segunda-feira, 17 de novembro de 2025
Ao serviço da Humanidade
domingo, 2 de novembro de 2025
Literacia financeira nas escolas: educação ou condicionamento?
A literacia financeira é algo que, em teoria, nunca é de mais, como qualquer literacia. Não é por aí que os zelosos promotores desta campanha deixam de ter razão. Mas é por isso mesmo que a nossa desconfiança deve ser total, quer quanto às intenções, quer quanto ao discurso, quer quanto aos meios. A primeira posição de princípio, ou cautela, relativamente a quem nos quer ajudar, entenda-se oferecer vantagens, é procurar saber que interesse têm nisso.
Quanto maior for o interesse de quem nos quer oferecer vantagens maior deve ser o nosso cuidado. A razão é simples, mas, na prática, toda a nossa educação e toda a nossa linguagem é um processo de sedução, de persuasão, de coação, de intercâmbio, de partilha, de interação, em que nada é neutro, em que o interesse está sempre presente e pode ser provocado. Não é apenas nos negócios formais e sinalagmáticos que esse comércio se exerce. Não é apenas nas promessas e nos acenos, ilusórios ou não, que o marketing, essa ciência poderosa, faz o seu caminho.
Pudéssemos nós usar o marketing em nossa defesa como ele é usado para nos atacar. Este é o cerne da questão. O marketing não é uma tentativa de educar e de ensinar seja o que for. É uma prestidigitação que visa fundamentalmente condicionar comportamentos. E isto não é inócuo. Ninguém se daria ao trabalho e à despesa de nos condicionar porque sim. As “literacias para”, todas elas, têm em comum um programa de motivações e de objetivos explícitos e expressos que se respaldam nas razões gerais e incontestáveis que referi acima.
Mas as motivações e objetivos implícitos de um programa, seja de educação, de ensino, ou de marketing, também pelo que já referi, devem ser colocadas como alvo de análise de primeira linha. O que é expresso, ou explícito, até com exuberância, deve servir-nos como sinal de alerta para o que está a ser ocultado. No fundo, o mecanismo de venda e de persuasão é tão natural e tão familiar, que não conseguimos descortinar facilmente razões para não ser assim, até porque nos fazem sentir como beneficiários, reis e senhores da nossa escolha.
Por outro lado, ainda nos podem acusar, se necessário for, de que fomos vítimas da nossa estupidez, ignorância, ganância, ou mesmo astúcia, quando não reserva mental. No fim de contas, não estamos livres do mecanismo de responsabilização injusta, onde o cidadão é culpado por não ter resistido àquilo que foi desenhado para o seduzir.
terça-feira, 28 de outubro de 2025
Uma ilusão produzida pela falta de qualquer coisa
A constatação, ou a descoberta de que, ao verbalizar os pensamentos, as ideias, as representações, fosse de que modo fosse, descrevendo, argumentando, imaginando, meditando, analisando, não estava apenas a organizar e a ordenar as coisas segundo uma ordem preexistente que eu desconhecia e que supunha ser função da escrita encontrar, surgiu muito tarde. Essa descoberta revelou duas curiosidades: o processo de conhecimento é condicionado por prejuízos de que podemos não estar conscientes e, mesmo assim, não ser afetado nos seus resultados.
Talvez não haja uma forma simples de dizer “tenho a noção daquilo que te estou a dizer, mas não sei o que estás a ouvir”, ou “sei o que estou a escrever, mas não sei o que estás a ler”.
A partir de certa altura, comecei a perceber que a linguagem, sobretudo a poesia e a ficção, tinha um poder de enfeitiçar que deslocava o interesse da linguagem como instrumento de descoberta de uma ordem preexistente e de uma inteligibilidade intrínseca, ou seja, a linguagem como estrutura depositária da verdade a descobrir, para o interesse da linguagem como forma de inventar representações e de dizer, não o que eu, de algum modo, queria dizer, mas aquilo que a linguagem podia dizer. Era a estranha sensação de estar a ser conduzido, estar a ser levado, em vez de conduzir, de submeter as palavras.
A diferença entre instrumentalizar as palavras e ser instrumentalizado por elas, não é fácil de discernir, mas sente-se, sobretudo quando elas deixam de ser nossas aliadas e se tornam nossas inimigas.
