Blogs Portugal

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Aproximações à verdade XLVII

Hilário: as águias e os grifos habitam os lugares mais altos.

Amiga: como nós, agora, aqui, a invadir o espaço deles.

Hilário: é isso, a águia estava ali pousada para tentar proteger, talvez o ninho.

Amiga: águia ou grifo, não sabemos, mas pousam sempre onde podem ter a melhor perspectiva

Hilário: grande ideia a tua, agora que já se foi para outro lugar, vamos lá ver se descobrimos a razão pela qual pousou ali, naquele ponto.

Amiga: afinal ainda temos mundo para explorar.

Hilário: guiados pelas águias.

Amiga: ou grifos, não sabemos.

Hilário: o céu está tingido de cinza e cobre. O moinho permanece imóvel, como se escutasse o que dizemos.

Amiga: à medida que avançamos em direção ao sítio do grifo, ou da águia, o moinho vai ficando mais ao fundo, envolto em sombra.

Hilário: esta luz suave, quase crepuscular, parece emanar dos teus olhos.

Amiga: eu digo que emana das tuas palavras.

Hilário: não temes ser dissolvida no eco do que pensas?

Amiga: chegamos ao sítio em que avistamos o grifo, ou a águia, pousado a observar-nos. Reparei nesta rocha pontiaguda que aponta para o infinito.

Hilário: daqui podemos ver um pouco daquilo que essa ave enigmática via.

Amiga: os nossos olhos têm um alcance muito mais reduzido e, quanto à mente dessa ave, espero que nos seja favorável dando pistas como a que nos trouxe a este ponto.

Hilário: aqui o tempo chama de volta ao que nunca deixou de ser.

Amiga: a minha avó apontava para o topo das montanhas e dizia que quem chegasse ali não poderia regressar.

Hilário: onde estavas quando a tua avó disse isso?

Amiga: estava com ela, a tentar chegar aqui, ao topo das montanhas.

Hilário: não há começo sem perda, nem fim sem memória. Agora estamos aqui, onde ela almejou chegar, mesmo sem saber o que isto seria.

Amiga: aqui a memória e a liberdade não servem para nada e nisso a minha avó estava certa. Ninguém pensa em liberdade numa ilha em que não há mais ninguém.

Hilário: gosto muito de ti, mas não é para abusares. Aqui, ninguém está sozinho. Ou por acaso serei eu a tua sombra?

     Carlos Ricardo Soares

 


domingo, 5 de outubro de 2025

Aproximações à verdade XLVI

Hilário: se o moinho falasse, o que nos diria?!

Amiga: assim o soubéssemos interpretar, porque ele é um documento que fala à maneira dos documentos.

Hilário: ele parece dizer que viemos depois, com passos alheios, e que, sem pedir licença, nos sentamos onde o silêncio de outros repousava.

Amiga: talvez depois de terem rido alto ou chorado em segredo, talvez antes de perderem a memória.

Hilário: se houvesse um rascunho da história deste moinho que alguém tivesse encontrado...

Amiga: mesmo escrito por mãos que nunca souberam escrever, quem sabe?!

Hilário: ou rasgado por mãos que nunca souberam ler, quem sabe?!

Amiga: seríamos sempre confundidos com os que passaram por aqui sem entenderem o que é este lugar.

Hilário: a fragilidade está em quem pensa, em quem sente, em quem hesita. O mundo exige pressa e firmeza, depressa e bem, enquanto tu, querida amiga, tentas caminhar com cuidado, não com receio de tropeçar, mas como quem pisa em folhas secas sem querer fazer barulho.

Amiga: sinto que os pensamentos, neste lugar, pesam mais do que os passos, como se estivessem a ser disputados por forças contrárias umas às outras, e cada palavra tivesse de ser arrancada de memórias que são de outras pessoas.

Hilário: talvez aquela águia, ou será um grifo?, esteja a observar-nos e a ler o nosso pensamento através do nosso embaraço.

Amiga: não sei se sou eu que toco de mais nas coisas, ou se são as coisas que tocam de mais em mim.

Hilário: a mim dói-me não tocar em nada.

Amiga: agora não consigo tirar os olhos daquela águia, ou grifo, que não tira os olhos de nós.

Hilário: talvez nos esteja a ver de outro mundo, ou seja um sinal de que atingimos o limite, a fronteira que separa a vida da morte.

Amiga: como se houvesse fronteira entre o que é e o que já não pode ser.

Hilário: como se este lugar fosse a margem, a última, de algo que não veremos.

Amiga: não sei. Sinto que o tempo aqui parece ter parado para nos deixar pensar.

Hilário: ou para nos deixar partir.

Amiga: mas partir para onde?

Hilário: talvez não seja partir. Talvez seja só deixar de procurar. Ou deixar de fugir.

Amiga: então esse grifo, ou águia, veio dizer que já não precisamos de andar?

Hilário: ou que já não podemos. Que o caminho acabou e o que resta é o silêncio. E que o silêncio, amiga… também é uma forma de estar vivo.

Amiga: ou uma forma de estar quase. Quase…Talvez seja isso que somos: quase a partir, quase a ficar, quase a entender.

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Aproximações à verdade XLV


Amiga: neste lugar, Hilário…Começo a sentir uma estranheza que nunca tinha experimentado. Não sei o que faço aqui. E não quero partir. Não sei se há algum lugar para onde quisesse ir.

