quinta-feira, 9 de dezembro de 2021
Deixar o mundo seguir
A
última vez que perdi um comboio
Teria
gostado de saber que era o último
E
que no dia seguinte não haveria outro
Com
pior sorte
A
gare de súbito silenciosa
Sem
gente e eu
No
frio inóspito
Até
os pensamentos eram cães
E
os cães confusos
Na
noite cerrada
Atiçados
contra os vultos sem refúgio
Uns
dos outros
Com
uma raiva de ladrar danada
Aos
comboios inventados para isto
Ao
fim de mais de quinhentos quilómetros
Para
onde tinha viajado meses
Senão
anos
Para
estar no funeral de amigos
Dos
anos sessenta
Que
eu esperava num banco
Que
há em todas as estações
Com
mil nomes e mil rostos diferentes
Que
coincidem com o que dizem ter sido
O
fim e o começo de tudo
Em
finisterra
Quando
o comboio apitou
Já era tarde
E
se me soergui
Num
assomo de vida
Foi
para vê-lo por um momento
A
afastar-se veloz e sem alarde
Até
desaparecer
Onde
as linhas paralelas se encontram
Teria
gostado de me corresponder
Com
essa dor imerecida
Mesmo
sendo minha
Escrever-lhe
intermináveis cartas
Na
vã tentativa de obter resposta
Do
que sinto
Por
tanto amar
Teria
gostado de acreditar
Que
há mais do que uma chave
Para
sair sem entrar
Noutro
labirinto
De
fantasias
De
estações vazias
Aonde
nunca cheguei a tempo
Como
se tivesse planeado
Que
era melhor assim
Para mim.
quarta-feira, 1 de dezembro de 2021
Ciências da vida, ciências humanas
Penso na frustração que atingirá qualquer cientista por não
poder operacionalizar o seu conhecimento e a sua tecnologia, incluindo a IA,
para propor à comunidade científica internacional uma lei do bem e do mal, em
que, o bem fosse a vida e o mal fosse a morte. Reconhecer que, na essência e
nos fins, todas as ciências têm em comum serem ciências do Homem, ciências
humanas, e todas serem motivadas e justificadas pela necessidade e pelo valor da vida e das ciências (da vida).
O que fundamenta o direito e correspectivo dever de respeito
pelo indivíduo humano também fundamenta o dever de cada indivíduo humano, e
todos em geral, respeitar tudo aquilo que não é sua autoria e que tem
relativamente ao Homem existência independente, como acontece com a natureza, incluindo a humana.
O facto de dependermos dessa natureza e não o contrário, confere-nos
alguma legitimidade baseada na necessidade física e biológica de sobrevivência.
Não nos é possível respeitar a integridade daquele mundo
exterior, físico, biológico, de que dependemos visceralmente, vitalmente. Mas
é-nos possível, é desejável e imperioso, moral, diria até, imperativo
categórico, reduzir ao máximo os efeitos nefastos e devastadores da utilização,
exploração, que fazemos dos recursos naturais, se não pudermos evitar
completamente os efeitos, nocivos e irremediáveis, dessa utilização.
Nada de matar, como princípio. Nem pessoas, nem animais, nem
plantas.
O mais que se pode permitir, porque nada se pode fazer, por
mais que nos custe, é ver morrer o que não se pode salvar.
A inteligência do homem, quanto a isto, historicamente, delegou todos os
poderes em Deus, que ainda não resolveu nenhum dos problemas, como seria de
esperar por um homem inteligente. O homem não é inteligente. Pelo menos não é
inteligente no sentido de ser capaz de "ver" para além daquilo para
que é dotado, ou naturalmente apetrechado.
Se o homem é o diabo, ou deus, o que constato é que muitos
estão dispostos a admitir que seja o diabo e ninguém esteja minimamente
inclinado sequer a pensar que seja deus. Isto diz muito sobre o que pensamos a
próprio respeito, mas não diz nada sobre o que a natureza do homem é, ou, por
outra, sobre quanto do homem é natureza e nada mais do que a natureza a seguir
os seus rumos irreversíveis.