E pareceu-me irrecusável e indiscutível que nenhuma obra literária, por mais excitação e emoções que me trouxesse, merecia que lhe sacrificasse a minha saúde e a minha vida. Algo estava errado na poesia se ela era a promessa de algo que acabava por ser a sua negação e o seu contrário.
Então disse à poesia e à linguagem em geral “não te vou dar o que requeres e me exiges, tu é que vais ter de me dar o que quero de ti”.
E foi assim e tem sido assim que me recusei a ser um catavento à espera de ser soprado por uma ilusão maior do que a ilusão da realidade.
domingo, 19 de outubro de 2025
O viés de confirmação - A crítica começa onde a linguagem vacila
O viés de confirmação é um dos mecanismos cognitivos mais estudados na psicologia e nas ciências sociais. Eis alguns pontos que merecem destaque:
1- O cérebro como mestre da economia cognitiva. A ideia de que o cérebro “engana” pode ser provocadora, mas é metaforicamente eficaz. O cérebro privilegia atalhos mentais (heurísticas) para lidar com a sobrecarga de estímulos e decisões. O viés de confirmação é um desses atalhos, ele reduz o esforço cognitivo ao evitar o confronto com informações dissonantes.
2 - Como o viés opera? Procuramos, interpretamos e lembramos informações que confirmam nossas crenças prévias, ignorando ou desvalorizando as que as contradizem. Isso afeta desde preferências de consumo até convicções políticas, religiosas ou morais.
3 - Amplificação pelas redes sociais. Os algoritmos reforçam esse viés ao personalizar conteúdos com base em interações anteriores, criando bolhas epistémicas. Essas bolhas podem gerar polarização, dificultar o diálogo e cristalizar identidades em torno de certezas não examinadas.
4- O valor da dúvida. Mas há antídotos: consciência crítica, exposição deliberada à diferença, e o exercício da pergunta “E se eu estiver errado?”. É um gesto filosófico, ético e democrático que abre espaço para o pensamento dialógico, para o reconhecimento da alteridade e para a revisão de pressupostos.
A escuta ativa e o questionamento são formas de liberdade.
Assim sendo, quanto mais estivermos confirmados naquilo que pensamos, e isso é particularmente verdadeiro para o mundo académico e religioso e político-partidário, mais improvável é que exerçamos a consciência crítica. Esta inferência é sólida e profundamente inquietante.
Quanto mais investidos emocional, identitariamente ou institucionalmente, numa crença ou sistema de pensamento, mais difícil se torna questioná-lo de forma crítica. Isso não significa que seja impossível, mas que há forças cognitivas, sociais e afetivas que resistem à dúvida.
Por que é que a confirmação dificulta a crítica?
1 - Identidade e pertença. Em contextos académicos, religiosos ou político-partidários, as crenças não são apenas ideias, são marcadores de identidade. Questioná-las pode parecer uma ameaça ao sentimento de pertença ou à coerência pessoal.
2 - Capital simbólico. Professores, líderes religiosos ou políticos acumulam prestígio com base em certas convicções. Mudar de posição pode parecer perda de autoridade ou traição ao grupo.
3 - Ambientes de reforço. Instituições tendem a recompensar a conformidade e punir a dissidência, mesmo que subtilmente, através de exclusão, desvalorização ou silêncio.
O paradoxo da crítica institucional:
4 - O mundo académico, por exemplo, valoriza a crítica, mas muitas vezes reproduz dogmas teóricos ou modas intelectuais que se tornam intocáveis.
5 - O religioso, que deveria cultivar o mistério e a abertura ao transcendente, pode cristalizar-se em doutrinas que confundem fé com certeza.
6 - O político, que deveria ser espaço de negociação e pluralismo, frequentemente polariza posições e transforma adversários em inimigos.
Como cultivar consciência crítica mesmo dentro de sistemas fechados?
Praticar o deslocamento. Ler autores fora do próprio campo, ouvir vozes marginais, experimentar o desconforto da alteridade. Dramatizar o pensamento. Encenar o conflito entre vozes, deixar que o texto se torne palco de negociação ética. Interrogar a linguagem. Toda a certeza se expressa por palavras e toda a palavra carrega ambiguidade.
