Blogs Portugal

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

O homem vulgar

“O homem vulgar não cuida em se valorizar e aperfeiçoar. Aliás, afirma o direito à vulgaridade porque ser diferente, isto é, selecto e nobre, é indecente" (Ortega y Gasset). 

A citação de Ortega Y Gasset é uma pérola genuína. É daqueles textos que são um excelente pretexto para acordar o espírito crítico sonâmbulo ou, até, ressuscitar a alma dessa eternidade que antecede o juízo final.  

Ser selecto e nobre é indecente.  

Ortega Y Gasset, colocou a questão da melhor forma. 

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

As estrelas e os satélites


Um dos pontos fracos (do ponto de vista da criatividade e da originalidade e do aproveitamento do efeito notoriedade e da canonização de figuras, símbolos, estilos, épocas e mitos, entre outros recursos religiosos e artísticos disponíveis, que são imensos...) de muitos autores do nosso tempo, incluindo Saramago e Eduardo Lourenço, e podia referir milhares deles que são escritores, porque até têm obra publicada, mas não são autores, dizia eu, um dos pontos fracos, que me desgosta e faz desmerecer-lhes muito da admiração que lhes é devotada, é o "gene oportunista" que os faz colarem-se ao astro, como se diz no ciclismo, para não dizer que vão a reboque, por exemplo, de conventos de Mafra e de Fernando Pessoa, como satélites que devem o brilho às estrelas que os iluminam.  

Se reflectem a luz dessas estrelas, não é porque lhes emprestem ou deem luz, que os satélites não têm e as estrelas não precisam, mas é porque buscam a luz e o brilho onde ele estiver e acabam fazendo seu o que é alheio.  

Mas há autores, poetas, e dou o exemplo de Pessoa, a quem repugnaria construir a sua obra com a obra de outros e, menos ainda, com os seus escombros, porque têm ou tinham uma motivação bem diferente.  

Diria que o "espírito jornalístico do mercado da atenção" se derramou sobre o nosso tempo como um pentecostes, desta vez, mais do tipo igreja universal. 


terça-feira, 15 de dezembro de 2020

O poder das ficções

A parte mais resistente para quem se afoita a penetrar e a pensar e a reflectir e a falar sobre a sociedade e a cultura é quando se percebe que, afinal, não temos alternativas a viver, pensar e a expressarmo-nos senão enquanto ficções, até de nós próprios.

Mesmo quando estamos conscientes disso e entendemos as coisas dentro do seu universo de significações, não nos resta senão viver de acordo com isso.

Se um autor, por exemplo, quiser ficcionar um universo paralelo, não consegue.

É tão ou mais difícil do que falar de um mundo sem metafísica e alquimia cujas linguagens e conceitos são da metafísica e da alquimia.

É tão problemático como tentar explicar que "Deus morreu" a uma multidão que, logo, reclama pelo cadáver, que têm como certo não ser possível exumar, e não ser essa a tarefa.

Na relação sujeito-objecto, o objecto passou a integrar o próprio sujeito como parte do problema, senão a maior parte.

E existem muitos riscos de comprarmos, ou de adoptarmos ficções que, de todo, não nos convêm.

Nem só os charlatães, bruxos e bruxas, sequestram os seus clientes com o poder das ficções que, habilmente, tecem para eles, fazendo-os crer que a teia existe.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Estou a pensar nos direitos humanos

Estou a pensar em ti. 

Vejo macieiras e laranjas, e umas nuvens brancas. 

Há um gato a saltar da laranjeira mais alta para o chão. Confunde-se com as sombras. Das outras árvores, voam pássaros em diversas direcções. Reconheço alguns, como se já os tivesse visto algures, mas não me parece.

À minha frente, um prado esverdeado, depois, uma floresta. 

Estou sentado nos degraus de um monumento ao Ser. 

À minha esquerda, vejo um monumento à Razão. À minha direita, um monumento ao Ter. E há outros, que não vejo. Estes parecem-me todos iguais. 

E as dez casas que avisto, também, mas nem todas têm as janelas abertas. 

O gato veio alapar-se dez degraus abaixo daquele em que apoio os pés e não tira os olhos do que estou a fazer. A qualquer movimento meu, observo um movimento da cabeça dele. 