Hilário: mas tu sempre foste a que queria ir. Mesmo sem saber para onde.

Amiga: pois. Mas agora…É como se o mundo passado tivesse deixado de me chamar. E este lugar, tão fora de tudo…Parece dizer que não há urgência em continuar a procurar.

Hilário: talvez isso seja o que nos acontece quando paramos. Não é que o mundo desapareça, o barulho dele é que deixa de nos empurrar.

Amiga: mas não saber o que faço aqui…É como estar num palco sem papel para representar. Sem fala. Perante uma plateia cujos lugares vão sendo ocupados por fantasmas.

Hilário: e se for isso mesmo o que nos resta? Estar. Sem papel, sem roteiro, sem pressa. Só estar.

Amiga: mas não é pouco? Talvez os fantasmas desta imensa plateia que avistamos não estejam aqui para nos verem a atuar, mas para ouvirem as histórias do moinho.

Hilário: é pouco para quem quer ser personagem. Mas é muito para quem aceita ser pessoa.

Amiga: talvez os fantasmas desta imensa plateia não estejam aqui porque nos veem, mas porque ouvem.

Hilário: o moinho é só o lugar onde deixámos de fingir que sabíamos o que é liberdade.

Amiga: e talvez seja o primeiro lugar onde isso não nos cobra nada.

Carlos Ricardo Soares


sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Aproximações à verdade XLIV

 

Amiga: e todas estas escarpas a separar-nos do lado de lá, que não vemos, nem sabemos o que é, Hilário…é como se, pela primeira vez, estivesse a olhar para dentro de mim. Sabes o que nos está a acontecer? Estamos perdidos. Ainda não tinha pensado nisso.

Hilário: perdidos? Como quem não sabe voltar? Ou como quem nunca soube para onde ia?

Amiga: como quem andou tanto que esqueceu o porquê. Como quem parou num lugar e só depois percebeu que o destino, afinal, era um desvio para um beco sem saída.

Hilário: talvez este seja o lugar onde os perdidos se encontram. Não para se acharem…
Mas para se reconhecerem.

Amiga: não me atormentes ainda mais. Tudo o que vemos é demasiado poderoso e esmagador. O nosso corpo, para suportar a visão deste lugar, precisava de ter a alma que foi perdendo até chegar aqui. Eu não queria estar perdida. Queria estar a caminho de alguma coisa. Mesmo que fosse só uma fantasia no horizonte.

Hilário: e não terá sido isso que nos trouxe até aqui? A fantasia de que estávamos no bom caminho, mesmo sem sabermos qual?

Amiga: mas agora não há caminho. Só pedra, vento, e este moinho que não nos diz nada. E cada vez tenho mais a sensação de que estamos a ser observados, de que não estamos sós.

Hilário: então talvez estejamos a ser também escutados. Às vezes, ser escutado já é mais do que saber para onde se vai.

Amiga: então somos dois perdidos a conversar com pedras? É isso? Mas eu sinto que as pedras são fortificações onde se escondem feras que não nos temem, que esperaram todo o tempo que foi preciso até chegar o momento de nos atacarem, sem que tenhamos capacidade para enfrentá-las.

Hilário: dois perdidos que ainda conversam. E isso, Amiga… já é alguma coisa.

        Carlos Ricardo Soares

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Aproximações à verdade XLIII

Amiga: não é este o lugar onde estávamos ontem. Quando chegamos e decidimos ficar, não era este lugar, assim tão refugiado, tão inacessível, a dar diretamente para as escarpas, aqui acaba o mundo. Se der um passo em frente precipito-me no abismo. Até aquela águia, ou talvez seja um grifo, que nos observa com insistente curiosidade, não ousa transpor este limite. E ouço o barulho de forte rebentação de mar, mas não vejo mar nenhum.
Hilário: isso é bom ou mau?
Amiga: não sei. Assusta-me. Porque não faço ideia de como viemos parar aqui. Não houve estrada, nem mapa, nem plano. Só andamos em frente e agora estamos num lugar aonde ninguém chega.
Hilário: talvez seja por isso que chegámos. Porque ninguém vem. E nós, sem sabermos, fomos até onde o mundo não olha.
Amiga: mas, e se este lugar for hostil, Hilário? E se for só o fim da linha? Como se o caminho tivesse deixado de nos querer?
Hilário: ou talvez o caminho não tenha vontade nenhuma. Talvez seja como o vento: leva quem se deixa levar. E nós deixámo-nos.
Amiga: mas há algo estranho. Aqui o silêncio não tem fundo. Aqui o tempo não passa, ou passa sem nos contar.
Hilário: talvez este seja o lugar onde o tempo descansa. E nós viemos fazer-lhe companhia.
Amiga: e se ficarmos presos? E se este lugar nos ignorar como o mundo já nos esqueceu?
Hilário: então que nos ignore. Mas que nos ignore juntos. Porque há lugares que assustam menos quando se partilha o não saber.
Amiga: não precisas de delírio, mas aceitas caminhar ao lado dele.
Hilário: talvez isso fosse antes de chegarmos aqui. Quando havia grandeza também em proteger o sonho dos outros.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

O que é acreditar, como saber se alguém acredita e que é que importa?