A crítica começa onde a linguagem vacila.
terça-feira, 14 de outubro de 2025
Aproximações à verdade XLVIII
Amiga: se fores a minha sombra, então és feito da mesma luz que me revela.
Hilário: ou talvez da escuridão que me protege do excesso de claridade.
Amiga: há sombras que abraçam melhor do que braços.
Hilário: e há silêncios que dizem mais do que todas as palavras que ousámos não dizer.
Amiga: este lugar parece suspenso entre o que fomos e o que ainda não sabemos ser.
Hilário: como se o tempo aqui não passasse, mas nos atravessasse.
Amiga: e se a águia ou o grifo nos observava, reconhecesse em nós o seu impulso de voo?
Hilário: ou a mesma hesitação antes de abrir as asas?
Amiga: a rocha pontiaguda continua a apontar para o infinito que, agora, parece menos distante.
Hilário: talvez porque o infinito não seja longe, mas dentro.
Amiga: e se for dentro, então já lá estamos, ou, pelo menos, já o tocámos.
Hilário: e talvez seja por isso que o moinho escuta. Porque há histórias que só se contam quando o vento para.
Amiga: e há encontros que só acontecem quando deixamos de procurar, como este, como nós, sem o sentido dos passos que ainda não demos.
Hilário: mas há encontros que não interessam. Que não nos encontrem antes de estarmos prontos.
Amiga: que não sejamos encontrados por aquilo de que somos fugitivos.
Hilário: fugitivos, mas que deixamos rastos.
Amiga: e há rastos que são convites, não despedidas.
Hilário: como este lugar, que parece ter estado tanto tempo à nossa espera.
Amiga: ou talvez tenha sido desenhado, concebido, por nós, sem o sabermos.
Hilário: a águia, ou o grifo, talvez tenha pousado aqui por isso.
Amiga: porque há sítios que só existem quando alguém os deseja e os contempla.
Hilário: e há contemplações que criam mundos.
Amiga: como este. Como nós.
Hilário: como se ganhássemos a forma do que criámos.
Carlos Ricardo Soaressexta-feira, 10 de outubro de 2025
Aproximações à verdade XLVII
Hilário: as águias e os grifos habitam os lugares mais altos.
Amiga: como nós, agora, aqui, a invadir o espaço deles.
Hilário: é isso, a águia estava ali pousada para tentar proteger, talvez o ninho.
Amiga: águia ou grifo, não sabemos, mas pousam sempre onde podem ter a melhor perspectiva
Hilário: grande ideia a tua, agora que já se foi para outro lugar, vamos lá ver se descobrimos a razão pela qual pousou ali, naquele ponto.
Amiga: afinal ainda temos mundo para explorar.
Hilário: guiados pelas águias.
Amiga: ou grifos, não sabemos.
Hilário: o céu está tingido de cinza e cobre. O moinho permanece imóvel, como se escutasse o que dizemos.
Amiga: à medida que avançamos em direção ao sítio do grifo, ou da águia, o moinho vai ficando mais ao fundo, envolto em sombra.
Hilário: esta luz suave, quase crepuscular, parece emanar dos teus olhos.
Amiga: eu digo que emana das tuas palavras.
Hilário: não temes ser dissolvida no eco do que pensas?
Amiga: chegamos ao sítio em que avistamos o grifo, ou a águia, pousado a observar-nos. Reparei nesta rocha pontiaguda que aponta para o infinito.
Hilário: daqui podemos ver um pouco daquilo que essa ave enigmática via.
Amiga: os nossos olhos têm um alcance muito mais reduzido e, quanto à mente dessa ave, espero que nos seja favorável dando pistas como a que nos trouxe a este ponto.
Hilário: aqui o tempo chama de volta ao que nunca deixou de ser.
Amiga: a minha avó apontava para o topo das montanhas e dizia que quem chegasse ali não poderia regressar.
Hilário: onde estavas quando a tua avó disse isso?
Amiga: estava com ela, a tentar chegar aqui, ao topo das montanhas.
Hilário: não há começo sem perda, nem fim sem memória. Agora estamos aqui, onde ela almejou chegar, mesmo sem saber o que isto seria.
