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sábado, 7 de janeiro de 2023

Somos racionais e daí?

Comecemos por dizer que no indistinto não há racionalidade e, se há alguma coisa, falta quem o saiba. Só a racionalidade pode dizer de si que é irracional, ou que existe irracionalidade, o que, racionalmente, parece uma contradição. Nem sequer podemos prescindir dela. Estamos para ela como ela está para nós, numa relação de absoluta interdependência. Ela precisa de uma cabeça pensante o suficiente.
Toda a análise, comentário, interpretação, conhecimento, opinião que se faça, incluindo a crítica da (ir)racionalidade humana, ou a defesa de algum tipo de irracionalidade, ou o reconhecimento de que a racionalidade humana é uma faculdade humana que não deve, nem pode fazer-nos esquecer que o homem é um ser vivo com vastas e complexas aptidões e funções que escapam a essa racionalidade, ainda que possamos conjeturar que são processos biológicos inteligentes, que ocorrem à revelia da nossa consciência e da nossa vontade, são uma atividade racional. Ou seja, ao descobrirmos e reconhecermos que grande parte daquilo que ocorre e acontece, designadamente no ser humano, seja por efeito voluntário, consciente, ou não, estamos a ser racionais, a usar a faculdade da razão. 
A cultura, as atividade humanas que dependem do uso da razão, os artefactos e as linguagens e as condutas (não propriamente os comportamentos involuntários e inconscientes) são o que nos permite fazer ideias acerca do mundo exterior e interior. E isto não acontece sem racionalidade. 
Não vou ao ponto de supor que a racionalidade é o modo como a própria natureza, no seu todo, incluindo a loucura, os demónios e os deuses, existem. Não vou a esse ponto de acreditar que nada escapa às leis da natureza, nem as leis humanas. 
Não vou ao ponto de acreditar que assim como é impossível violar uma lei natural, também ninguém, em última análise, pode violar uma lei humana. Mas não tenho dificuldade em ver no ser humano um ser racional que deve grande parte daquilo que faz e do modo como faz e uma parte daquilo em que se tornou e pretende tornar-se, mormente enquanto ser social, à racionalidade. 
Não me parece, de jeito nenhum, que se possa assacar à racionalidade humana as causas, ou a responsabilidade por algum problema que nos afete, quer como indivíduos, quer como sociedade. Não é por serem racionais (e penso que apenas as condutas o serão) que elas são boas ou más. É a racionalidade que permite distingui-las em boas ou más. 
Os problemas humanos não decorrem da racionalidade, bem pelo contrário. São as bitolas que servem de referência à racionalidade que, em cada momento, condicionam e determinam a relação complexa, que também é racional, entre a avaliação subjetiva, em função da social e a interiorização da social, em função da subjetiva e os exercícios das liberdades. 
Em si mesma, a racionalidade é neutra e não é correto, embora seja racional, culpá-la de não ter sido capaz de impedir os males que a humanidade inflige a si mesma como se, por isso, devesse ou pudesse ser substituída por qualquer tipo de irracionalidade.
A educação e o ensino podem desempenhar um importante papel na preparação da atenção e dos processos de avaliação da realidade, natural, humana e social, despistagem de equívocos, de aparências ilusórias, de crenças injustificadas, mas também podem ser fomentados para reforçar e levar a aceitar acriticamente como verdades e valores, mitos, narrativas, prescrições, normas, cânones, ou situações de facto consumado, mais ou menos inelutáveis a cuja realidade não se pode deixar de dar uma resposta adaptativa, sendo que, em si mesma, essa realidade já se apresenta como uma resposta adaptativa.

domingo, 1 de janeiro de 2023

A vida

A vida tem destas coisas

2023 que está a começar

E tem-te a ti

Com esse olhar

Que me inunda os pensamentos

De luz inebriante

De campos de bem-me-queres

De beleza rara

Que respira.

sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

A estrela no topo da árvore

A sociedade em que vivemos é altamente perversa e quem conseguir adaptar-se a isso é idolatrado e contribuirá mais ainda para legitimar a crueldade. Todos aprendemos desde cedo que o princípio da eficiência e da economia é um princípio de racionalidade a todos acessível e incontestável.
E todos sabemos que a organização social, económica, política, militar, cultural, é a negação desses princípios. E é a negação intencional, procurada, fomentada a todo o custo.
Nenhum dos objetivos expressos da educação e do ensino está alinhado com a realidade política, económica, social, nomeadamente de mercado, cujos objetivos, embora tropecem naqueles e aqueles nestes, se impõem como “conditio sin qua non”.
E o que está em causa nesta realidade económica, cultural, social, não é, nem a eficiência, nem a economia, nem a educação, nem o conhecimento, nem o ensino.
Em Portugal, dois cérebros ou três acharam que podiam colocar os analfabetos portugueses a rezar o terço ou a fazer crochet para o resto da vida e que se dariam por satisfeitos.
Mas apareceram outros dois ou três que acharam viável porem-nos a correr atrás de uma bola, e isso resultou.
Faltam mais dois ou três cérebros que ponham os portugueses a resolver problemas de matemática e a ler e a escrever, mas isso só será possível se continuarem a fazer prioritariamente os jogos em pirâmide do costume.
E que no topo da árvore brilhe o sol que a todos providencia.

domingo, 18 de dezembro de 2022

Armadilhas do pensamento

Vamos tentar agitar os elementos o menos possível para que não acabe tudo numa solução, em sentido químico.
O nosso cérebro não foi feito para pensar? Alguma coisa foi feita para pensar? Tudo, na vida, foi feito para sobreviver, mas não para pensar? Pensar começou por ser um acidente? Um acidente a evitar? Que não foi possível evitar, ao ponto de se ter tornado o melhor instrumento, meio, forma, recurso, para sobreviver? Quantas coisas fazemos sem pensar? Aparentemente são muitas, mas não será apenas aparentemente, porque há inúmeras rotinas em que o “acto de pensar” está automatizado, sem necessidade de passar por um controlo?
Pensar está na natureza humana como algo, função, faculdade, que tem poderosas armadilhas, ao ponto de, verdadeiramente, pensar poder ser detectar isso e detectá-las passo a passo, mas sobretudo reconhecer e identificar armadilhas que aparecem camufladas e confundidas com pseudoarmadilhas, ou armadilhas irrelevantes, tipo sexo dos anjos, que não deixam de ser cruciais numa estratégia bélica, de defesa ou de ataque, porque muitas vezes a arte dos engodos é a supina arte da guerra. Ora, cá está um exercício de pensamento doloroso e cansativo, e é inevitável que o seja porque pensar, verdadeiramente, é como remar contra a corrente.
É caso para perguntar “se assim é, como é que ainda há quem pense?”. A resposta será, naturalmente, porque nem todos se deixaram levar na corrente. Caso contrário, já ninguém pensaria. O perigo é esse: que nos vençam pelo cansaço e nos impeçam de desovar.
Uma das armadilhas do pensamento pode ser “julgar que se ganha em se perder”, “para quê lutar se a vida não se vence?”.
De qualquer modo, pensar positivo não cansa menos do que pensar negativo, até porque, muitas vezes, pensar positivo, ou negativo, é a maior ilusão que se pode ter acerca do próprio pensamento. É óbvio que quem não pensa é como se não existisse? Isso pode ser temporariamente bom, mas definitivamente?
A educação esbarra contra um obstáculo que não se compadece com sistemas de racionalidade económica de feição “piquete de intervenção”, formação intensiva, porque ela deve, sobretudo, preservar a liberdade e a dignidade da pessoa, promovendo a sua autonomia de pensamento, ou seja, tem como desiderato o bem-estar e a realização pessoal do educando, salvaguardando-o das tentativas, mais ou menos sucedidas, de o instrumentalizarem para fins, por exemplo, militares, e ensinando-lhe que, se pensar bem, o mais provável é que venha a revolucionar as teorias, mas pouco ou nada possa fazer para escapar às práticas.
Desnecessário isto, porém, porque, se pensar bem, o educando, possivelmente, não pensará assim.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