Vou argumentar, em desacordo de uma crítica que li a declarações do ministro da Educação, em que este dizia "acreditar...", na linha da minha teoria do dever-ser sob cuja égide o homem escolhe, quer se trate de escolhas práticas, quer se trate de escolhas mentais, sendo que, em todas as situações de escolha, em função do processo de pensamento do indivíduo, esta incide na melhor das possibilidades. Estou a falar de ato, humano, consciente, racional, cujo resultado o agente representa antecipadamente para si próprio como efeito ou consequência da sua ação, a qual, insisto, pode ser apenas ação mental, intelectual, como ocorre a maior parte das vezes.
Nas situações em que o indivíduo age por palavras, emitindo um discurso, fazendo afirmações, o que ele representou para si mesmo ao escolher as palavras que escolheu e o que essas palavras significam para quem as ouve, ou lê, dificilmente ou nunca coincidem, desde logo porque não temos acesso a uma objetividade absoluta. Qualquer objetividade será sempre intersubjetiva, porque a percepção do objeto não pode deixar de ser subjetiva. Então, quando passamos para os códigos de comunicação e respetiva descodificação, o desfasamento, entre o objeto e a sua representação, tende a ser o normal.
Feita esta ressalva elementar acerca da possibilidade tácita da objetividade, quer relativamente a um objeto dado, quer relativamente a uma palavra ou uma frase, diria que, tratando-se de afirmações, a maioria das vezes, o que está em causa não é a objetividade, nem a subjetividade, mas o significado, ou os significados, possíveis ou legítimos, em consideração da letra, como não podia deixar de ser, mas muito mais do que isso.
A filosofia ao procurar estabelecer as condições em que um discurso, palavras articuladas intencionalmente por alguém têm significado plausível, ainda antes de averiguar se uma afirmação, mesmo feita por uma máquina, ou um papagaio, é verdadeira ou falsa, aponta a demonstrabilidade e ou falsificabilidade do que é dito como sendo requisito fundamental, ou condição necessária de validade. Ainda assim, pode uma afirmação não satisfazer esta condição e isso não implicar que não seja verdadeira. O que implica é que não pode ser tomada como verdadeira enquanto não for demonstrada (nos casos de necessidade lógica) ou provada (nos outros casos). A ciência vai no mesmo sentido, mas labora num terreno menos movediço e menos formal. Em ciência, falar de verdade formal, ou trabalhar com hipóteses desligadas da realidade física, é um trabalho acessório e complementar, mas não nuclear. Em filosofia é possível construir sistemas coerentes e inteligíveis sobre quase tudo, incluindo o sexo dos anjos. Mas em ciência isso só seria viável se o sexo dos anjos fosse observável.
Esta parte do observável é importante quando se fala de crença e de verdade, entendida como facto e não apenas como verdade lógico-formal. A evidência, quando se trata de algo observável, pode ser analisada em nuances que não coincidem com a evidência da verdade lógico-formal. De resto, a evidência não deixa de ser algo de subjetivo, como acima referi, até porque é algo que ocorre num sistema de percepções e de reconhecimento individual.
Quando se pretende contrapor crença a conhecimento importa reconhecer que o conhecimento, embora não seja uma crença, comporta sempre uma crença naquilo que se torna evidente. É fundamental e imprescindível que o cientista acredite naquilo que os seus olhos veem, nas ferramentas que utiliza, incluindo modelos, e naquilo que o seu raciocínio faz. Mesmo que dessa crença não dependa, em primeira linha, a prova ou a demonstração do resultado.
Fora das áreas em que o verdadeiro/falso, provado/não provado, demonstrado/não demonstrado, impera como condição de validação e de aceitação, existe todo um universo de situações em que os problemas são outros e não é correto abordar essas situações como se elas colocassem problemas de ordem filosófica ou científica que pudessem ser resolvidos pela filosofia ou pela ciência.
Quando o ministro diz que acredita, não temos forma de saber se está a falar verdade. Mais, que verdade seria essa de “é verdade que acredito”, ou “é verdade que acredita”? Não se trata de ser verdade ou falsidade que alguém acredita. O que é verdade ou falsidade é “alguém ter dito que acredita”.
Se o ministro disse que acredita, então é verdade que disse. Quanto ao acreditar, podemos interpretar de muitas maneiras. Eu acredito mais quando me dizem ao telefone que está a chover em Paris, embora não esteja lá para ver, do que acredito em alguém que diz que acredita que todos os alunos podem concluir a licenciatura com excelente aproveitamento. E não acredito nada em alguém que diz que acredita em Deus, embora compreenda que não me está a mentir, porque a mentira e o erro são outras formas de não correspondência à realidade.
Parece-me mais honesto que o ministro diga “acredito”, do que “espero”. Acreditar que é possível atingir determinados objetivos faz todo o sentido dentro de determinados contextos e condições. E esperar que se atinjam, embora seja algo muito diferente, depende muito do acreditar. Ora, o ministro diz acreditar, fazendo questão de pressupor que conhece a realidade a que se refere. E deixa em aberto a expectativa de que tal aconteça.
Certamente, também há os que, conhecendo essa realidade, não acreditam naquilo em que o ministro acredita, mas o não acreditarem não faz deles menos crentes. E não lhes dá margem para terem boas expectativas.