Amiga: aqui a memória e a liberdade não servem para nada e nisso a minha avó estava certa. Ninguém pensa em liberdade numa ilha em que não há mais ninguém.
Hilário: gosto muito de ti, mas não é para abusares. Aqui, ninguém está sozinho. Ou por acaso serei eu a tua sombra?
domingo, 5 de outubro de 2025
Aproximações à verdade XLVI
Hilário: se o moinho falasse, o que nos diria?!
Amiga: assim o soubéssemos interpretar, porque ele é um documento que fala à maneira dos documentos.
Hilário: ele parece dizer que viemos depois, com passos alheios, e que, sem pedir licença, nos sentamos onde o silêncio de outros repousava.
Amiga: talvez depois de terem rido alto ou chorado em segredo, talvez antes de perderem a memória.
Hilário: se houvesse um rascunho da história deste moinho que alguém tivesse encontrado...
Amiga: mesmo escrito por mãos que nunca souberam escrever, quem sabe?!
Hilário: ou rasgado por mãos que nunca souberam ler, quem sabe?!
Amiga: seríamos sempre confundidos com os que passaram por aqui sem entenderem o que é este lugar.
Hilário: a fragilidade está em quem pensa, em quem sente, em quem hesita. O mundo exige pressa e firmeza, depressa e bem, enquanto tu, querida amiga, tentas caminhar com cuidado, não com receio de tropeçar, mas como quem pisa em folhas secas sem querer fazer barulho.
Amiga: sinto que os pensamentos, neste lugar, pesam mais do que os passos, como se estivessem a ser disputados por forças contrárias umas às outras, e cada palavra tivesse de ser arrancada de memórias que são de outras pessoas.
Hilário: talvez aquela águia, ou será um grifo?, esteja a observar-nos e a ler o nosso pensamento através do nosso embaraço.
Amiga: não sei se sou eu que toco de mais nas coisas, ou se são as coisas que tocam de mais em mim.
Hilário: a mim dói-me não tocar em nada.
Amiga: agora não consigo tirar os olhos daquela águia, ou grifo, que não tira os olhos de nós.
Hilário: talvez nos esteja a ver de outro mundo, ou seja um sinal de que atingimos o limite, a fronteira que separa a vida da morte.
Amiga: como se houvesse fronteira entre o que é e o que já não pode ser.
Hilário: como se este lugar fosse a margem, a última, de algo que não veremos.
Amiga: não sei. Sinto que o tempo aqui parece ter parado para nos deixar pensar.
Hilário: ou para nos deixar partir.
Amiga: mas partir para onde?
Hilário: talvez não seja partir. Talvez seja só deixar de procurar. Ou deixar de fugir.
Amiga: então esse grifo, ou águia, veio dizer que já não precisamos de andar?
Hilário: ou que já não podemos. Que o caminho acabou e o que resta é o silêncio. E que o silêncio, amiga… também é uma forma de estar vivo.
Amiga: ou uma forma de estar quase. Quase…Talvez seja isso que somos: quase a partir, quase a ficar, quase a entender.
quinta-feira, 2 de outubro de 2025
Aproximações à verdade XLV
Amiga: neste lugar, Hilário…Começo a sentir uma estranheza que nunca tinha experimentado. Não sei o que faço aqui. E não quero partir. Não sei se há algum lugar para onde quisesse ir.
Hilário: mas tu sempre foste a que queria ir. Mesmo sem saber para onde.
Amiga: pois. Mas agora…É como se o mundo passado tivesse deixado de me chamar. E este lugar, tão fora de tudo…Parece dizer que não há urgência em continuar a procurar.
Hilário: talvez isso seja o que nos acontece quando paramos. Não é que o mundo desapareça, o barulho dele é que deixa de nos empurrar.
Amiga: mas não saber o que faço aqui…É como estar num palco sem papel para representar. Sem fala. Perante uma plateia cujos lugares vão sendo ocupados por fantasmas.
Hilário: e se for isso mesmo o que nos resta? Estar. Sem papel, sem roteiro, sem pressa. Só estar.
Amiga: mas não é pouco? Talvez os fantasmas desta imensa plateia que avistamos não estejam aqui para nos verem a atuar, mas para ouvirem as histórias do moinho.
