Chegados ao átrio exterior do palácio da justiça, fomos inundados por um sol fagueiro e, pela primeira vez desde que a conheço, Teresa sorriu.
- Obrigada! – disse ela olhando-me nos olhos, enquanto a segurava pelos ombros, ajudando-a a entrar num dos táxis que estavam ali de serviço.
Teresa não quis que eu a acompanhasse a casa.
- Não estou só a querer preservá-lo de quebrar as suas regras de deontologia profissional. Afinal, é o meu advogado. Ambos sabemos o que isso implica. E não é justo que o deixe expor-se a tantos perigos por minha causa.
- Falamos sobre isso depois, Teresa. Deixe os perigos por minha conta. Sentir-me-ei culpado se lhe acontecer algum percalço na minha ausência.
Mas não se demoveu e deu indicações ao taxista para que seguisse. Eu não quis ser maçador e, assim que a vi partir, regressei ao local onde tinha estacionado o carro. A minha intenção era dirigir-me imediatamente para casa da Teresa. Assim que virei a esquina constatei, porém, que o automóvel não estava onde o tinha deixado.
A minha primeira reacção foi regressar a correr à praça do palácio da justiça e apanhar um táxi, para me levar a casa. Havia um único táxi, acabado de chegar. Ainda não tinha desligado o motor, quando perguntei:
- Faz favor, antes de arrancarmos, diga-me uma coisa: transporta cães?
- Perdão! – exclamou o taxista com estranheza.
- Transporta cães? – insisti.
- Onde estão os cães? – ironizou o taxista.
- Sim, ou não? Responda se faz favor.
sábado, 31 de outubro de 2009
quinta-feira, 29 de outubro de 2009
O livro de todo o conhecimento (IV)
Não estivemos mais de meia hora no tribunal. O, ainda marido de Teresa, A. Carrancas, arguido no processo, continua a monte, sem que o Procurador da República dele haja notícia, boato ou denúncia de ter sido visto. Teresa cada vez mais sente que corre perigo de vida. Ela tem muita informação que poderia dar pistas à polícia sobre o paradeiro de A. Carrancas. Estranhamente, porém, até hoje, trinta dias após a tentativa de assassinato de que foi alvo, nenhuma autoridade de investigação criminal lhe colocou qualquer questão sobre essa matéria. Teresa tem andado muito perturbada. Vive aterrorizada, sem ser capaz de confiar na própria sombra.
Tenho tido imensas dificuldades em ganhar a sua confiança. Ela parece transmitir-me a todo o momento o receio de que o assassino ande por perto e que acabe por matá-la inapelavelmente. A ideia de contratar segurança ainda a deixa mais ansiosa. Na sua opinião, que me vai revelando a conta-gotas e cheia de hesitações, como se eu próprio fosse já ou pudesse tornar-me inimigo dela de um momento para o outro, A. Carrancas está ligado ao mundo do crime, inclusive crimes de sangue. A polícia não lhe deu quaisquer instruções ou aconselhou medidas, nem se propôs protegê-la minimamente do perigo acrescido em que ficou após a tentativa frustrada da sua morte.
As pessoas que Teresa contacta para lhe prestarem assistência, mal se apercebem da sua situação, dão desculpas esfarrapadas para o não fazerem. Teresa tem a noção de que elas temem represálias.
Até o serralheiro, contactado para mudar as fechaduras das portas, primeiro disse que sim, mas depois comunicou que necessitava também da autorização de A. Carrancas e que não incorreria no risco de se haver com esse personagem, cuja fama de ser cruel e vingativo corre mundo.
Quanto à empregada doméstica, Teresa ainda não compreendeu por que é que a polícia não a interrogou e não a constituiu arguida nos autos. Em seu entender, a empregada doméstica, contratada por iniciativa de A. Carrancas, há muito tempo que tem sido instrumento dócil dele, ou de algo mais sofisticado. Inicialmente, Teresa não se preocupou porque não desconfiava. Mas, agora, quanto mais pensa no que aconteceu, mais tem razões para suspeitar do envolvimento dela e de que possa fazer parte de alguma associação criminosa de que A. Carrancas seja, provavelmente, o cabecilha ou um dos cabecilhas.
As suas dificuldades de locomoção motivaram que a audiência com o Procurador da República tivesse lugar no rés-do-chão do Tribunal. Mesmo assim, Teresa precisa de descansar de cinco em cinco metros. Ainda não se habituou às canadianas e é com esforço hercúleo que avança pé ante pé. A melhor forma que eu encontro de ajudá-la é respeitar o ritmo dela e mostrar compreensão. Na realidade, ao vê-la avançar, eu assisto a um espectáculo de heroísmo e não tenho dúvidas de que ela, daqui a quinze dias, já será capaz de subir as escadas até ao piso superior, apoiada apenas no
corrimão.
