Ao trovão poderoso
Na floresta desconhecida
Encontraram refúgio numa gruta
Esbaforidos pelo tumulto da fuga
Na completa escuridão
Tatearam sem se verem
Algo descomunal
Que respirava como dois animais
E tremia como se fosse dar um salto
Estavam a cair dentro
De um poço mais
Tudo o que ficava para trás
Não os preocupava nada
E as consequências reais
Andavam longe do seu pensamento
Até que sucumbiram ao sono
E tiveram sonhos iguais.
quarta-feira, 5 de outubro de 2022
Amantes
Para junto dela
Corre ao encontro
E todos os caminhos vão dar
Ao acampamento
Por onde passa
Todos os sinais indicam
A barraca onde não cabe altivez
E é recebido com honras
De amante
Que enfrentou desventuras
Para estar junto dela
No seu leito macio
Munido desse triunfo
De não se submeter
À triste velhice.
domingo, 2 de outubro de 2022
Metáforas
Os que fecharam as portas
Deixaram o silêncio de fora
A vadiar penitente
Até encontrar a chave das fechaduras
E tomar conta de tudo
Antes que as portas se abrissem com o vento
O silêncio saiu
De fora para dentro
A vadiar como um rio novo
A que não se chamaria rio ainda
E talvez não venha a ser
Senão metáfora de deus.
sexta-feira, 30 de setembro de 2022
A importância dos livros
Há que enfatizar, por um lado, a inegável influência e
importância do livro na consolidação e desenvolvimento das culturas, nomeadamente a ocidental e, por outro lado, a hipótese de que o livro não tem tido a atenção e o fervor de
tantos adeptos quanto merecia.
O fenómeno da escrita, mormente da divulgação do conhecimento através do livro, tem sido visto por muitos estudiosos como um factor decisivo do desenvolvimento
da civilização e do conhecimento, ainda que o livro, como tudo o que é instrumental, sirva para quase tudo aquilo que pode ser instrumentalizado por ele e nem tudo é consensual ou pacífico.
Aqui,
não obstante, encontramos mais um motivo, ou razão, para preservarmos o livro como meio privilegiado de cultura e de diversidade, mas mais ainda de liberdade e de comunicação.
O papel activo
que o livro exige ao leitor, só por si, é um indicador de que quem o lê não o faria se não lhe encontrasse bastante interesse (independentemente de alguém considerar que esse interesse
é grande ou pequeno ou nulo).
Durante muito tempo, o fascínio pelo fenómeno da escrita foi de tal ordem que tudo passou a girar em torno dela até atingir uma estereotipação e
uma estilização que a transformou em algo valorizado por si próprio, pela sua dificuldade e poder simbólico de uma elite de especialistas, mais como uma arte e um domínio dos deuses, para
espectáculo atordoador dos leigos analfabetos.
O caso não era para menos.
O poder das palavras institucionalizadoras, imperativas, prescritivas, declarativas, que deferem ou indeferem, que ordenam e
impõem, que decidem o que as coisas são, sempre teve e continua a ter uma imensidão de devotos rendidos à sua magia transformadora das realidades que mais interessam a todos.
Curioso é
que este poder das palavras tenha sido tanto maior, e assim continua a ser, quanto mais hermético, e acessível apenas a uma elite, for o seu código. De tal modo que, por exemplo o latim, não sem
muita relutância, só recentemente vem sendo substituído, em actos oficiais e religiosos, pela língua viva.
A vulgarização do livro esteve associada à disseminação
do acesso ao poder que o livro conferia e, de vários modos, a elite “do poder do livro” reagiu contra isso. Mas, como seria de esperar, à medida que o poder do livro se disseminou também passou
a ser menor a atractividade motivada por algo que estava associado ao simbolismo do livro e não ao valor intrínseco do seu registo.
A desmistificação do saber livresco, por exemplo, é
muito recente e foi uma enorme conquista da cultura, mas só foi possível, suponho eu, pela divulgação e acesso generalizado ao livro como meio privilegiado, senão único, de acesso
a cultura e a conhecimentos relevantes, para além do senso comum.
Acontece, ainda assim, que o livro é visto, umas vezes, como meio de realização de objectivos expressivos e discursivos e narrativos
e comunicativos, inclusivé científicos, líricos, críticos, filosóficos, jurídicos, técnicos, etc., outras vezes, como fim em si mesmo, ou simplesmente como uma mercadoria, à
boleia da inquestionável reputação do livro, na sua função de “transcendência” a que temos acesso se os lermos, mais do que se alguém os ler para nós, ou por
nós.
sábado, 24 de setembro de 2022
O que é sentir
Sonhar
E só depois dizer
O que acontece
Dizer
E só depois ver
O que é difícil
Fazer
E só depois saber
As palavras que mais usas
Poder
E só depois deixar
De querer
Escrever
E só depois sentir
Que o prazer também se escreve
Com prazer
E só depois interrogar
O que é sentir
sexta-feira, 16 de setembro de 2022
INCOMPLETUDES
Se o amor
Enquanto esperavam à chuva
Fosse ministro de algum abrigo
Ou abrigo de algum ministro
A haver governo algures
Em tempo sinistro de encargos
Andaria atrás de um caderno
Perdido
De versos copiosamente amargos
Em seu labirinto construído
De perversos aliados
Tremendo dos artelhos
De medo talvez de frio
Da sua sombra nua
Procurasse o sol
De algum pavio
Quiçá da lua
Em troca de existir
Para se aquecer
Sem cair na rua.