Blogs Portugal

quarta-feira, 19 de maio de 2021

Cultura do amesquinhamento alheio

A minha percepção de português, nado e criado, e educado em Portugal, e exercendo nos tribunais e nas melhores escolas do país, é que a cultura portuguesa, seja o lado ou a perspectiva pela qual queiramos vê-la, é a cultura do amesquinhamento alheio. E quando assume tons de compadecimento e de solidariedade é porque já se foi vítima e se percebe o problema. 

Mas tem sido prática assumida e aceite, desde que me lembro (hoje está muito melhor), e até valorizada, a cultura de chacota e atrofiamento, sempre para penalizar e desvalorizar, até nas agressões escolares institucionalizadas como castigos pelos erros, bem patente na literatura portuguesa, no linguajar português, nos apelidos e alcunhas dos portugueses, etc.. E, se formos aos conselhos de turma, embora nas actas se evite quase sempre cair nesse erro, a adjectivação usada para qualificar e classificar alunos não está isenta de críticas, para ser brando. 

Um adjectivo, em determinados contextos, pode deixar de ser neutro e até passar a ser um problema de ética, quando não jurídico. Sinceramente, penso que só há um caminho a seguir para se sair desta choldraboldra: legislação e práticas educativas que eduquem para a não resignação a uma realidade "violenta" cujas raízes não é difícil de localizar na história. 

Ainda há quem acredite e agite a bandeira da meritocracia, ou seja, da aristocracia. 

Temos de ter em mente o iluminismo e o marxismo para percebermos quanto ainda precisamos de reconhecer face humana e direitos do homem num mundo que faz tudo, desde sempre, exceptuando os que têm lutado contra isso, para triturar o homem, e desvalorizá-lo, para o mercadejar ao melhor preço.

quinta-feira, 13 de maio de 2021

Língua prodigiosa

De vez em quando, e ultimamente cada vez mais, entre afazeres e actividades, dou comigo a tomar sentido, pela primeira vez, em que a minha língua me fala mais a mim, desde criança, do que eu a ela, e só muito tarde comecei a reparar quão carregada de cultura, de significados e de sentidos, a minha fala e escrita e leitura andavam e como me sabe bem dizê-lo agora.
Passei a perceber que a língua, só por si, nos dá a filosofia e a ciência, até das perguntas e das respostas nunca antes feitas. 

Comecei a ver, numa acepção muito especial de sentir, que, além dos sentidos do sistema sensorial, visão, audição, sensações corporais, paladar, olfacto, temos outros sentidos mais internos, que trabalham no silêncio e no escuro, com que sentimos dores, alegrias, entusiasmos e tristezas, paixão, saudade, amor e ódio, etc., e passamos a vida a dar sentido, aos sentimentos, ao que sentimos e ao que pensamos, porque pensamos o que sentimos, mas também sentimos, muitas vezes o que pensamos.
E quando me ponho a pensar e a falar das minhas descobertas, e sentir em todos os sentidos é uma delas, é com a sensação, senão com a certeza, de que quando se fala ou escreve sobre algo, já estava tudo na língua.


quarta-feira, 12 de maio de 2021

Aproximações à verdade

Hilário: talvez não haja muitas coisas que eu e tu não compreendamos

Amiga: se for assim, poucas coisas haverá que não tenham explicação

Hilário: tudo tem uma razão de ser

Amiga: ou melhor, para tudo temos uma razão de ser

Hilário: excepto o que falta explicar

Amiga: os crimes, as guerras, o holocausto, os deuses, as religiões, a corrupção, as desigualdades…

Hilário: têm uma explicação, são racionais

Amiga: os actos humanos são racionais

Hilário: o amor, a teoria da relatividade, a música, a alegria, a crítica da razão…

Amiga: racional é tudo o que os humanos fazem voluntariamente

Hilário: o nosso problema é que muito do que fazem é inaceitável e incorrecto

Amiga: concordo, olhando para a história e para o que acontece à nossa volta.

segunda-feira, 10 de maio de 2021

De desilusão em desilusão

Hilário: sinto-me desiludido

Amiga: dizes isso como se tivesses ganho o euromilhões

Hilário: de cada vez que me desiludo, sinto alegria

Amiga: de cada vez que me desiludo, sinto que fui burra e fico triste

Hilário: quando descobres que estavas errada só tens motivos para ficar contente

Amiga: deve ser por isso que estás sempre feliz

Hilário: e achas que estou errado?

Amiga: para te sentires feliz é porque descobriste que andavas iludido

Hilário: e já não ando?

Amiga: quando descobrires que a ilusão é como o trabalho, que não acaba, ainda vais ficar mais desiludido e mais contente

Hilário: o meu objectivo é viver de desilusão em desilusão, até alcançar a verdade

Amiga: mas acreditas que conseguirás atingir a desilusão total?