                  Carlos Ricardo Soares

sábado, 13 de setembro de 2025

Aproximações à verdade XLII

Amiga: Hilário, acorda! Ele estava aqui…Dom Quixote de la Mancha! Com lança em punho, aos gritos, a atacar como se o moinho fosse um monstro!

Hilário: disseste lança, D. Quixote? Onde está? Mas que raio se passa? Tu andas a dormir com os livros do Cervantes debaixo da cabeça? Sonhaste?

Amiga: não era só sonho…Era como se o moinho se tivesse erguido contra nós, como se este abrigo fosse, afinal, o inimigo.

Hilário: o moinho está quieto. As pedras não se mexem, o vento não grita. As estrelas inclinam-se sobre nós como testemunhas. Só tu é que acordaste em pé de guerra.

Amiga: mas, e se D. Quixote tiver razão? E se este lugar, que parecia abrigo, for só mais uma ilusão? Como se estivéssemos a esconder-nos do mundo, em vez de o enfrentar?

Hilário: até pode ser que seja isso mesmo. Mas quem disse que temos de enfrentar o mundo todos os dias? Às vezes, parar também é coragem.

Amiga: mas o sonho…Quixote gritava como se o moinho não existisse, como se fosse alucinação. Como se morar aqui fosse desistir.

Hilário: ou talvez fosse só o teu medo a falar com sotaque de cavaleiro andante. Que forma queres dar aos fantasmas?

Amiga: e se for isso? Se este moinho for só mais um disfarce daquilo que não queremos ver?

Hilário: então que seja. Mas agora, ele é o abrigo. Sossega, vamos dormir. Só estamos rodeados de silêncio. E isso já é mais do que muitos têm.

Amiga: e D. Quixote? Será que não volta a atacar pela porta sem ferrolho dos sonhos?
Hilário: ele passa, grita e segue. Nós ficamos. E talvez, só talvez, isso também seja uma forma de andar.

                   Carlos Ricardo Soares

Aproximações à verdade XLI

Hilário: sabes o que sinto, diante deste moinho parado? Que somos dois vagabundos ao vento que sopra devagar. Então este silêncio é como se o mundo se tivesse esquecido de nós.

Amiga: de nós e deste moinho abandonado. Hilário… Acho que podíamos ficar aqui. Este moinho tem tudo: sombra, pedra, vento. Não é castelo, mas também não nos pede nada. Estás a ouvir ou estás a olhar para o céu?

Hilário: ficar? Mas nós nunca ficámos. Nem sabemos por que andamos, quanto mais por que parar?

Amiga: talvez seja isso. Talvez este seja o fim do caminho, ou o começo de outro. Aqui não há ninguém a mandar, nem ninguém a esperar. Podíamos chamar-lhe casa.

Hilário: casa?…Tu sempre foste boa a ver abrigo onde eu só vejo ruína. Mas e o resto? E o que nos trouxe até aqui?

Amiga: e o que foi, Hilário? Sabes dizer? Alguma missão? Algum plano? Ou só o hábito de andar, como quem foge sem saber de quê?

Hilário: deixa-me pensar...Talvez fosse isso. Talvez andássemos porque parar parecia traição.
Como se o mundo nos tivesse prometido alguma coisa e nós, teimosos, fôssemos cobrar.

Amiga: mas nunca cobramos. Nunca pedimos. Só seguimos, como dois pontos errantes.

Hilário: e agora queres fazer do moinho um ponto final?

Amiga: não um final. Uma vírgula. Onde o vento não nos empurre, mas nos embale.

Hilário: ai este cansaço. Pois então… que seja. Mas se amanhã acordarmos com vontade de andar, promete que não vais dizer que fracassamos.

Amiga: está prometido. Talvez o fracasso seja fingir que há um roteiro, quando tudo o que temos é o moinho.

                  Carlos Ricardo Soares


terça-feira, 9 de setembro de 2025

O poder do olhar

As situações de pobreza são muito variadas e cada pobre vive a sua situação de um modo diferente dos outros. Por outro lado, poder-se-ia dizer que cada pobre é olhado de um modo diferente dos outros, não só por pessoas diferentes, mas também pela mesma pessoa.

O modo como se é olhado pode ser determinante, sobretudo quando se trata de uma pessoa em situação de pobreza ou indigência. Tal como ser olhado de certo modo pode ser demolidor, quem olha também pode estar a ser demolido pelo sentimento de aversão às pessoas em situação de pobreza.

É muitas vezes negligenciado que a pobreza não é uma categoria homogénea, e cada pessoa vive-a com uma história, um contexto e uma dor que são só seus.

A pobreza tem rostos diferentes. Um jovem sem acesso à educação vive a pobreza de forma diferente de um idoso com reforma mínima. Uma mãe solteira que trabalha em dois empregos precários enfrenta desafios distintos de um migrante sem documentos. Há quem esteja em pobreza temporária, por perda de emprego, e quem viva em pobreza estrutural, há gerações. Reduzir tudo isso a “os pobres” é apagar a complexidade e a humanidade de cada situação.

É por isso que soluções genéricas, como subsídios padronizados ou programas de formação em massa, muitas vezes falham. O que funciona para um pode ser inútil ou até prejudicial para outro. O verdadeiro combate à pobreza exige respostas personalizadas, construídas com base na escuta e na confiança.