Tenho tido imensas dificuldades em ganhar a sua confiança. Ela parece transmitir-me a todo o momento o receio de que o assassino ande por perto e que acabe por matá-la inapelavelmente. A ideia de contratar segurança ainda a deixa mais ansiosa. Na sua opinião, que me vai revelando a conta-gotas e cheia de hesitações, como se eu próprio fosse já ou pudesse tornar-me inimigo dela de um momento para o outro, A. Carrancas está ligado ao mundo do crime, inclusive crimes de sangue. A polícia não lhe deu quaisquer instruções ou aconselhou medidas, nem se propôs protegê-la minimamente do perigo acrescido em que ficou após a tentativa frustrada da sua morte.
As pessoas que Teresa contacta para lhe prestarem assistência, mal se apercebem da sua situação, dão desculpas esfarrapadas para o não fazerem. Teresa tem a noção de que elas temem represálias.
Até o serralheiro, contactado para mudar as fechaduras das portas, primeiro disse que sim, mas depois comunicou que necessitava também da autorização de A. Carrancas e que não incorreria no risco de se haver com esse personagem, cuja fama de ser cruel e vingativo corre mundo.
Quanto à empregada doméstica, Teresa ainda não compreendeu por que é que a polícia não a interrogou e não a constituiu arguida nos autos. Em seu entender, a empregada doméstica, contratada por iniciativa de A. Carrancas, há muito tempo que tem sido instrumento dócil dele, ou de algo mais sofisticado. Inicialmente, Teresa não se preocupou porque não desconfiava. Mas, agora, quanto mais pensa no que aconteceu, mais tem razões para suspeitar do envolvimento dela e de que possa fazer parte de alguma associação criminosa de que A. Carrancas seja, provavelmente, o cabecilha ou um dos cabecilhas.
As suas dificuldades de locomoção motivaram que a audiência com o Procurador da República tivesse lugar no rés-do-chão do Tribunal. Mesmo assim, Teresa precisa de descansar de cinco em cinco metros. Ainda não se habituou às canadianas e é com esforço hercúleo que avança pé ante pé. A melhor forma que eu encontro de ajudá-la é respeitar o ritmo dela e mostrar compreensão. Na realidade, ao vê-la avançar, eu assisto a um espectáculo de heroísmo e não tenho dúvidas de que ela, daqui a quinze dias, já será capaz de subir as escadas até ao piso superior, apoiada apenas no
corrimão.
quarta-feira, 28 de outubro de 2009
O livro de todo o conhecimento (III)
Estava a disputar o último set quando vi entrar uma jovem numa cadeira de rodas empurrada por uma mulher bem vestida e calma, de farta cabeleira e uma touca branca. Enfermeira? -interroguei-me.
Parou de empurrar a cadeira e depois de trocarem algumas impressões entre elas, a mulher de touca branca rodou a cadeira de rodas para uma posição frontal relativamente à área do jogo. Agora já estava a reconhecer a mulher da touca branca. Era a mesma enfermeira, Cândida, que me tinha ajudado a recuperar de uma luxação gleno-umeral traumática.
Terminado o jogo, ao passar junto delas, apercebi-me que a enfermeira também me reconhecera:
-Bom dia! Como está?
-Tudo bem, obrigado!
Neste momento inclinei-me ligeiramente para a jovem na cadeira de rodas e cumprimentei-a. A enfermeira Cândida fez as apresentações da praxe «Dr. Veríssimo, ilustre advogado, eh,eh,eh!» «Drª Teresa, antropóloga, doutoranda».
Estendi a mão para dar um passou bem à Drª Teresa, mas ela nem se mexeu. Olhou-me com uns olhos brilhantes e afáveis.
-Não se preocupe, disse eu, eu compreendo, não tinha reparado.
-A Drª Teresa vai permitir que lhe fale neste assunto: está assim porque foi vítima de um crime grave.
-Como? –perguntei. A enfermeira Cândida olhou para obter aprovação da Drª Teresa para continuar.
- Quando ela estava a dormir, o marido atirou-a do terceiro andar para a rua.
Fiquei estarrecido. Olhei para Teresa, mas ela desviara o olhar para algum lugar estranho que a fez empalidecer e semicerrar os olhos de dor.
- Continua a praticar ténis? – prosseguiu a enfermeira, para desanuviar.
- Ah, sim! Agora menos. Só para manutenção.
Pousei a minha mão na de Teresa, que não esboçou nenhuma reacção.