Ninguém, senão o homem, se queixa de as coisas não serem de
um certo modo.
domingo, 28 de novembro de 2021
O poder da música
Porque
é que a música
Tem
tanto poder
E
ninguém se queixa de abuso de poder
Tem
tanto mais poder
Sobre
nós
Quanto
mais tivermos
Sobre
ela
Ao
fruir a música
Experimentamos
o melhor de nós
E
quanto mais fruímos
Mais
se desfaz um laço
E
nos liberta
E
faz dançar
E
nos desperta
Desejos
de correr saltar
Voar
Nos
faz esquecer
Nos
faz lembrar
Nos
une a cantar
E
tem graça
Tentarmos
chegar
À
nota mais alta
Que
se pode imaginar
À
que faz mover
Ou
relaxar
Que
livra de sofrer
Ou
de pensar
Em
coisas tristes
Que
faz sonhar
E
estremecer
E
acordar
E
chorar de emoção
Por
termos ido tão longe
Que
tarda voltar
Subido
mais alto que o medo
De
uma queda grave
Descido
tão profundamente
Que
chegamos aonde
Só
a música pode chegar.
terça-feira, 23 de novembro de 2021
Sem mãos a medir Blandina
Sem mãos a medir
Blandina desdobrava-se
A colocar nas mesas belas canecas
A tarde toda
Debaixo da árvore frondosa
Que abrigava a praça do sol
Eu ficava a saborear as grandes distâncias
Até ir embora
Guiado por alguma luz interior
Ou carregado de dúvidas
E de pensamentos assanhados
Como companhia no longo caminho
Pelo crepúsculo dentro
Tudo o mais
Comida e bebida
Era quase irrelevante
A gula contentava-se com pão
Um punhado de azeitonas pretas
E assim se fazia noite
Até cair de sono
Ou já a sonhar irresistivelmente
Com blandinas descalças
(ou eram joias belas?)
Dançarinas de cabelos compridos
(ou eram algas comestíveis?)
Que cantavam num jardim
(ou eram sereias?)
Tão perto de mim
Que as desejava ardentemente
Ou tão afastadas
Que nunca lhes poderia tocar
O amor era assim
Tão inclemente no inverno
Como no verão
Mas não era irrelevante
Como tudo o mais
Simplesmente
Quando menos esperava
Em trocas quase reais
De prazeres de outro mundo
Por nada que não saibais.
segunda-feira, 15 de novembro de 2021
Sentado a escrever
O homem sentado a escrever
Talvez seja uma ilusão
Provocada pela falta de álcool
Espectáculo para ninguém
Talvez esteja a ver a partir de dentro
Estrelas que alguma vez ignorou
A escrever uma árvore
Mais espectacular do que ele próprio
Que presume que as árvores crescem
Só até certo ponto
Não as vê a crescer como a lua
No topo da ira do adamastor
Um sol não se compara
A uma tertúlia de corvos
Depois de assaltarem a farmácia do faraó
Um espectáculo medonho
Não se compara à escrita
Nem à fala
Nem à leitura
O homem sentado a escrever
É uma corrente
Tudo o mais são âncoras
Velas cascos flutuantes
Aeronaves
Que buscam sentido e consistência
Para a contabilidade dos anseios
De cada vez que a vida é contada
Não conta mais nada
E tudo o mais se salva.
domingo, 7 de novembro de 2021
O bem e o mal
Não existe
espaço para outro paradigma que não seja o de bem e mal? Então a cultura
ocidental, judaico-cristã, não deixou espaço para mais nada? E o tempo que é
preciso para o comum dos mortais perceber isso? Torna-se tão longo que é quase
garantido que, até ver, não haverá nada de novo. É como aqueles estudos que
ninguém tem paciência ou interesse para ler, que muitos dizem ter lido, que
fazem sucesso, que só cem anos depois algum excêntrico descobre que está errado
e que, na realidade, é a ciência a progredir.
Ocorre-me pensar
que o bem e o mal, enquanto realidades, comportamentos, condutas humanas, referidos
a um padrão de moralidade, apesar de, ou por causa de, ser sobretudo
prescritivo e impositivo heterónomo, a que as religiões, à falta de melhor, deram
carácter totalizante, senão absoluto, constitui um verdadeiro desafio à
inteligência quando tem de julgar se o mal é o que amamos, e se não tudo, e se
o bem pode ser o que odiamos, e se não tudo.