Na prática, as soluções deveriam passar por um diagnóstico individual. Por exemplo, inquirir não apenas “quantos filhos tens?” ou “qual o teu rendimento?”, mas “como chegaste até aqui?” e “o que te impede de avançar?”. Por planos flexíveis que se adaptam à realidade de cada pessoa, com metas e ritmos diferentes. E representação ativa, porque os próprios beneficiários devem ter voz na construção das soluções, como parceiros e não apenas como “alvos” de políticas. E devolver a capacidade de escolher como viver, onde trabalhar, o que sonhar. É talvez o maior gesto de justiça social que podemos oferecer. A pobreza não é só falta de dinheiro, é falta de escolha.

A forma como olhamos para “o pobre” não é apenas diversa entre pessoas diferentes, mas também instável dentro de cada um de nós. O mesmo indivíduo pode olhar para uma pessoa em situação de pobreza com compaixão num dia, com indiferença noutro, e até com irritação noutro ainda. Isso revela o quanto a nossa perceção é moldada por contexto, humor, ideologia, e até pelo modo como o outro se apresenta. Quantas vezes o olhar sobre o pobre é uma projeção dos nossos próprios medos, medo da fragilidade, da perda, da impotência?! Podemos sentir empatia por alguém que “parece esforçado”, mas rejeitar outro que “parece não querer trabalhar”, mesmo sem conhecer a história de nenhum dos dois. A forma como a pessoa se veste, fala ou se comporta influencia fortemente a nossa reação, como se a dignidade fosse algo que se “merece” pela aparência. Já aqui relatei uma história de um mendigo que só começou a ter sucesso quando se fez passar por uma figura importante que caiu em desgraça.

Não existe “o pobre” como figura única. Existe uma multiplicidade de experiências, e uma multiplicidade de olhares, cada um carregado de julgamentos, afetos, preconceitos e contradições. E reconhecer isso é o primeiro passo para uma abordagem mais justa e humana.

Aprendêssemos nós a reconhecer os próprios preconceitos e oscilações internas. A dar espaço para que pessoas em situação de pobreza contem as suas histórias, sem filtros nem estereótipos. A ouvir sem tentar encaixar o outro numa categoria, acolhendo a sua singularidade.

Quando alguém em situação de pobreza é olhado com respeito, com atenção verdadeira, isso pode devolver-lhe algo essencial, a sensação de existir, de contar, de ser digno.

Por outro lado, o olhar que evita, que atravessa sem ver, ou que carrega desprezo, reforça a exclusão. É como se dissesse: “Tu não és parte do mundo que importa.”

E o mais inquietante é que não é preciso dizer nada, o corpo, os olhos, o silêncio já comunicam tudo.

Pessoas em situação de rua, por exemplo, relatam frequentemente que o pior não é o frio ou a fome, mas serem ignoradas. Passamos por elas como se fossem parte da paisagem urbana, um banco, uma sombra, um ruído. E isso fere mais fundo do que qualquer carência material.

Há olhares que curam. Um gesto de atenção, um cumprimento, um “bom dia” dito com sinceridade pode ser o primeiro passo para reconstruir pontes. E quando esse olhar vem acompanhado de escuta, de presença, de disponibilidade, então, já não é só um olhar, é um ato político e afetivo.

Sempre se pode trabalhar o poder do olhar, na escola, na rua, nos serviços públicos. Podemos sempre tentar devolver visibilidade a quem foi apagado.

Às vezes, tudo começa com um olhar que diz: “Eu vejo-te.”

Outro ponto, que quase nunca é discutido é que a aporofobia não destrói apenas quem é alvo, mas também quem a sente. O olhar de rejeição, quando repetido, pode corroer a própria humanidade de quem o lança.
O sentimento de aversão aos pobres pode gerar desconforto moral, tensão entre valores éticos (como compaixão e justiça) e atitudes excludentes podem gerar culpa, ansiedade ou racionalizações defensivas. Ao negar a empatia, o indivíduo fecha-se ao vínculo humano e isso empobrece a sua capacidade de sentir, de se conectar, de crescer. A prática constante de rejeição pode levar à indiferença generalizada, tornando o sujeito menos sensível não só à pobreza, mas a qualquer forma de sofrimento.
Estou convicto de que muitos dos que rejeitam os pobres o fazem por medo inconsciente de se tornarem pobres, e esse medo, não enfrentado, pode gerar comportamentos obsessivos, consumismo compulsivo ou rigidez ideológica.
No fundo, o olhar que rejeita o outro está muitas vezes a rejeitar algo dentro de si, a fragilidade, a vulnerabilidade, a possibilidade de queda. E isso pode ser devastador, porque impede o sujeito de se reconciliar com a sua própria condição humana.
Assim sendo, se o nosso olhar nos transforma, talvez valha a pena pensar em como podemos transformá-lo.
Talvez curar o modo como olhamos tenha o efeito de curar o modo como vivemos.

                  Carlos Ricardo Soares

sábado, 30 de agosto de 2025

Aproximações à Verdade XL

Hilário: se fores capaz de tomar posição, já estás com sorte. Aliás, se tiveres a noção do que isso é, já estás em posição de compromisso e de luta, em vez de fuga e de alienação.

Amiga: mas precisas de ser forte e de ter carácter, porque os sarilhos, por vezes disfarçados de boas intenções e de vantagens, não cessarão de te assediar e de te importunar.