- Tive muito gosto em conhecê-la. Lamento profundamente o sucedido. Gostava de ajudar, se puder!
- Depois entro em contacto com a enfermeira Cândida. Ainda tem o mesmo número?
- Sim, sim, é o mesmo. Tudo igual.
-Até logo.
-Até logo Dr., prazer em vê-lo.
-Obrigado, igualmente.
Parou de empurrar a cadeira e depois de trocarem algumas impressões entre elas, a mulher de touca branca rodou a cadeira de rodas para uma posição frontal relativamente à área do jogo. Agora já estava a reconhecer a mulher da touca branca. Era a mesma enfermeira, Cândida, que me tinha ajudado a recuperar de uma luxação gleno-umeral traumática.
Terminado o jogo, ao passar junto delas, apercebi-me que a enfermeira também me reconhecera:
-Bom dia! Como está?
-Tudo bem, obrigado!
Neste momento inclinei-me ligeiramente para a jovem na cadeira de rodas e cumprimentei-a. A enfermeira Cândida fez as apresentações da praxe «Dr. Veríssimo, ilustre advogado, eh,eh,eh!» «Drª Teresa, antropóloga, doutoranda».
Estendi a mão para dar um passou bem à Drª Teresa, mas ela nem se mexeu. Olhou-me com uns olhos brilhantes e afáveis.
-Não se preocupe, disse eu, eu compreendo, não tinha reparado.
-A Drª Teresa vai permitir que lhe fale neste assunto: está assim porque foi vítima de um crime grave.
-Como? –perguntei. A enfermeira Cândida olhou para obter aprovação da Drª Teresa para continuar.
- Quando ela estava a dormir, o marido atirou-a do terceiro andar para a rua.
Fiquei estarrecido. Olhei para Teresa, mas ela desviara o olhar para algum lugar estranho que a fez empalidecer e semicerrar os olhos de dor.
- Continua a praticar ténis? – prosseguiu a enfermeira, para desanuviar.
- Ah, sim! Agora menos. Só para manutenção.
Pousei a minha mão na de Teresa, que não esboçou nenhuma reacção.
- Tive muito gosto em conhecê-la. Lamento profundamente o sucedido. Gostava de ajudar, se puder!
- Depois entro em contacto com a enfermeira Cândida. Ainda tem o mesmo número?
- Sim, sim, é o mesmo. Tudo igual.
-Até logo.
-Até logo Dr., prazer em vê-lo.
-Obrigado, igualmente.
sábado, 24 de outubro de 2009
Sei
Sei o imenso sol laranja
Seio que roça a minha face
Aos poentes fatais
Me engano eu
Que nada mais
Me engana
O brilho dos teus olhos doces
O fogo entre nós
Funde-nos como se fosses
A boca da minha voz
Sei os
Teus seios
Na paisagem desfocada
Das respostas difíceis
Às interrogações da luz
Mas não sei o peso
Das palavras que digo
Depois de ser salvo
Por esse silêncio
Desconhecido.
Seio que roça a minha face
Aos poentes fatais
Me engano eu
Que nada mais
Me engana
O brilho dos teus olhos doces
O fogo entre nós
Funde-nos como se fosses
A boca da minha voz
Sei os
Teus seios
Na paisagem desfocada
Das respostas difíceis
Às interrogações da luz
Mas não sei o peso
Das palavras que digo
Depois de ser salvo
Por esse silêncio
Desconhecido.
terça-feira, 20 de outubro de 2009
O livro de todo o conhecimento (II)
Decidi estacionar o carro e seguir a pé. Num dia soalheiro e o palácio da justiça a cerca de quinhentos metros? Isso não era nada para um tipo como eu. Ou não tivesse jogado ténis até aos vinte e cinco anos e ganho alguns torneios. Ah!Ah!Ah! Aliás, foi no ténis que conheci a Teresa. De uma beleza espampanante e, ao mesmo tempo, de uma modéstia e de uma inteligência provavelmente inexcedíveis, segundo os meus padrões, claro. Assim a vi logo no primeiro contacto e essas impressões perduraram e foram sendo confirmadas e ultrapassadas posteriormente com o aprofundamento da nossa relação. Mesmo que tentasse, não seria capaz de disfarçar a admiração que senti por ela desde o princípio e que ela, a cada momento, mais me inspirava. E o fascínio? O respeito por uma mulher que eu, obviamente, idolatrava? Chamar cegueira a esta paixão pode ser um jogo de palavras mas não o julgo supérfluo.
Teresa estava avisada do meu atraso. Quando cheguei, ela esboçou um compreensivo sorriso e disse-me que a funcionária do tribunal já tinha chamado por nós, mas que lhe explicara a razão do atraso e que este seria breve. A funcionária aguardou que eu chegasse.