Frotas de navios mercantes

Será que sabemos alguma coisa, ou tudo aquilo a que chamamos saber e conhecimento é imaginação nossa? Ou, por outra, saber e conhecimento são imaginação e não mais do que isso? Ou, ainda, se assim é, nem por isso toda a imaginação é saber e conhecimento? O que está em causa nestas interrogações é a nossa relação “cognitiva” e “intelectual” com a realidade e é essa que, justa e surpreendentemente, ocorre num domínio, a imaginação, que estamos habituados a ver relegado para fora do conhecimento.

Há as coisas, há a vida. E há o que se diz. E o que se diz sobre as coisas e sobre a vida. E sobre o que se diz. Até à vertigem. Ou exaustão.

O que se diz sobre a vida não substitui, não pode, nem deve substituir ou sobrepor-se à vida.

O que se diz sobre as coisas não substitui, não pode, nem deve substituir ou sobrepor-se às coisas. 

Não tomemos a representação das coisas, a fotografia das coisas, a imagem das coisas, a explicação das coisas, o filme das coisas, o esquema, seja ele qual for, matemático, químico, pictórico, filosófico, teológico, geométrico, pelas coisas.

Muitos de nós vivemos demasiado carregados dessas imagens e demasiado iludidos para percebermos que isso não é o mundo, é estar fora do mundo o mais possível, como se tomássemos a fotografia por aquilo que ela representa e andássemos a transacionar cromos, ou notas de banco, à mesa do café, como se estivéssemos a pilotar frotas de navios mercantes.

terça-feira, 13 de dezembro de 2022

Nesse tempo

Nesse tempo até as prostitutas diziam

Que gostavam do que faziam

Havia mais sinceridade nas sombras de cortar à faca

Do que arte de viver em palcos desmontáveis

Entre as esquinas e as ruas movimentadas

Havia uma cumplicidade de anjos de bronze

Com pombos vadios

Que só era limpa nas palavras do romântico

Do tempo de as coisas serem como são

De as personagens quererem ser humanas

Sem precisarem de outra razão.


quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

Sem regresso

Depois de atravessar a nado

As águas geladas do rio neve

Ouviu os corvos a crocitar

Enquanto sobrevoavam

Em círculos

O que ao longe

Parecia uma montanha

Mas ao perto

Era um inimaginável cúmulo

De êmbolos e cambotas

Dínamos e gambiarras

Eixos e jantes de tratores

Tanques de guerra

Pedaços da fuselagem

De aviões militares

Tudo amontoado numa pilha

De ferrugem sobre a carcaça

De um porta aviões

Que ninguém sabe como foi

Ali parar

Durante dez anos não fez mais

Senão inspecionar aquele arranha-céus

De sucata onde o vento fazia música

Que o fazia arrepiar

Mas foram precisos mais dez

Para chegar ao topo desses desperdícios

E se sentar

Avistando então ao fundo o mar

E as cidades dos humanos

Que toda a vida imaginara

Mas sentiu a vertigem terrível

De ser impossível regressar

Daquela altura

Que antevia como sepultura.

sábado, 3 de dezembro de 2022

Ter a dizer

Nada ter senão a dizer

O mundo com tantas fontes

Tantas árvores de fruto

E tantas mesas de pão

Com seus comboios de música

A atravessar oásis sem estação

Os desejos suspensos

De tanta imaginação

Passeios pela abundância

Que cansa de sonhar

A privação de prazer

Mais frustração do que alegria

Com que se aprende a lidar

Nem sempre fará esquecer

Os reinos da fantasia

Em que quero acreditar.