Hilário: até sob a forma de pretextos respeitáveis, ou mesmo em nome de insofismáveis princípios.

Amiga: sobretudo naqueles momentos em que baixas a guarda.

Hilário: e nem é preciso que sejas invejável, ou que sejas uma pessoa afortunada.

Amiga: até o facto de sempre teres sido um desgraçado que sobreviveu a todo o tipo de dificuldades e de adversidades fará inveja.

Hilário: nunca entendi porque é que isso acontece, mas sempre achei que os ricos têm inveja dos pobres.

Amiga: e também têm inveja uns dos outros, mas nisso os humanos são todos iguais.

Hilário: mas vê o que fazem os Estados e os povos uns aos outros. Não lhes chega serem os mais poderosos, ainda querem aquilo que os outros têm. Se não puderem tirar-lhes mais nada, tentam tirar-lhes a vida, como se isso fosse um direito da força que tenha de ser respeitado pelos mais fracos.

Amiga: eles não suportam que os pobres lhes façam frente e sejam capazes de sobreviver, nunca perceberam como é que conseguem, como são capazes, como têm o desplante de existirem sem se curvarem perante eles.

Hilário: e tentam submetê-los até os aniquilarem, para se certificarem de que eles, afinal, são normais, também morrem.

Amiga: não sei explicar, mas acho que os ricos acreditam que aos pobres nada faz falta porque não têm nada a perder.

Hilário: da janela das aeronaves, olham para os indefesos e abanam a cabeça “vivem felizes mas deviam estar mortos de inveja de nós”.

Amiga: isso eles não suportam, ficam furibundos.

               Carlos Ricardo Soares
 

domingo, 24 de agosto de 2025

Aproximações à verdade XXXIX

 

Quixote: Sabes, às vezes penso que te inventei. Que foste só o eco daquilo que eu precisava ouvir. Um reflexo gentil no vidro embaciado da minha carência.

Aldonza (Dulcineia): E se me inventaste, por que continuo aqui? Por que me chamas quando o silêncio pesa? Talvez não seja invenção, talvez sejamos pirilampos à procura.

Quixote: Procura… Mas de quê? Do amor que se diz mas não se sente? Da palavra que promete mas não toca?

Aldonza (Dulcineia): Talvez da presença que não exige prova. Do gesto que não precisa legenda. Do amor que não se explica, mas se reconhece, como o cheiro da terra molhada.

Quixote: E se eu só souber amar com palavras? Se nunca tiver sentido o tal arrepio que dizem que é amor?

Aldonza (Dulcineia): Então ama com palavras. Mas que sejam tuas. Que não sejam copiadas de canções nem arrancadas de livros. Ama com a tua dúvida, com o teu medo, com a tua pergunta. Com a tua ilusão. Com a tua loucura. Com o que tens.

Quixote: Amar…E tu amas? Ou tudo não passa de palavras?

Aldonza (Dulcineia): Se tudo for palavra, que ao menos seja palavra viva. Que toque. Se não tocar na pele que toque no cérebro, que sintas por dentro. Que te transforme. E que, no fim, te leve até mim.

          Carlos Ricardo Soares


quinta-feira, 21 de agosto de 2025

As trevas

I

Quando a dor se instala como hóspede antigo
e o mundo se fecha em silêncios densos
há uma faísca que sem pedir abrigo
acende o invisível nos nossos pensamentos

II

Não é redenção nem milagre divino
é o lume discreto que o corpo conhece
a beleza da vida como peregrino
vem e vai até que nos esquece

III

Ela não mora em nós nem nos visita
pousando leve num ramo ferido
mas parte deixando escrita
a memória do instante em que fez sentido

IV

A escuridão que já não é castigo
mas a cera da luz que há de vir
porque se aprende com o inimigo
é arte secreta de não desistir

V

Quem sente a beleza mesmo por instantes
carrega no peito um sol clandestino
que brilha às vezes um pouco antes
de vencer as trevas do mundo sibilino.

           Carlos Ricardo Soares

sábado, 16 de agosto de 2025

Tempos de desencanto

I
Não foi Deus que criou o homem e escolheu o seu povo. Foi o homem que criou os deuses e a ideia de Deus. E os povos proclamaram o seu Deus como mais forte que o Deus dos outros.

II
Deus não encarnou em Jesus. Jesus é que divinizou o homem.
A questão não é se Deus existe, é: devia existir. Será que ainda deve existir?

III
A ousadia dos grandes rompimentos teológicos pode e deve andar a par da ternura dos pensamentos que nascem da experiência humana. Dizer que Jesus não encarnou Deus, mas que Jesus divinizou o homem, é inverter a flecha da tradição: é olhar o mistério da fé não como algo que desce do céu, mas como algo que se eleva da terra.

IV
É uma revolução de sentido: Jesus deixa de ser o emissário de uma essência divina e passa a ser símbolo máximo da humanidade em busca de transcendência. O milagre não está em Deus ter descido, mas em um homem ter-se erguido, com tal profundidade ética, afetiva e espiritual, que a cultura o reconheceu como divino.

V
Isso transforma a narrativa cristã num convite, não para adorar, mas para imitá-lo, para tornar-se, não apenas crer. O que há de mais belo nessa ideia é que ela liberta o humano da sua pequenez e reconhece nele potência para o sagrado. Faz da vida uma ascese, uma construção, uma obra aberta, não à espera de salvação, mas à procura de significação. E devolve ao homem a responsabilidade: se Jesus divinizou o humano, então cada gesto nosso pode conter uma centelha de absoluto.