O amor e o ódio
têm sido tratados, pela política e pelas ciências, como algo da competência de
poetas e romancistas, ou seja, como algo imaginário, que não tem catalogação na
lista canónica dos instintos, ou da fisiologia, mais focada no aparelho
digestivo e outras mecânicas anatómicas.
Mas é claro que,
numa lista de prioridades, até pela atenção e preocupação que lhe dispensa a
cultura em geral, o amor e o ódio estão à frente do resto.
Nada é mais
importante para o homem que o amor e o ódio. As guerras não se travam por causa
do bem e do mal. Nas democracias as campanhas não debatem o bem e o mal. Nem
nos parlamentos. Ninguém mata por causa do bem e do mal. Nem dá a vida. Nas
religiões o bem e o mal tem a ver com deuses e demónios, não tem a ver com
pessoas. Nos tribunais, o bem está de um lado, o mal está do outro. Na
economia, bem é valor com expressão pecuniária.
Pois bem, enquanto
não encararmos a realidade do amor e do ódio como é necessário ou, pelo menos,
conveniente, estaremos a negligenciar o maior problema da humanidade, a ignorar
o que não pode ser ignorado, sob pena de sermos continuamente derrotados pelo
que não controlamos. As guerras não se travam por causa do bem e do mal.
Ninguém quer saber do bem e do mal, a não ser os filósofos e os teólogos e os
clérigos e os religiosos.
domingo, 31 de outubro de 2021
Dá largas à imaginação
Dá largas à imaginação
Deixa-te tocar pela magia de uns olhos
Ainda que sejam falsos
A magia não
Pelo arrebatamento das palavras
Ainda que sejam uma gravação
O arrebatamento não
Deixa-te seduzir e envolver pelo cenário
De paz e de amor que almejas
Ainda que sejam uma miragem
A sedução não
Deixa-te levar pelas promessas de outro mundo
E pelas flores efémeras
Ainda que sejam para assear campas
As promessas não
Como se alguém te subornasse
Com bolos
E o suborno não.
segunda-feira, 25 de outubro de 2021
Se puderes, se não, tenta dizer isso a alguém
Se tivesses, ou se tiveste, ou se tens, de te posicionar, mesmo que de uma varanda para o mundo, e confessar, de um lado, por exemplo, do lado dos ricos ou do lado dos pobres, diz-me qual é o teu lado, e dir-te-ei o que penso.
Se puderes, mantém-te ferozmente independente dos grupos de interesses, que cercam e permeiam os comércios e os favores políticos, que não respeitam as regras do jogo democrático, que tentam ganhá-lo a todo o custo, sem pejo nenhum em fazerem batota.
Se puderes ser independente aceitarás o risco e o desafio de seres tratado com hostilidade e desconfiança por todos os que tu olhas com humana compreensão, mas não com condescendência nem com negligente desatenção.
Se puderes ser independente não serás líder de nada, nem de ninguém e, na melhor das hipóteses, tentarás ser líder de ti mesmo, porque os líderes são uns tipos que têm poder.
Se puderes recusar a condição de obediência e sujeição que te impõem como se te oferecessem vantagens, não enjeites reflectir sobre quanto em ti é feito de recusas e de submissões, de iniciativas e de liberdades.
Se puderes, investiga e desafia sem medo e sem favores e, se tiveres que te sacrificar, ainda que o sacrifício seja alto, é por um valor e um bem eminente, que importa a todos e que não está disponível nos mercados, nem nos purgatórios.
Se puderes, que sejas uma inspiração para os valentes, que não sabem o que fazer, e para os fracos, que adoptam a solução mais cómoda e imediatamente mais plausível na perspectiva do grupo dentro do qual negoceiam protecção e recompensas, em troca de vassalagem.
Se não puderes, interroga-te sobre a tua impossibilidade, sobre as causas dessa impossibilidade e tenta dizer isso a alguém.
Nunca é tarde para abrirmos os olhos e constatarmos que o coração serve para muito mais do que bombear sangue para as artérias e que as nossas preocupações devem alargar-se até àqueles que trabalham e lutam por liberdade, direito e justiça.
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