Hilário: é pouco para quem quer ser personagem. Mas é muito para quem aceita ser pessoa.
Amiga: talvez os fantasmas desta imensa plateia não estejam aqui porque nos veem, mas porque ouvem.
Hilário: o moinho é só o lugar onde deixámos de fingir que sabíamos o que é liberdade.
Amiga: e talvez seja o primeiro lugar onde isso não nos cobra nada.
sexta-feira, 26 de setembro de 2025
Aproximações à verdade XLIV
Amiga: e todas estas escarpas a separar-nos do lado de lá, que não vemos, nem sabemos o que é, Hilário…é como se, pela primeira vez, estivesse a olhar para dentro de mim. Sabes o que nos está a acontecer? Estamos perdidos. Ainda não tinha pensado nisso.
Hilário: perdidos? Como quem não sabe voltar? Ou como quem nunca soube para onde ia?
Amiga: como quem andou tanto que esqueceu o porquê. Como quem parou num lugar e só depois percebeu que o destino, afinal, era um desvio para um beco sem saída.
Hilário: talvez este seja o lugar onde os perdidos se encontram. Não para se acharem…
Mas para se reconhecerem.
Amiga: não me atormentes ainda mais. Tudo o que vemos é demasiado poderoso e esmagador. O nosso corpo, para suportar a visão deste lugar, precisava de ter a alma que foi perdendo até chegar aqui. Eu não queria estar perdida. Queria estar a caminho de alguma coisa. Mesmo que fosse só uma fantasia no horizonte.
Hilário: e não terá sido isso que nos trouxe até aqui? A fantasia de que estávamos no bom caminho, mesmo sem sabermos qual?
Amiga: mas agora não há caminho. Só pedra, vento, e este moinho que não nos diz nada. E cada vez tenho mais a sensação de que estamos a ser observados, de que não estamos sós.
Hilário: então talvez estejamos a ser também escutados. Às vezes, ser escutado já é mais do que saber para onde se vai.
Amiga: então somos dois perdidos a conversar com pedras? É isso? Mas eu sinto que as pedras são fortificações onde se escondem feras que não nos temem, que esperaram todo o tempo que foi preciso até chegar o momento de nos atacarem, sem que tenhamos capacidade para enfrentá-las.
Hilário: dois perdidos que ainda conversam. E isso, Amiga… já é alguma coisa.
segunda-feira, 22 de setembro de 2025
Aproximações à verdade XLIII
quinta-feira, 18 de setembro de 2025
O que é acreditar, como saber se alguém acredita e que é que importa?
sábado, 13 de setembro de 2025
Aproximações à verdade XLII
Amiga: Hilário, acorda! Ele estava aqui…Dom Quixote de la Mancha! Com lança em punho, aos gritos, a atacar como se o moinho fosse um monstro!
Hilário: disseste lança, D. Quixote? Onde está? Mas que raio se passa? Tu andas a dormir com os livros do Cervantes debaixo da cabeça? Sonhaste?
Amiga: não era só sonho…Era como se o moinho se tivesse erguido contra nós, como se este abrigo fosse, afinal, o inimigo.
Hilário: o moinho está quieto. As pedras não se mexem, o vento não grita. As estrelas inclinam-se sobre nós como testemunhas. Só tu é que acordaste em pé de guerra.
Amiga: mas, e se D. Quixote tiver razão? E se este lugar, que parecia abrigo, for só mais uma ilusão? Como se estivéssemos a esconder-nos do mundo, em vez de o enfrentar?
Hilário: até pode ser que seja isso mesmo. Mas quem disse que temos de enfrentar o mundo todos os dias? Às vezes, parar também é coragem.
Amiga: mas o sonho…Quixote gritava como se o moinho não existisse, como se fosse alucinação. Como se morar aqui fosse desistir.
Hilário: ou talvez fosse só o teu medo a falar com sotaque de cavaleiro andante. Que forma queres dar aos fantasmas?
Amiga: e se for isso? Se este moinho for só mais um disfarce daquilo que não queremos ver?
Hilário: então que seja. Mas agora, ele é o abrigo. Sossega, vamos dormir. Só estamos rodeados de silêncio. E isso já é mais do que muitos têm.