Hilário: aí sim, terei alcançado a verdade

Amiga: queres maior ilusão do que essa? Gostas mesmo de viver iludido

sábado, 1 de maio de 2021

Liberdade

Gosto de pensar que a liberdade não é constituída por átomos, que não a encontro em lado nenhum, não posso recolhê-la como uma lágrima num tubo de ensaio, nem olhá-la de lado nenhum, mas que é de tal modo uma realidade da experiência, que não se faz a frio, nem ao lume, ou uma experiência da realidade, que não precisa de demonstração e que não pode ser refutada por nenhuma experiência.

A felicidade, a ciência, a filosofia, a verdade, a saudade e a alegria da dança e da música também não são constituídas por átomos, são da experiência e não carecem de experimentação para serem provadas. No entanto, e embora tenham no big-bang a sua origem, como os átomos e as estrelas, e talvez por não as encontrarmos no espaço e no tempo, é mais difícil defini-las do que falar delas.

Gosto de pensar que a minha natureza é ser livre, mas como dizer natureza se a liberdade não se encontra no espaço, nem no tempo?

Ser livre é a minha natureza, o resto são obstáculos, constrangimentos e limitações. Ser livre coloca-me em guerra com tudo o que é obstáculo e constrangimento e limitação, exógenos e endógenos.

O controlo, que não é apenas social, porque o cérebro é uma máquina com um prodigioso sistema de controlo natural, que não está sob o controlo do seu proprietário, mitiga o que seria uma guerra, em guerra fria.

Então, ser livre é essa condição subjectiva de poder aproveitar as condições objectivas para viver, não apenas de acordo com os instintos, mas de acordo com a vontade.

Claro que a condição subjectiva do meu gato que entra e sai de casa pela gateira e que trepa à árvore alta a grande velocidade é bem diferente da minha. Como são bem diferentes das minhas as condições, subjectivas e objectivas, do candidato a rei de Portugal, ou do Bill Gates. Para já não falar nos toxicodependentes que travam uma luta interna muito feroz entre duas forças ou duas vontades em que normalmente vence a que, paradoxalmente, não é um acto de liberdade.

Por outro lado, que liberdade é a de alguém poder escrever tudo o que lhe aprouver no seu caderno secreto, mas não o poder escrever ou dizer publicamente, ainda que o faça em voz alta para as paredes do seu quarto, desde que ninguém mais ouça? 

De resto, é fundamental que a liberdade do indivíduo seja tutelada pelos meios institucionais de poder, uma vez que é imperioso, do ponto de vista da razão e da justiça, que ela seja garantida. Quer como um direito de exercício, quer como um direito de gozo. Caso contrário, como tem acontecido ao longo da história, em que a liberdade era poder de facto, mas não reconhecido e tutelado como direito, é grande o risco de a “guerra fria” se transformar em guerra.

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Conhecer a história para julgar

Parece-me que há duas questões a considerar: a história, do ponto de vista científico do historiador, e a história enquanto objecto de julgamento, por ser acção humana e toda a acção humana ser susceptível de submissão a algum tipo de julgamento.

Quanto à averiguação e determinação dos factos, esta não deve, de modo algum, ser contaminada por preconceitos, prejuízos ou subjectivismos, valorativos ou outros, porque isso poria em causa a credibilidade e a validade dos mesmos, pelo menos nos aspectos em que os factos tivessem carácter mais descritivo ou narrativo.

Quanto a julgar a história, talvez mais importante do que conhecer a história seja conhecer a história para podermos julgar a história e encontrar responsáveis, os culpados e os bons, credores do nosso respeito e apreço.

Mas o julgamento da história não pode deixar de ser feito, quer à luz dos valores e demais circunstâncias do tempo em que ocorreram os factos, quer à luz dos valores actuais.

Não se trata de ignorar ou de apagar a história, bem pelo contrário, é necessário conhecê-la para podermos julgá-la.

E, para podermos julgá-la, é necessário adoptar critérios e aplicá-los. Não serve um qualquer julgamento. Só é admissível um julgamento justo. Que possa contribuir para a visão verdadeira, como a única que nos poderá ajudar a evitar e impedir más escolhas.

terça-feira, 20 de abril de 2021

Cultura/dever-ser/sabedoria

As preocupações e as inquietações da nossa cultura, como processos humanos que, paradoxalmente, tendem a tornar-nos tanto piores, quanto mais deliberadamente procuram tornar-nos melhores, ou, pelo menos, num certo sentido de melhor, também são cultura.

