Blogs Portugal

segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

Alcateias a uivar

Avistamos finalmente

Com grande emoção

Uma águia cujo voo culminou

No penhasco sobranceiro

A um lugarejo muito escondido

A quilómetros de distância

Aonde já não chegaríamos

Nos próximos dias

Quase ao cair da noite

Aquele avistamento era algo

Em que não deixávamos de pensar

Todas as nossas ideias eram acerca

De como lá chegar

Ao mesmo tempo que suspeitávamos

De muitas incógnitas

Do que nos esperava

Porque não sabíamos nada acerca

Daquele lugar

Nem do sítio onde estávamos

Nem dos sítios por onde já tínhamos passado

Nunca nos cruzamos com alguém

Que nos pudesse contar

Onde encontraríamos uma casa

E quão longe estávamos de tudo

No escuro da noite

Um de nós começou a chorar

Primeiro uma lágrima silenciosa

Depois num incontrolável soluçar

Audível ao longe

Em ecos lancinantes de alcateias

Que em sobressalto

Se puseram a uivar.


Carlos Ricardo Soares

terça-feira, 21 de dezembro de 2021

Devia Haver Deus

Por tudo e por nada

Devia haver Deus

Mas não

Não existe

E isso chega a ser

Muito mais triste

Do que saber

Que Deus não pode ser

O que é.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Para nunca mais

E foi assim que eles chegaram
Esqueletos barbudos
De olhar alucinado
Sobretudo de sobretudos
Sem memória de quem eram
Marinheiros
Que não sabem que o foram
De uma embarcação
Que os pintores encalharam
No poente mais triste
Que a saudade tem
De mastros tão altos
Que se quebraram
Contra a abóbada celeste
De velas rasgadas pelos vendavais
Foi assim que eles foram
Para nunca mais
Nos versos de fumadores de abismos
Que adivinham o destino
Em espreguiçadeiras suspensas
Do cachimbo.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Deixar o mundo seguir

A última vez que perdi um comboio

Teria gostado de saber que era o último

E que no dia seguinte não haveria outro

Com pior sorte

A gare de súbito silenciosa

Sem gente e eu

No frio inóspito

Até os pensamentos eram cães

E os cães confusos

Na noite cerrada

Atiçados contra os vultos sem refúgio

Uns dos outros

Com uma raiva de ladrar danada

Aos comboios inventados para isto

Ao fim de mais de quinhentos quilómetros

Para onde tinha viajado meses

Senão anos

Para estar no funeral de amigos

Dos anos sessenta

Que eu esperava num banco

Que há em todas as estações

Com mil nomes e mil rostos diferentes

Que coincidem com o que dizem ter sido

O fim e o começo de tudo

Em finisterra

Quando o comboio apitou

Já era tarde

E se me soergui

Num assomo de vida

Foi para vê-lo por um momento

A afastar-se veloz e sem alarde

Até desaparecer

Onde as linhas paralelas se encontram

Teria gostado de me corresponder

Com essa dor imerecida

Mesmo sendo minha

Escrever-lhe intermináveis cartas

Na vã tentativa de obter resposta

Do que sinto

Por tanto amar

Teria gostado de acreditar

Que há mais do que uma chave

Para sair sem entrar

Noutro labirinto

De fantasias

De estações vazias

Aonde nunca cheguei a tempo

Como se tivesse planeado

Que era melhor assim

Ter todo o tempo 

Para mim.


quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Ciências da vida, ciências humanas

Penso na frustração que atingirá qualquer cientista por não poder operacionalizar o seu conhecimento e a sua tecnologia, incluindo a IA, para propor à comunidade científica internacional uma lei do bem e do mal, em que, o bem fosse a vida e o mal fosse a morte. Reconhecer que, na essência e nos fins, todas as ciências têm em comum serem ciências do Homem, ciências humanas, e todas serem motivadas e justificadas pela necessidade e pelo valor da vida e das ciências (da vida).

O que fundamenta o direito e correspectivo dever de respeito pelo indivíduo humano também fundamenta o dever de cada indivíduo humano, e todos em geral, respeitar tudo aquilo que não é sua autoria e que tem relativamente ao Homem existência independente, como acontece com a natureza, incluindo a humana.

O facto de dependermos dessa natureza e não o contrário, confere-nos alguma legitimidade baseada na necessidade física e biológica de sobrevivência.