Enfim, a pensar em alguém que significa imenso para mim.

sábado, 5 de dezembro de 2020

Filosofia e sentido

A filosofia chega a ter semelhanças com uma cobra que, faminta, toma a própria cauda por uma presa e se põe a engolir-se a si própria, anestesiando-se com o próprio veneno, senão quando já desenvolveu imunidade o que, nem assim, deixa de suscitar a questão: até que ponto se pode ser autofágico? Ou, a partir de que ponto a cobra se pode considerar engolida por si mesma?
Não se sobrevive nutrindo-se de si mesmo.
O cérebro é um órgão muito especial que, segundo alguns neurocientistas, não evoluiu para encontrar a sabedoria, mas para sobreviver. 
A maioria das pessoas, incluindo talvez a maioria dos poucos filósofos que a história produziu (é possível saber os nomes e o que escreveram, sem ter uma grande memória), não pensam, verdadeiramente, não pensam, no sentido em que aquilo que percepcionam, leem, parece não lhes passar pelo cérebro, pelo menos por aquela parte do cérebro, que é suposto termos, "responsável" pela inteligência, ou pelos processos de inteligibilidade. 
As "coisas" entram pelos ouvidos, pelos olhos, enfim, pelos sentidos e, muitas vezes, saem pela boca, ou pelas expressões gráficas, etc., sem terem indícios de haverem passado pelo tal cérebro. 
Isto, assim sendo, nem é bom, nem mau, não é bonito nem feio, não está certo nem errado, não é melhor nem pior, mais ou menos verdadeiro do que se fosse diferente. Se for, é o que é e não tem de ser, nem pode ser outra coisa, pelo menos enquanto for assim.

sábado, 28 de novembro de 2020

Futurologia

Podemos fazer futurologia em muitos domínios. Não que possamos garantir que algo vai acontecer. Nem sequer que vamos morrer. A este propósito, o cristianismo capitalizou uma brecha lógica na causalidade, como uma esperança ou uma maldição, ao proclamar que Cristo, de novo, há-de vir, para julgar os vivos e os mortos, e o seu reino não terá fim, deixando aos crentes a esperança de que, se se portarem bem, até poderão ter a sorte de não morrer, assistindo a essa vinda redentora, que ninguém sabe quando será.

Por outro lado, a ciência é uma constatação de que, se produzirmos uma determinada causa, podemos esperar um determinado efeito, mas não podemos dar esse efeito como certo, enquanto ele não se verificar.

Podemos questionar se tudo é causa e se tudo é efeito. Nem todas as causas produzem efeitos? Nem toda a causa produz os mesmos efeitos? Há efeitos sem causa? Que efeitos podemos atribuir a uma causa, no sentido em que nos é possível, com os nossos conhecimentos e tecnologias, verificar isso?

Quer-me parecer que nem com todos os conhecimentos de que hoje dispomos, nomeadamente dos efeitos e das causas, ou destas por aqueles, seríamos capazes de determinar minimamente, todas as causas desses efeitos e, menos ainda, muitas das causas dessas causas.

Ora, se é tão difícil e complexo, para não dizer impossível, conhecer as causas pelos efeitos, ou seja, "adivinhar" o passado, quanto mais difícil não será "adivinhar" o futuro, ou seja, a partir do conhecimento das causas (aparentemente elas estão no nosso campo de observação actual) prever os efeitos.

Aquilo que, na economia do pensamento abstracto, seria uma inferência, por indução, ou dedução, na economia dos factos e da acção concreta, revela-se um quebra-cabeças, justamente, porque pode ser, literalmente, um quebra-cabeças.

segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Ornatos e razões puras de uma ideia para enganar crédulos

A meritocracia, a aristocracia e a própria democracia são formas de entronizar nos imensos e superiores poderes do Estado, e de os colocar nas suas mãos, aqueles, indivíduos ou grupos, ou partidos, já posicionados no mais alto nível de privilégios, prerrogativas, vantagens.

Na realidade, são formas de plutocracia e de cleptocracia, com os evidentes perigos que isso representa para a sociedade em geral, sobretudo para aqueles que têm de se sujeitar às condições económicas, políticas, de acesso à justiça e à saúde e ao poder.

O poder do Estado, sendo o "activo" mais valioso que há, nem por isso está a salvo e não vemos mérito, ou confiança que o mereça, nem superioridade moral, intelectual, humana, de alguém, que justifique a colocação do poder nas suas mãos.

Sobretudo porque a guarda e gestão desse bem público não tem sido vista e entendida como tal pelos titulares dos órgãos de poder. O poder tem sido uma oportunidade, legitimada e insindicável, de fazer desse património incomensurável do Estado, a maior fonte de rendimentos, para quem o gere, sob todas as formas, incluindo a corrupção.

Se há uma forma menos perversa de tomada do poder é a que ocorre por efeito da democracia pluripartidária, se esta não estiver instrumentalizada por algum partido que abusa das fragilidades e das contradições do sistema, nomeadamente eleitoral e se o dogma da bondade da democracia não dispensar a vigilância das pessoas induzindo-as a confiar que o poder está em boas mãos. Esta confiança inerente e esta falta de alternativas à democracia garantem a qualquer formação política um monopólio da oferta política com os grandes defeitos e inconvenientes associados.