A cultura, na minha perspectiva, é de matriz normativa. Embora a normatividade ética, moral, religiosa, jurídica, estética, do conhecimento, da política, etc., seja fundamentalmente o mesmo fenómeno de dever-ser, não deixam de ter expressões, conteúdos, objectivos e sanções diferenciados. Importa salientar que, se assim for, é uma realidade, como foi realidade toda a sucessão de guerras e de monstruosidades perpetradas pelos "melhores" que a cultura produziu.

A cultura continuará a fazer aquilo que sabemos e queremos, a todo o custo, fazer, ou, por outra, o homem continuará a fazer o jogo que é suposto dever saber jogar.

As vozes que se levantaram ao longo da história contra a cultura dos guerreiros, de violência e de dominação, de subjugação e de superação dos adversários e dos inimigos, além dos padecimentos, do choro e lamentos, dessa inenarrável e insuportável realidade, pouco puderam mudar. Até o cristianismo, que ensaiou inverter o conceito de homem melhor, acabou por se revelar o maior promotor daquilo que criticava e censurava. Mas os outros, os que fizeram tudo o que estava ao seu alcance para realizar e personificar os valores da civilização, que enfrentaram e anularam o poder dos inimigos, mais não fizeram do que reforçar e promover as razões da cultura de guerra. De tal modo que as sociedades, ainda hoje, são guerreiras e implacáveis para com os fracos, os inúteis, os fardos, os deficientes, os inábeis, os ignorantes, os inaptos para o combate.  Quando descansam, curam as feridas, reorganizam as forças e os recursos, fomentam as suas economias e divertem as populações, não se distraem nenhum momento da principal razão de tudo isso: recuperar a força, o poder militar. Tudo está preordenado e instrumentalizado para esse grande fim, a que chamam Paz.

E não é apenas porque se sentem ameaçadas no quadro do jogo político e militar. Se não for para se defenderem de um ataque, é para impedirem que desrespeitem as regras do jogo, chamemos-lhes assim. E se desrespeitam as regras do jogo, há que obrigar a repor a situação e a respeitar. E se as regras do jogo permitem certos avanços para uns, também permitem para os outros, mas isto não é aceite pelos poderosos. Aliás, só há liberdade para os que podem.

Esta é a cultura dos melhores, dos heroísmos, dos invencíveis, dos laureados, dos troféus, dos pódiuns, e dos que clamam por vingança, que nem fingem acreditar na justiça.

E os melhores são aqueles que superam e vencem os desafios de salvaguarda dos valores em que acreditam. São os que ganham os jogos e os campeonatos, em todos os campos ou, pelo menos, mais do que os outros.

Os melhores no sentido de terem mais bondade, de se tornarem mais solidários, pacíficos, tolerantes, empáticos, dotados de compaixão, de paciência, de generosidade, companheirismo e de amor pelos outros, não deixam de ser, como os outros, expressão e fruto da cultura, mas não há competição nestes domínios.

É lancinante pensar que o dever-ser que a cultura é, seja expressão de sabedoria. Principalmente, quando são os melhores, sempre em nome do que “escolhem”, ou “elegem” como melhor, a perpetrar o pior.

domingo, 11 de abril de 2021

Arbitragens e batota

A cultura partidária, clubística, religiosa, comercial, mercantil, não escapam de uma determinante, que a todos entristece, ou exalta de euforia, consoante as coisas sejam desfavoráveis ou favoráveis.

Essa determinante, que em minha opinião, só por si, já justificaria que não há justiça privada (justiça privada é um contrassenso), é a mesma que faz que alguém acredite que o seu Deus é mais forte que o dos outros, que justo é o que lhe é favorável (o que for desfavorável é sempre injusto), que nenhum partido esteja na política para promover as melhores escolhas e soluções, em geral e abstracto, mas para impor as suas escolhas e soluções como sendo as melhores, do mesmo modo que jogar é para ganhar.

E, quando se trata de inimigos, já nem é um jogo, mas uma guerra. Os inimigos nunca têm razão. Esta mentalidade arcaica, no fundo, embora saiba que a batota não faz parte do jogo e não a aceite, também está construída sobre a constatação, ou a convicção, da sua inevitabilidade.

Por mais que a odiemos e haja a preocupação educacional de a mascarar com a eloquência de grandes e belos princípios e leis e símbolos e hinos, templos e basílicas.

Nascemos e crescemos a ser educados nas virtudes como se elas fossem universais, mas cedo aprendemos que o egoísmo e a disputa pelos interesses é que são a regra, são promovidos como ideologia estrutural, e até como um valor.

Assim, todos os árbitros são maus quando arbitram contra nós. Mas isso também é o que faz deles bons para os outros, quando beneficiam da arbitragem.