A nossa comparência no tribunal estava relacionada com um processo-crime em que Teresa era vítima de violência doméstica. E fico por aqui por causa do segredo de justiça.
Teresa estava avisada do meu atraso. Quando cheguei, ela esboçou um compreensivo sorriso e disse-me que a funcionária do tribunal já tinha chamado por nós, mas que lhe explicara a razão do atraso e que este seria breve. A funcionária aguardou que eu chegasse.
A nossa comparência no tribunal estava relacionada com um processo-crime em que Teresa era vítima de violência doméstica. E fico por aqui por causa do segredo de justiça.
quinta-feira, 15 de outubro de 2009
Orquídea
Será como tu quiseres
E quanto imaginares
E me atreveres
Com os teus olhares
No altar do teu colo
Adoro e genuflecto
Para consolo
Te beijo o aspecto
Deixa-te levar
Na toada suave
Deixa-te tocar
Antes que o sonho acabe
Deixa-me levar-te
Fonte brota quente
Deixa-me exilar-te
Orquídea fremente
Será como disseres
Será como calares
Aceito o que me deres
Te dou o que aceitares
Sobre os teus lumes
Perco-me a morder
Curvas de volumes
Gritos de prazer
Anseio que mo dês
Como imagino dares
Na seminudez
A que chegares
E te vieres
E mo tirares
Sem te perderes
Nem transviares
Dos limites da loucura
Aos limites do prazer
Sem limites da ternura
Quando em ti amanhecer.
E quanto imaginares
E me atreveres
Com os teus olhares
No altar do teu colo
Adoro e genuflecto
Para consolo
Te beijo o aspecto
Deixa-te levar
Na toada suave
Deixa-te tocar
Antes que o sonho acabe
Deixa-me levar-te
Fonte brota quente
Deixa-me exilar-te
Orquídea fremente
Será como disseres
Será como calares
Aceito o que me deres
Te dou o que aceitares
Sobre os teus lumes
Perco-me a morder
Curvas de volumes
Gritos de prazer
Anseio que mo dês
Como imagino dares
Na seminudez
A que chegares
E te vieres
E mo tirares
Sem te perderes
Nem transviares
Dos limites da loucura
Aos limites do prazer
Sem limites da ternura
Quando em ti amanhecer.
sábado, 10 de outubro de 2009
O LIVRO DE TODO O CONHECIMENTO (I)
O dia de hoje foi normal até há pouco, quando decidi sentar-me para escrever sobre o dia de hoje. Ainda sem saber porquê, comecei logo a ter a percepção de que o dia de hoje foi, afinal, um dia extraordinário. Levantei-me de madrugada com a história do livro de todo o conhecimento na cabeça mas só escrevi o título porque as ideias não desenvolviam. Voltei para a cama e não dormi a pensar que tinha de levantar-me antes das oito, para a abertura da bolsa. Às oito já estava em frente do computador, como venho fazendo há anos. Nesta altura, a história do livro de todo o conhecimento parecia-me ainda mais difícil de escrever, como se tivesse sido um sonho. Sabem como é difícil, para não dizer impossível, passar os sonhos para o papel?! Quanto à bolsa, mais um dia à espera da abertura de Wall Street! Adiante. Banho. Aula de Economia sobre sociedade de consumo, laxismo, hedonismo e os males que podem advir para o mundo. “Quando as batalhas terminam aparecem os valentes”…
Apetecia-me tanto comer tripas à moda do Porto regadas com uma garrafa de tinto de 37,5cl…
Mas estava à minha espera o rei, desculpem, não era o rei, era a princesa, bem, vocês não conhecem, linda de entontecer, envergando diáfanos atributos, que me concederia o privilégio de a fazer feliz entre o período do almoço e o do lanche.
Cheguei atrasado. Não previra que uma fila de carros embandeirados retardasse o trânsito com euforias altifalantes porque é tempo de campanha eleitoral e “Viva a República”.
Logo constatei que um indivíduo, vestido de branco, de pé, num estrado colocado na rotunda, de megafone numa mão e uma bandeira branca na outra, tinha feito parar duas caravanas de manifestantes, uma do PS, que seguia em direcção indefinida e, outra do PSD, que andava às voltas. O indivíduo do megafone e da bandeira branca clamava distintamente, ora para a caravana dos do PS ora para a caravana dos do PSD, num tom messiânico:
«Eu não podia sentir-me mais à margem deste espectáculo. Será por isso que o considero triste? Eu não faço parte desta sociedade? Não me identifico com ela? Não me comprometo com ela? Não gosto dela? Se pudesse estava noutro sítio, com outras pessoas? Por favor, responda quem souber. Não pensem que não sou político dos sete costados ou que não tenho partido. O meu partido é não ter nenhum dos partidos existentes. Passividade não é comigo. E, quanto a ir votar, preciso de mais alternativas para me sentir livre. Ouviram? Livre. De Liberdade. O voto em branco é pouco. A abstenção, os mentores do sistema político converteram-na em nada, assim como os votos nulos.
