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quinta-feira, 4 de julho de 2024

Aproximações à verdade XXVI


Hilário: qualquer pessoa sabe muito mais do que sabe que sabe

Amiga: muito mais e para além

Hilário: mas vale a pena dedicar atenção e pensar acerca do assunto

Amiga: isso é metacognição e é essencial na aprendizagem

Hilário: saber mais do que sabemos que sabemos é apenas um efeito de não ser possível monitorizar completamente a nossa memória, seus repertórios e processos de pensamento

Amiga: uma grande preocupação com a metacognição pode sobrecarregar a memória com problemas meramente teóricos e intelectuais

Hilário: em casos extremos pode ser paralizante, se tentares monitorizar comportamentos reflexos ou de rotina

Amiga: se sempre que deres um passo quiseres ter o controlo de tudo o que está a acontecer e, ao mesmo tempo, quiseres ter o controlo do que estás a perder por não pensares noutras coisas, etc, o melhor é “delegares” certas tarefas a esses operadores automatizados

Hilário: não conseguiríamos fazer o que fazemos se muitas das tarefas não fossem resolvidas por hábito, sem termos que pensar

Amiga: por hábito, por instinto, por natureza

Hilário: mas muitos dos nossos hábitos começaram por ser atos pensados que fomos repetindo até termos a sensação de que fazemos as coisas sem termos de pensar nelas

Amiga: o homem é um animal de hábitos

Hilário: se fossemos capazes de reforçar positivamente apenas bons hábitos e de reforçar negativamente os maus, a vida seria mais fácil

Amiga: isso permitir-te-ia a proeza de seres feliz sem pensares que o eras, sem teres a noção

Hilário: não sei se gostaria de me habituar a não ter que pensar

Amiga: eu fui-me habituando a pensar cada vez mais em tudo.

                 Carlos Ricardo Soares 

quinta-feira, 27 de junho de 2024

Sobre a anatomia do pensamento

Sabemos o que é a lógica? Existe lógica sem uma linguagem? 

Não confundamos racionalidade, consciência e lógica. Esta é um fenómeno linguístico, a racionalidade não. 

Quanto ao pensamento, ele começa por se estruturar na consciência e na racionalidade, mas só se torna um problema de lógica com a linguagem. 

Esta é a minha tese sobre a anatomia do pensamento.

             Carlos Ricardo Soares

terça-feira, 18 de junho de 2024

Linhas de orientação


Linhas de orientação

Na linha do que disseste

Não são linhas ténues

À volta da fogueira

Ou dos vigilantes do museu

Que ninguém conhece

Porque não há intérpretes

Privilegiados

Que se aproximem o necessário

E o suficiente

Do que não foi feito para eles

Cada vez mais sós

Os que estão sós

Os que não têm ninguém

Que os defina

Por não estarem ligados

A nenhuma mágoa encantadora

A alguém

Que os mata

De um mundo morto

Ou agonizante

Aparte póstumo

Testemunho que sobra

Sem remédio

Porque nada diz

E nada retira ao que disse

Que nunca se perdeu

Nas distrações felizes

Do acaso

Num teatro humano

E tempo desumano

De caça ociosa

Como modo subtil de vida

E de liberdade

Como se aí estivesse a razão

E o ser absorvido na difusão

Dos lugares e das obras

Presenças e fugas

Preponderantes

Da posse da própria vida

Afeições de versos e deriva

Destino abandonado ao jogo

Que o destino é de aparências

Inquietações de poeta

Impressões de vagabundo

Que separa junta e aproxima

Eroticamente

Aberturas de fuga ilusória

E de gozo

Entre objetos e sentidos simultâneos

Quando a melodia e o baile

Bem poderiam ser reais

Se a morte não fosse mais

Do que a mortalidade

Uma obscuridade

Embrulhada em suspiros

Impossíveis desabafos

Chamar liberdade ou amor

À perdição

Poemas sem juízo

Rosas em silêncio no tumulto

Dos lábios

Dedos sobre as cordas

De um instrumento de feições

De alegria de fantasmas

Louca e fugaz como a fala

Que contrabandeia literatura

Como forma de prazer

Sem compromisso

E sem mais intimidade

Que a decisiva

Como se houvesse lugares

Essenciais

Por serem interditos

Nada é mais belo

Do que escapar

Aos significados de uma vida

Sem paz

De densidades insolventes

De pedras que crescem

Como se os cristais uivassem

Quem somos

Ou dores enraizassem mais fundo

Que o sentimento de resgate

De nós

Não apenas sós

Os que estando sós

Não são ninguém

Como nós.