Amiga: e D. Quixote? Será que não volta a atacar pela porta sem ferrolho dos sonhos?
Hilário: ele passa, grita e segue. Nós ficamos. E talvez, só talvez, isso também seja uma forma de andar.
Aproximações à verdade XLI
Hilário: sabes o que sinto, diante deste moinho parado? Que somos dois vagabundos ao vento que sopra devagar. Então este silêncio é como se o mundo se tivesse esquecido de nós.
Amiga: de nós e deste moinho abandonado. Hilário… Acho que podíamos ficar aqui. Este moinho tem tudo: sombra, pedra, vento. Não é castelo, mas também não nos pede nada. Estás a ouvir ou estás a olhar para o céu?
Hilário: ficar? Mas nós nunca ficámos. Nem sabemos por que andamos, quanto mais por que parar?
Amiga: talvez seja isso. Talvez este seja o fim do caminho, ou o começo de outro. Aqui não há ninguém a mandar, nem ninguém a esperar. Podíamos chamar-lhe casa.
Hilário: casa?…Tu sempre foste boa a ver abrigo onde eu só vejo ruína. Mas e o resto? E o que nos trouxe até aqui?
Amiga: e o que foi, Hilário? Sabes dizer? Alguma missão? Algum plano? Ou só o hábito de andar, como quem foge sem saber de quê?
Hilário: deixa-me pensar...Talvez fosse isso. Talvez andássemos porque parar parecia traição.
Como se o mundo nos tivesse prometido alguma coisa
e nós, teimosos, fôssemos cobrar.
Amiga: mas nunca cobramos. Nunca pedimos. Só seguimos, como dois pontos errantes.
Hilário: e agora queres fazer do moinho um ponto final?
Amiga: não um final. Uma vírgula. Onde o vento não nos empurre, mas nos embale.
Hilário: ai este cansaço. Pois então… que seja. Mas se amanhã acordarmos com vontade de andar, promete que não vais dizer que fracassamos.
Amiga: está prometido. Talvez o fracasso seja fingir que há um roteiro, quando tudo o que temos é o moinho.
terça-feira, 9 de setembro de 2025
O poder do olhar
As situações de pobreza são muito variadas e cada pobre vive a sua situação de um modo diferente dos outros. Por outro lado, poder-se-ia dizer que cada pobre é olhado de um modo diferente dos outros, não só por pessoas diferentes, mas também pela mesma pessoa.
O modo como se é olhado pode ser determinante, sobretudo quando se trata de uma pessoa em situação de pobreza ou indigência. Tal como ser olhado de certo modo pode ser demolidor, quem olha também pode estar a ser demolido pelo sentimento de aversão às pessoas em situação de pobreza.
É muitas vezes negligenciado que a pobreza não é uma categoria homogénea, e cada pessoa vive-a com uma história, um contexto e uma dor que são só seus.
A pobreza tem rostos diferentes. Um jovem sem acesso à educação vive a pobreza de forma diferente de um idoso com reforma mínima. Uma mãe solteira que trabalha em dois empregos precários enfrenta desafios distintos de um migrante sem documentos. Há quem esteja em pobreza temporária, por perda de emprego, e quem viva em pobreza estrutural, há gerações. Reduzir tudo isso a “os pobres” é apagar a complexidade e a humanidade de cada situação.
É por isso que soluções genéricas, como subsídios padronizados ou programas de formação em massa, muitas vezes falham. O que funciona para um pode ser inútil ou até prejudicial para outro. O verdadeiro combate à pobreza exige respostas personalizadas, construídas com base na escuta e na confiança.
Na prática, as soluções deveriam passar por um diagnóstico individual. Por exemplo, inquirir não apenas “quantos filhos tens?” ou “qual o teu rendimento?”, mas “como chegaste até aqui?” e “o que te impede de avançar?”. Por planos flexíveis que se adaptam à realidade de cada pessoa, com metas e ritmos diferentes. E representação ativa, porque os próprios beneficiários devem ter voz na construção das soluções, como parceiros e não apenas como “alvos” de políticas. E devolver a capacidade de escolher como viver, onde trabalhar, o que sonhar. É talvez o maior gesto de justiça social que podemos oferecer. A pobreza não é só falta de dinheiro, é falta de escolha.
