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domingo, 30 de janeiro de 2022

Subjectivo/Objectivo

O desfasamento entre o subjectivo, enquanto operador, pensante, juiz, ainda que moldado de inúmeros modos pelo mundo, sem disso ter consciência, e o objectivo, positivo, normativo geral e abstracto, imperativo impositivo, em suma, o desfasamento entre o dever-ser individual, pessoal, moral e o dever-ser heterónomo, social, ético-jurídico, é uma dinâmica viva, social, crítica, problemática, de equilíbrio instável, em conflito de interesses sempre iminente.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

A arte e a crítica (da arte)

Ninguém critica a pedra por ser o que é, ou a nuvem, ou o mar. Ninguém faz pensamento crítico das aves ou dos peixes. Ninguém tem sentido crítico das coisas que não são obra humana. As ciências da natureza, a física e a química e a mineralogia e a biologia...não têm uma palavra crítica sobre as coisas que estudam.

A crítica, o pensamento crítico, é sobre o humano cultural, sobre a produção cultural humana, a acção, incluindo a acção de manifestar pensamentos e ideias e sentimentos.

Mas a crítica também pode ser exercida, por exemplo, sobre os deuses, ou sobre Deus, por aqueles que acreditam na sua autoria de algo, ou de tudo.

A crítica é, assim, uma função, ou faculdade humana muito curiosa.

E é, das acções humanas, a que está, talvez, mais sujeita a crítica.

Não obstante, as obras de arte, que tanta crítica suscitam, em si mesmas, enquanto meras obras, não me parece que forneçam razões para serem criticadas. Se o são, talvez não seja por serem obras de arte, mas por aquilo que se diz delas, ou que elas dizem.

sábado, 22 de janeiro de 2022

Longe de tudo


Muito longe de tudo

as pessoas sentaram-se numas pedras

e alguém lembrou que ali tinha sido o lugar

de uma fonte medicinal 

à sombra

ninguém estava com vontade de falar

todos infelizes por não poderem ouvir

senão um canto cansado

de pássaros a carpir

alguém falou em rebanhos

mas estava a sonhar

e muitos dos que ali estavam

fecharam os olhos

a olhar para dentro 

de um lugar

muito longe

de tudo.


quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Linguagem e comunicação

Pôs-se a publicar coisas
que só deviam ser entendidas
por eles os dois
mas que todos podiam ler
e entender como quisessem
que ninguém iria saber
o que estava a escrever
de infinitos modos
mas privados todos.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Alcateias a uivar

Avistamos finalmente

Com grande emoção

Uma águia cujo voo culminou

No penhasco sobranceiro

A um lugarejo muito escondido

A quilómetros de distância

Aonde já não chegaríamos

Nos próximos dias

Quase ao cair da noite

Aquele avistamento era algo

Em que não deixávamos de pensar

Todas as nossas ideias eram acerca

De como lá chegar

Ao mesmo tempo que suspeitávamos

De muitas incógnitas

Do que nos esperava

Porque não sabíamos nada acerca

Daquele lugar

Nem do sítio onde estávamos

Nem dos sítios por onde já tínhamos passado

Nunca nos cruzamos com alguém

Que nos pudesse contar

Onde encontraríamos uma casa

E quão longe estávamos de tudo

No escuro da noite

Um de nós começou a chorar

Primeiro uma lágrima silenciosa

Depois num incontrolável soluçar

Audível ao longe

Em ecos lancinantes de alcateias

Que em sobressalto

Se puseram a uivar.


Carlos Ricardo Soares

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Devia Haver Deus

Por tudo e por nada

Devia haver Deus

Mas não

Não existe

E isso chega a ser

Muito mais triste

Do que saber

Que Deus não pode ser

O que é.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Para nunca mais

E foi assim que eles chegaram
Esqueletos barbudos
De olhar alucinado
Sobretudo de sobretudos
Sem memória de quem eram
Marinheiros
Que não sabem que o foram
De uma embarcação
Que os pintores encalharam
No poente mais triste
Que a saudade tem
De mastros tão altos
Que se quebraram
Contra a abóbada celeste
De velas rasgadas pelos vendavais
Foi assim que eles foram
Para nunca mais
Nos versos de fumadores de abismos
Que adivinham o destino
Em espreguiçadeiras suspensas
Do cachimbo.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Deixar o mundo seguir

A última vez que perdi um comboio

Teria gostado de saber que era o último

E que no dia seguinte não haveria outro

Com pior sorte

A gare de súbito silenciosa

Sem gente e eu

No frio inóspito

Até os pensamentos eram cães

E os cães confusos

Na noite cerrada

Atiçados contra os vultos sem refúgio

Uns dos outros

Com uma raiva de ladrar danada

Aos comboios inventados para isto

Ao fim de mais de quinhentos quilómetros

Para onde tinha viajado meses

Senão anos

Para estar no funeral de amigos

Dos anos sessenta

Que eu esperava num banco

Que há em todas as estações

Com mil nomes e mil rostos diferentes

Que coincidem com o que dizem ter sido

O fim e o começo de tudo

Em finisterra

Quando o comboio apitou

Já era tarde

E se me soergui

Num assomo de vida

Foi para vê-lo por um momento

A afastar-se veloz e sem alarde

Até desaparecer

Onde as linhas paralelas se encontram

Teria gostado de me corresponder

Com essa dor imerecida

Mesmo sendo minha

Escrever-lhe intermináveis cartas

Na vã tentativa de obter resposta

Do que sinto

Por tanto amar

Teria gostado de acreditar

Que há mais do que uma chave

Para sair sem entrar

Noutro labirinto

De fantasias

De estações vazias

Aonde nunca cheguei a tempo

Como se tivesse planeado

Que era melhor assim

Ter todo o tempo 

Para mim.