Sou político, tenho política e a minha política é esta: deixem de manipular as pessoas pelos medos, tentem manipulá-las pelas genuínas alegrias e direitos. Não lhes acenem com direitos com o objectivo, dissimulado, de lhes cobrar obrigações e deveres. A democracia só não perdeu completamente o significado de poder exercido pelo povo, não porque os políticos, a classe política, o represente legitimamente, mas porque, apesar desta incongruência grave, o povo vai exercendo o seu poder por outras formas, pagando os custos elevados de todas, porque, na realidade o dito povo paga aos políticos para exercer o poder que não exerce e paga o contra poder para fazer face aos mesmos políticos que contra si o exercem.»
Julgo ter percebido bem estas últimas palavras, mas não garanto, porque as caravanas dos manifestantes faziam cada vez mais barulho, com claxons, apitos e altifalantes, com o objectivo aparente de abafarem o som do megafone.
Apetecia-me tanto comer tripas à moda do Porto regadas com uma garrafa de tinto de 37,5cl…
Mas estava à minha espera o rei, desculpem, não era o rei, era a princesa, bem, vocês não conhecem, linda de entontecer, envergando diáfanos atributos, que me concederia o privilégio de a fazer feliz entre o período do almoço e o do lanche.
Cheguei atrasado. Não previra que uma fila de carros embandeirados retardasse o trânsito com euforias altifalantes porque é tempo de campanha eleitoral e “Viva a República”.
Logo constatei que um indivíduo, vestido de branco, de pé, num estrado colocado na rotunda, de megafone numa mão e uma bandeira branca na outra, tinha feito parar duas caravanas de manifestantes, uma do PS, que seguia em direcção indefinida e, outra do PSD, que andava às voltas. O indivíduo do megafone e da bandeira branca clamava distintamente, ora para a caravana dos do PS ora para a caravana dos do PSD, num tom messiânico:
«Eu não podia sentir-me mais à margem deste espectáculo. Será por isso que o considero triste? Eu não faço parte desta sociedade? Não me identifico com ela? Não me comprometo com ela? Não gosto dela? Se pudesse estava noutro sítio, com outras pessoas? Por favor, responda quem souber. Não pensem que não sou político dos sete costados ou que não tenho partido. O meu partido é não ter nenhum dos partidos existentes. Passividade não é comigo. E, quanto a ir votar, preciso de mais alternativas para me sentir livre. Ouviram? Livre. De Liberdade. O voto em branco é pouco. A abstenção, os mentores do sistema político converteram-na em nada, assim como os votos nulos.
Sou político, tenho política e a minha política é esta: deixem de manipular as pessoas pelos medos, tentem manipulá-las pelas genuínas alegrias e direitos. Não lhes acenem com direitos com o objectivo, dissimulado, de lhes cobrar obrigações e deveres. A democracia só não perdeu completamente o significado de poder exercido pelo povo, não porque os políticos, a classe política, o represente legitimamente, mas porque, apesar desta incongruência grave, o povo vai exercendo o seu poder por outras formas, pagando os custos elevados de todas, porque, na realidade o dito povo paga aos políticos para exercer o poder que não exerce e paga o contra poder para fazer face aos mesmos políticos que contra si o exercem.»
Julgo ter percebido bem estas últimas palavras, mas não garanto, porque as caravanas dos manifestantes faziam cada vez mais barulho, com claxons, apitos e altifalantes, com o objectivo aparente de abafarem o som do megafone.
segunda-feira, 5 de outubro de 2009
Só tu és bela
Eu nunca fui senhor de nada
Olhei sempre as coisas
Como a alegria ou a tristeza
Dobra a alma de um escravo
Às vezes andei por onde gostaria
E aprendi que há quem aprenda a gostar
Eu não
Não saberia falar de coisa nenhuma
Porque o canto das aves
É a minha obsessão pelas virtudes
Saber que não morrerei delas
Mas da arte
Que falta sempre na vida
Como nas obras
-----------------
De arte
Só tu és bela para sempre
Despindo-te da vaidade
Aos abismos do meu desejo
Como um espelho irresistível
Te rouba o corpo.
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