A forma como olhamos para “o pobre” não é apenas diversa entre pessoas diferentes, mas também instável dentro de cada um de nós. O mesmo indivíduo pode olhar para uma pessoa em situação de pobreza com compaixão num dia, com indiferença noutro, e até com irritação noutro ainda. Isso revela o quanto a nossa perceção é moldada por contexto, humor, ideologia, e até pelo modo como o outro se apresenta. Quantas vezes o olhar sobre o pobre é uma projeção dos nossos próprios medos, medo da fragilidade, da perda, da impotência?! Podemos sentir empatia por alguém que “parece esforçado”, mas rejeitar outro que “parece não querer trabalhar”, mesmo sem conhecer a história de nenhum dos dois. A forma como a pessoa se veste, fala ou se comporta influencia fortemente a nossa reação, como se a dignidade fosse algo que se “merece” pela aparência. Já aqui relatei uma história de um mendigo que só começou a ter sucesso quando se fez passar por uma figura importante que caiu em desgraça.
Não existe “o pobre” como figura única. Existe uma multiplicidade de experiências, e uma multiplicidade de olhares, cada um carregado de julgamentos, afetos, preconceitos e contradições. E reconhecer isso é o primeiro passo para uma abordagem mais justa e humana.
Aprendêssemos nós a reconhecer os próprios preconceitos e oscilações internas. A dar espaço para que pessoas em situação de pobreza contem as suas histórias, sem filtros nem estereótipos. A ouvir sem tentar encaixar o outro numa categoria, acolhendo a sua singularidade.
Quando alguém em situação de pobreza é olhado com respeito, com atenção verdadeira, isso pode devolver-lhe algo essencial, a sensação de existir, de contar, de ser digno.
Por outro lado, o olhar que evita, que atravessa sem ver, ou que carrega desprezo, reforça a exclusão. É como se dissesse: “Tu não és parte do mundo que importa.”
E o mais inquietante é que não é preciso dizer nada, o corpo, os olhos, o silêncio já comunicam tudo.
Pessoas em situação de rua, por exemplo, relatam frequentemente que o pior não é o frio ou a fome, mas serem ignoradas. Passamos por elas como se fossem parte da paisagem urbana, um banco, uma sombra, um ruído. E isso fere mais fundo do que qualquer carência material.
Há olhares que curam. Um gesto de atenção, um cumprimento, um “bom dia” dito com sinceridade pode ser o primeiro passo para reconstruir pontes. E quando esse olhar vem acompanhado de escuta, de presença, de disponibilidade, então, já não é só um olhar, é um ato político e afetivo.
Sempre se pode trabalhar o poder do olhar, na escola, na rua, nos serviços públicos. Podemos sempre tentar devolver visibilidade a quem foi apagado.
Às vezes, tudo começa com um olhar que diz: “Eu vejo-te.”
Outro ponto, que quase nunca é discutido é que a aporofobia não destrói apenas quem é alvo, mas também quem a sente. O olhar de rejeição,
quando repetido, pode corroer a própria humanidade de quem o lança.
O sentimento de aversão aos pobres pode gerar desconforto moral, tensão entre valores éticos (como compaixão
e justiça) e atitudes excludentes podem gerar culpa, ansiedade ou racionalizações defensivas. Ao negar a empatia, o indivíduo fecha-se ao vínculo humano e isso empobrece a sua capacidade
de sentir, de se conectar, de crescer. A prática constante de rejeição pode levar à indiferença generalizada, tornando o sujeito menos sensível não só à pobreza,
mas a qualquer forma de sofrimento.
Estou convicto de que muitos dos que rejeitam os pobres o fazem por medo inconsciente de se tornarem pobres, e esse medo, não enfrentado, pode gerar comportamentos obsessivos,
consumismo compulsivo ou rigidez ideológica.
No fundo, o olhar que rejeita o outro está muitas vezes a rejeitar algo dentro de si, a fragilidade, a vulnerabilidade, a possibilidade de queda. E isso pode
ser devastador, porque impede o sujeito de se reconciliar com a sua própria condição humana.
Assim sendo, se o nosso olhar nos transforma, talvez valha a pena pensar em como podemos transformá-lo.