Não nos é possível respeitar a integridade daquele mundo exterior, físico, biológico, de que dependemos visceralmente, vitalmente. Mas é-nos possível, é desejável e imperioso, moral, diria até, imperativo categórico, reduzir ao máximo os efeitos nefastos e devastadores da utilização, exploração, que fazemos dos recursos naturais, se não pudermos evitar completamente os efeitos, nocivos e irremediáveis, dessa utilização.

Nada de matar, como princípio. Nem pessoas, nem animais, nem plantas.

O mais que se pode permitir, porque nada se pode fazer, por mais que nos custe, é ver morrer o que não se pode salvar.

A inteligência do homem, quanto a isto, historicamente, delegou todos os poderes em Deus, que ainda não resolveu nenhum dos problemas, como seria de esperar por um homem inteligente. O homem não é inteligente. Pelo menos não é inteligente no sentido de ser capaz de "ver" para além daquilo para que é dotado, ou naturalmente apetrechado.

Se o homem é o diabo, ou deus, o que constato é que muitos estão dispostos a admitir que seja o diabo e ninguém esteja minimamente inclinado sequer a pensar que seja deus. Isto diz muito sobre o que pensamos a próprio respeito, mas não diz nada sobre o que a natureza do homem é, ou, por outra, sobre quanto do homem é natureza e nada mais do que a natureza a seguir os seus rumos irreversíveis.

Ninguém, senão o homem, se queixa de as coisas não serem de um certo modo.

domingo, 28 de novembro de 2021

O poder da música

Porque é que a música

Tem tanto poder

E ninguém se queixa de abuso de poder

Tem tanto mais poder

Sobre nós

Quanto mais tivermos

Sobre ela

Ao fruir a música

Experimentamos o melhor de nós

E quanto mais fruímos

Mais se desfaz um laço

E nos liberta

E faz dançar

E nos desperta

Desejos de correr saltar

Voar  

Nos faz esquecer

Nos faz lembrar

Nos une a cantar

E tem graça

Tentarmos chegar

À nota mais alta

Que se pode imaginar

À que faz mover

Ou relaxar

Que livra de sofrer

Ou de pensar

Em coisas tristes

Que faz sonhar

E estremecer

E acordar

E chorar de emoção

Por termos ido tão longe

Que tarda voltar

Subido mais alto que o medo

De uma queda grave

Descido tão profundamente

Que chegamos aonde

Só a música pode chegar.

terça-feira, 23 de novembro de 2021

Sem mãos a medir Blandina

Sem mãos a medir
Blandina desdobrava-se
A colocar nas mesas belas canecas
A tarde toda
Debaixo da árvore frondosa
Que abrigava a praça do sol
Eu ficava a saborear as grandes distâncias
Até ir embora
Guiado por alguma luz interior
Ou carregado de dúvidas
E de pensamentos assanhados
Como companhia no longo caminho
Pelo crepúsculo dentro
Tudo o mais
Comida e bebida
Era quase irrelevante
A gula contentava-se com pão
Um punhado de azeitonas pretas
E assim se fazia noite
Até cair de sono
Ou já a sonhar irresistivelmente
Com blandinas descalças
(ou eram joias belas?)
Dançarinas de cabelos compridos
(ou eram algas comestíveis?)
Que cantavam num jardim
(ou eram sereias?)
Tão perto de mim
Que as desejava ardentemente
Ou tão afastadas
Que nunca lhes poderia tocar
O amor era assim
Tão inclemente no inverno
Como no verão
Mas não era irrelevante
Como tudo o mais
Simplesmente
Quando menos esperava
Em trocas quase reais
De prazeres de outro mundo
Por nada que não saibais.

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

Sentado a escrever

O homem sentado a escrever
Talvez seja uma ilusão
Provocada pela falta de álcool
Espectáculo para ninguém
Talvez esteja a ver a partir de dentro
Estrelas que alguma vez ignorou
A escrever uma árvore
Mais espectacular do que ele próprio
Que presume que as árvores crescem
Só até certo ponto
Não as vê a crescer como a lua
No topo da ira do adamastor
Um sol não se compara
A uma tertúlia de corvos
Depois de assaltarem a farmácia do faraó
Um espectáculo medonho
Não se compara à escrita
Nem à fala
Nem à leitura
O homem sentado a escrever
É uma corrente
Tudo o mais são âncoras
Velas cascos flutuantes
Aeronaves
Que buscam sentido e consistência
Para a contabilidade dos anseios
De cada vez que a vida é contada
Não conta mais nada
E tudo o mais se salva.