Os eleitos não apenas se arrogam uma legitimidade, muito para além do formal, como ainda agem em consciência de que não há alternativa, de que mais do que "democráticos", são "aristocráticos"(os melhores) e o preço a pagar pela governação, ou seja, a “entrega” do poder nas suas mãos, são eles que o estabelecem.

Isto tudo é muito triste, na perspectiva dos contribuintes que acreditam na racionalidade do sistema e nos méritos do apregoado Estado de direito democrático.

Que estes méritos pouco mais sejam do que ornatos e razões puras de uma ideia para enganar aqueles, crédulos e fiéis, impotentes, que são sobre quem esses méritos se fazem sentir e justificar, sem escrúpulos, por abuso da subserviência e do temor deles, é ainda mais inaceitável e revoltante.

quinta-feira, 12 de novembro de 2020

O positivismo de Auguste Comte e de Platão

O filosofar é uma actividade severamente ameaçada por se desenvolver mediante um discurso cuja linguagem não nos pertence senão na medida em que a utilizarmos e não nos serve senão na medida em que a dominarmos na medida em que os nossos interlocutores a dominarem. Se juntarmos a isto o problema de, ao filosofar, o discurso filosófico ser o objecto do filosofar, porque não se trata de filosofar senão sobre ideias, ou conceitos, ou imagens, cujos contornos e conteúdos é impossível estabelecer, o que retira a esperança de duas pessoas, ao filosofarem uma com a outra, terem a mínima segurança ou certeza de estarem a pensar a mesma coisa ou algo bastante parecido, há motivos para pensar, como parece que Comte pensava, que há que ser positivo, no sentido de adoptar uma atitude construtiva com base na utilidade e no valor daquilo que pode promover a humanidade como aposta ganha.

A proposta dele partiu dessa necessidade de ordem e progresso social e que ele acreditava ser possível apenas através da religião. A experiência da Revolução francesa, que Comte vivera de perto, era a prova de que a igreja católica não tinha conseguido mobilizar a sociedade e menos ainda a Humanidade, em torno de um valor supremo que não ela própria. 

Deus não era suficientemente apelativo, nem suficientemente convincente para ser afectivamente adoptado como bem supremo.

Comte, talvez acreditando que o que move as pessoas são os afectos e as necessidades que geram solidariedades em torno de interesses e objectivos colectivos e individuais, elaborou um catecismo com a doutrina de uma religião universal que, no lugar de Deus, teria o amor por princípio, a ordem como base e o progresso por finalidade.

Essa seria a forma de alicerçar a construção da sociedade humana ideal.

A unanimidade seria obtida por efeito da verdade da ciência, que teria como sacerdotes os cientistas e cujo carácter experimental e verificabilidade não estariam sujeitas a refutação.

As ramificações, os desenvolvimentos, as interpretações, as versões e os sucedâneos desta ideia de positivismo (por oposição a negativismo-que afirma a impossibilidade de conhecer o ser), foram inúmeras e tiveram aplicações adaptadas em regimes políticos autoritários concretos.

Entrevejo algum paralelismo entre a situação histórica de desordem vivida por Comte, a vivida pelos filósofos Sócrates e Platão e o tipo de resposta que deram ao problema de, sendo filósofos, o que sabiam e podiam fazer face à violência e às guerras.                                                  

Sócrates, não tinha escola, dizia que não tinha nada para ensinar e é famosa a declaração “só sei que nada sei”, que lhe é atribuída.                        

No entanto, segundo o oráculo de Delfos, Sócrates era o único sábio. Então, ele terá concluído que, se era o único sábio, era porque só ele sabia que nada sabia. Os outros nem isto sabiam. Com esta alegação, talvez Sócrates irritasse muita gente que acreditava que o oráculo não mentia. 

A filosofia parece ter nascido, assim, da necessidade de fundamentar até à irrefutabilidade as opiniões sob pena de elas não passarem de expressão de interesses, instintos, desejos, paixões, ilusões, frustrações...

Mas Sócrates não acreditava que fosse possível fundamentar o que quer que fosse até à irrefutabilidade, nem a sua ignorância. E, neste ponto, ele parecia brincar com a "infalibilidade" do oráculo a seu respeito. 

Sócrates adoptara uma posição, digamos, “negativa”. Contestava os outros, porque só tinham opiniões e porque ter opiniões não é saber, mas ficava por aí, não sabia mais.   

Platão não aceitava esta saída e entendia que a filosofia “tinha a obrigação” de fazer mais. Esta posição era, digamos, “positiva”, no sentido que me parece ser o do positivismo de Comte.