Talvez
curar o modo como olhamos tenha o efeito de curar o modo como vivemos.
Carlos Ricardo Soares
sábado, 30 de agosto de 2025
Aproximações à Verdade XL
Amiga: mas precisas de ser forte e de ter carácter, porque os sarilhos, por vezes disfarçados de boas intenções e de vantagens, não cessarão de te assediar e de te importunar.
Hilário: até sob a forma de pretextos respeitáveis, ou mesmo em nome de insofismáveis princípios.
Amiga: sobretudo naqueles momentos em que baixas a guarda.
Amiga: até o facto de sempre teres sido um desgraçado que sobreviveu a todo o tipo de dificuldades e de adversidades fará inveja.
Hilário: nunca entendi porque é que isso acontece, mas sempre achei que os ricos têm inveja dos pobres.
Amiga: e também têm inveja uns dos outros, mas nisso os humanos são todos iguais.
Hilário: mas vê o que fazem os Estados e os povos uns aos outros. Não lhes chega serem os mais poderosos, ainda querem aquilo que os outros têm. Se não puderem tirar-lhes mais nada, tentam tirar-lhes a vida, como se isso fosse um direito da força que tenha de ser respeitado pelos mais fracos.
Amiga: eles não suportam que os pobres lhes façam frente e sejam capazes de sobreviver, nunca perceberam como é que conseguem, como são capazes, como têm o desplante de existirem sem se curvarem perante eles.
Hilário: e tentam submetê-los até os aniquilarem, para se certificarem de que eles, afinal, são normais, também morrem.
Amiga: não sei explicar, mas acho que os ricos acreditam que aos pobres nada faz falta porque não têm nada a perder.
Hilário: da janela das aeronaves, olham para os indefesos e abanam a cabeça “vivem felizes mas deviam estar mortos de inveja de nós”.
Amiga: isso eles não suportam, ficam furibundos.
Carlos Ricardo Soares
domingo, 24 de agosto de 2025
Aproximações à verdade XXXIX
Quixote: Sabes, às vezes penso que te inventei. Que foste só o eco daquilo que eu precisava ouvir. Um reflexo gentil no vidro embaciado da minha carência.
Aldonza (Dulcineia): E se me inventaste, por que continuo aqui? Por que me chamas quando o silêncio pesa? Talvez não seja invenção, talvez sejamos pirilampos à procura.
Quixote: Procura… Mas de quê? Do amor que se diz mas não se sente? Da palavra que promete mas não toca?
Aldonza (Dulcineia): Talvez da presença que não exige prova. Do gesto que não precisa legenda. Do amor que não se explica, mas se reconhece, como o cheiro da terra molhada.
Quixote: E se eu só souber amar com palavras? Se nunca tiver sentido o tal arrepio que dizem que é amor?
Aldonza (Dulcineia): Então ama com palavras. Mas que sejam tuas. Que não sejam copiadas de canções nem arrancadas de livros. Ama com a tua dúvida, com o teu medo, com a tua pergunta. Com a tua ilusão. Com a tua loucura. Com o que tens.
Quixote: Amar…E tu amas? Ou tudo não passa de palavras?
Aldonza (Dulcineia): Se tudo for palavra, que ao menos seja palavra viva. Que toque. Se não tocar na pele que toque no cérebro, que sintas por dentro. Que te transforme. E que, no fim, te leve até mim.
Carlos Ricardo Soares
quinta-feira, 21 de agosto de 2025
As trevas
I
Quando a dor se instala como hóspede antigo
e o mundo se fecha em silêncios densos
há uma faísca que sem pedir abrigo
acende o invisível
nos nossos pensamentos
II
Não é redenção nem milagre divino
é o lume discreto que o corpo conhece
a beleza da vida como peregrino
vem e vai até que
nos esquece
III
Ela não mora em nós nem nos visita
pousando leve num ramo ferido
mas parte deixando escrita
a memória do instante em que fez sentido
IV
A escuridão que já não é castigo
mas a cera da luz que há de vir
porque se aprende com o inimigo
é arte secreta de não
desistir
V
Quem sente a beleza mesmo por instantes
carrega no peito um sol clandestino
que brilha às vezes um pouco antes
de vencer as trevas do mundo sibilino.