                          Carlos Ricardo Soares

sexta-feira, 31 de maio de 2024

Aproximações à verdade XXV


Amiga: não te precipites

Hilário: onde está o precipício?

Amiga: não me assustes, não estava a pensar num precipício

Hilário: eu também não, tu é que falaste

Amiga: precipitei-me

Hilário: quem é que nunca se precipitou?

Amiga: não brinques

Hilário: sou uma pessoa com quem se pode brincar

 Carlos Ricardo Soares 


segunda-feira, 27 de maio de 2024

Estrelas do mar


Réstias porosas

De mar

No âmago

Quimeras

Conchas da mão

Remota

Espera calcária

Luar de encantos

Fossilizado

Verão

Que oscila

E a maré supera.


                Carlos Ricardo Soares

segunda-feira, 13 de maio de 2024

O bem e o mal

Não colocaria o problema em termos de bem e de mal.

Mas tenho a percepção de que, historicamente, há processos que parecem confirmar que, por exemplo, o movimento dos revolucionários tende a tornar-se naquilo que combatem, e não numa alternativa, ou seja, o que achavam mal era mau porque não eram eles a fazê-lo.

Isso parece-me muito claro se pensarmos no fenómeno da (des)colonização, ou, para ser mais obsidiante, em certos comportamentos, nomeadamente, sexuais.


Carlos Ricardo Soares 

terça-feira, 23 de abril de 2024

Os Direitos do Homem são como um pau de dois bicos

As declarações de direitos humanos não são um pau de dois bicos mas, pelo menos, de três. Não é correto considerá-las como a outra face (dos deveres) da mesma moeda. Sabemos da experiência corrente, quotidiana, que um dever refere-se a um exercício enquanto um direito se refere ao exercício e ao gozo. Os direitos e deveres humanos, não estou a falar de direitos e deveres de origem contratual, que são a maioria, e nestes ressalta a negociabilidade, por exemplo, da liberdade, não têm correspondência sinalagmática, de reciprocidade e igualdade restrita. Animais, crianças, incapazes, inimputáveis, são exemplos de direitos sem correlativos deveres.
Ainda antes de passar a outra questão, a metáfora dos dois bicos, aplicada de um modo geral aos direitos do homem, parece-me muito interessante e ilustra muito bem a ideia de que ao apontarmos o bico para o outro estamos a apontar outro para nós.

A questão da razão de ser, que não confundo com a fundamentação teórica, dos direitos e dos deveres, as declarações de direitos não carecem de ser complementadas com uma declaração de deveres, a não ser que não sejam universais, porque nesse caso é necessário discriminar os direitos e os deveres.
Se perguntarmos porque surgiram e porque se afirmaram as proclamações da liberdade e da igualdade, não podemos deixar de pensar que na sua génese, histórica e cultural, está uma razão de ser que é uma evidência lógica, em geral e abstrato. Uma coisa são os factos, a liberdade e a igualdade concretas e outra são os direitos, o direito. Aquelas não devem deixar de ser “julgadas” à luz do direito.
A questão da dignidade humana, em meu entender, tal como a questão da dignidade dos outros seres vivos, radica na mesma lógica do direito, da igualdade e da reciprocidade.
No caso dos humanos, a dignidade, ser digno de direitos, pode ser interpretada em várias perspetivas, mais ou menos paternalistas e hierárquicas, por exemplo, o direito como algo que é concedido por quem tem o poder (no limite, de vida e de morte), religioso, político, militar, económico, como algo que tem a sua fonte numa relação de forças de cujo atrito se alcança algum equilíbrio, no entanto, a Declaração Universal dos Direitos do Homem parece ir mais longe e colocar a tónica no facto, e no princípio, de que os direitos humanos são individuais, pessoais e não estão (não devem estar), na esfera de disponibilidade de quem quer que seja, inclusive do próprio indivíduo. Não são, nesse aspeto, um título, ou um estatuto, hierarquicamente conferido, ou concedido, como acontece, por exemplo, no caso do cidadão.
Digamos que ninguém nos pode dar o que é nosso e, menos ainda, como tantas vezes foi prática e continua a ser, vender-nos o que é nosso.

Aliás, os Direitos do Homem não dependem de estarem escritos ou reconhecidos em algum lugar, inclusive nessa Declaração, o que torna este documento, também por isso, um grande pilar da civilização.

Em termos de hierarquia, eles estão no topo da pirâmide, justamente no lugar onde as religiões colocavam Deus, por herético que isto lhes soe.
Mas esta dignidade tem o reverso da medalha: a violação de um valor tão alto é mais grave do que a violação de um valor mais baixo. E essa dignidade do homem não o dispensa, nem o põe a salvo de ter que responder por ela.

Carlos Ricardo Soares