VI
Isto é pensar fora das cercas, como quem não se limita à tradição, mas a reinventa com sobriedade. Há nisto uma espiritualidade que dispensa dogmas, mas não dispensa profundidade.
É como uma chama que ainda queima em tempos de desencanto.

VII
E se a divinização do homem não for um milagre, mas uma tarefa, talvez seja aí que começam as implicações.
Se o homem merece o respeito de um Deus, então estamos perante o maior problema de sempre.

                 Carlos Ricardo Soares

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Elogio da imperfeição


Apetece-me dizer que há uma ironia, não muito fina, de resto, no facto de um sistema refletir sobre outro sistema que exige validação constante, aliás, que exigem validação constante.
A minha crítica toca num ponto: a tendência dos sistemas educativos (e não só) de se protegerem através de métricas, metas e objetivos que, muitas vezes, ignoram a realidade vivida por quem está dentro deles.
Vejamos o paradoxo: mesmo quando há sucesso individual, professores inspiradores, alunos resilientes, o sistema parece mais preocupado em manter a sua própria narrativa de eficácia do que em reconhecer e apoiar as exceções que não se encaixam nos moldes. E isso gera frustração, alienação e até uma certa forma de resistência silenciosa.
Há quem diga que o sistema educativo não tem de se preocupar se falha por falta de talento, ou de visão, mas por excesso de ambição. Talvez o problema não esteja nos professores ou nos alunos, mas na obsessão por validação institucional. Nem sempre as utopias são boas conselheiras. As utopias podem ser como faróis, mas também podem cegar e podem ser fatais se estiverem no promontório errado. Elas inspiram, sim, mas também podem induzir para o abismo ou aprisionar quando se tornam dogmas ou quando ignoram o mundo real em nome de um ideal inalcançável.
Elas permitem imaginar uma escola mais justa, mais humana, mais significativa, e isso é essencial para romper com modelos obsoletos. Mas podem ser uma armadilha perfeccionista, quando se transformam em norma. Deixam de ser horizonte e passam a ser exigência. Isso gera frustração: professores e alunos sentem-se insuficientes por não corresponderem ao ideal. A utopia, nesse caso, deixa de ser libertadora e torna-se opressiva, como bem alerta Joaquim Machado de Araújo, ao defender que é preciso “elogiar a imperfeição” e reconhecer os limites éticos de qualquer projeto utópico.
Que ela permita sonhar com uma escola melhor, sem exigir que todos a alcancem da mesma forma ou ao mesmo tempo.
Ou como escreveu Adalberto Dias de Carvalho: “A utopia educativa não é um lugar a alcançar, mas uma tensão a manter.”
A escola, como estrutura, quer provar que funciona. Mas essa prova raramente vem da escuta autêntica ou da adaptação às necessidades reais. Vem de relatórios, rankings, exames padronizados. E aí, quem não se encaixa, é visto como falha quando, na verdade, pode ser sinal de que o sistema precisa de evoluir.
Sem prescindir, a escolaridade obrigatória até aos 18 anos em Portugal, ou até à conclusão do 12.º ano, é muitas vezes apresentada como um direito universal, mas na prática pode funcionar como um imperativo normativo, quase dogmático.
A ideia de que todos devem seguir o mesmo percurso escolar até determinada idade ignora: as diferenças individuais de maturidade, vocação e contexto social, a possibilidade de que alguns jovens, aos 15 ou 16 anos, já tenham uma clara inclinação para uma profissão ou área técnica, a frustração que muitos sentem por estarem “presos” a um sistema que não reconhece o seu potencial fora da lógica académica tradicional.
Talvez o sistema devesse reconhecer precocemente talentos e vocações, sem estigmatizar quem escolhe caminhos não académicos, oferecer vias técnicas e profissionais mais valorizadas, com saídas reais para o mercado de trabalho, permitir que jovens escolham com liberdade informada, e não por exclusão ou fracasso escolar.
O sistema educativo continua a exigir que todos se encaixem para poder validar-se, como se o sucesso de um jovem só fosse legítimo se passar pelo crivo do 12.º ano. E isso gera um paradoxo: a escola que deveria libertar, acaba por aprisionar.
Talvez o que esteja em falta não seja mais escolaridade, mas mais liberdade educativa. Mais confiança nos jovens, mais respeito pelas suas escolhas, e mais coragem para admitir que o sucesso não tem uma única forma. E longe de mim supor ou imaginar que existe uma intenção no facto de protelar a entrada dos jovens num mercado de trabalho cuja elasticidade vai oscilando, por vezes dramaticamente. Longe de mim suspeitar que o prolongamento da escolaridade obrigatória não serve apenas fins educativos, mas também, ou principalmente, responde a lógicas económicas e sociais mais amplas.
O mercado de trabalho não está preparado para absorver jovens em massa, sobretudo sem qualificações específicas ou sem experiência. E aqui entra a minha provocação: não será conveniente, para o sistema, manter os jovens “ocupados” na escola enquanto o mercado se ajusta?
Não é absurdo pensar que a escola, além de formar, funciona como amortecedor: Evita que milhares de jovens entrem num mercado saturado e instável. Mantém estatísticas de desemprego mais controladas. Garante que os jovens continuam a ser “ativos em formação”, o que é politicamente mais aceitável do que “desempregados”.
Mas isso levanta um dilema ético: estamos a educar para emancipar ou a escolarizar para adiar?
Talvez a escola devesse ser mais permeável ao mundo do trabalho, e vice-versa. Talvez o caminho não seja encurtar a escolaridade, mas reconfigurá-la: integrar experiências reais de trabalho desde cedo. Valorizar percursos técnicos e profissionais sem estigmas. Permitir saídas e reentradas no sistema educativo com mais liberdade.
A minha crítica não é contra a escola, mas contra a sua instrumentalização mal assumida, escamoteada por uma arquitetura de argumentos que, de facto, em geral, não se verificam e não funcionam.

              Carlos Ricardo Soares

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Que diz Isadora Azur IV

IV

Com voz serena e olhos que não fogem
Isadora Azur diz que
às vezes acha que o amor que quer
não pode ser dito.
Há frases que não pedem resposta
apenas bênção.
Que se guardam
não como segredo
mas como coisa que ainda está a ser revelada.
Não sabia por quem esperava
e talvez nem esperasse por alguém
talvez esperasse por uma história que a incluísse.
Frases sem destinatário
mas cheias de tom.
Porque para ela
se o amor não podia ser dito
talvez pudesse ser ensaiado.
Como fazem os poetas.
Como fazem os loucos.
Como fez Quixote
que amou antes de saber se era possível.

          Carlos Ricardo Soares

segunda-feira, 4 de agosto de 2025

Que diz Isadora Azur II

II

Isadora Azur não se move por cortesia ou curiosidade

mas porque a poesia a convoca com verdade suficiente

para não querer sair:

“Há histórias que julgamos ler de fora

mas sem pedir licença elas passam a escrever-se por dentro.

Hoje acordei e percebi que já não sou leitora.

Sou personagem.

Mesmo que o enredo não saiba onde termina

há beleza em saber que, por um instante,

a ficção deixou de me proteger

porque começou a tocar-me.”

                                              Carlos Ricardo Soares

 


quinta-feira, 31 de julho de 2025

Que diz Isadora Azur V

V

Isadora Azur diz que
Aldonza não era a camponesa
que sonhou ser Dulcineia.
Era espelho.
Era gesto reconhecido num mundo que
insistia em pedir prova antes de conceder afeto.
Encontrou em Quixote não a loucura
mas a possibilidade:
“alguém que vê beleza onde o mundo só oferece poeira.”
“Se sou Aldonza
não me salvem
Olhem-me.
Mas vejam-me com a lucidez de quem escolhe delirar
com consciência.”
“Que me vejam como quero ser vista.
E que eu veja no amor
mais do que uma armadura.”
O amor que imaginava não era urgência
era investigação.
Isadora Azur não se iludia com heroísmos.
Sabia que o amor pode ser castelo ou vento
mas ela procurava quem soubesse habitar a hipótese
mesmo que fosse só por uma página.

                    Carlos Ricardo Soares

quarta-feira, 30 de julho de 2025

Que diz Isadora Azur III

 III

Isadora Azur diz que 
às vezes sonha 
com um abraço 
que não seja fotografável.
A vida, para ela, não é palco, é coreografia.
E ela dança com precisão.
O que está em redor não diz quem ela é
reflete quem ela sabe ser
Não está à procura de salvação interior.
Basta-lhe honrar o mundo com
A sua melhor versão
Vivendo a superfície como essência.
“Dizem que sou rasa 
Mas a profundidade deles parece um pântano.
Eu prefiro a superfície que a luz toca
Onde cada gesto é limpo
E cada contorno tem nome.”
Ela não é vazia
É cheia de forma
A desordem do mundo não a contamina.

Carlos Ricardo Soares

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Que diz Isadora Azur I

I

Como quem inicia o erro necessário

que a fará existir para além da beleza ideal

diz Isadora Azur

Já não me preservo na distância

na forma que não se toca

no gesto que não falha

fui templo mas não peregrina

o ideal foi meu modo de ordenar o caos

amar sem tocar foi o dom

que me protegia da vulgaridade

mas agora pressinto o custo do sublime

ele exige que eu seja escultura

que negue o tremor que me faria humana

quero que me desejem

não para possuir-me

mas para que eu exista fora da projeção

se o desejo me quebrar

que seja com poesia

que me quebre.

(Isadora Azur já não teme a manipulação emocional

porque prefere a vulnerabilidade

à perfeição sem resposta).

         Carlos Ricardo Soares

sexta-feira, 11 de julho de 2025

À distância que convém


Tudo deve ser visto

À distância que convém


A noite não acoita as luzes

Mas oculta os movimentos

Da maré a subir

E as estrelas cintilam

No escuro

Que é onde se podem ver


Por mais que nos separe

É a distância que torna possível

Olhar para um abismo

Que fica do lado de fora

Sem deixar de estar

Lá dentro

No interior de nós.

Carlos Ricardo Soares

segunda-feira, 23 de junho de 2025

Aqui jaz um homem que tinha razão


Vi-vos passar

com os olhos cheios

de luzes

e as mãos quase sempre ocupadas

por objetos

ofuscados por promessas

alheios ao esplendor dos grifos

e das águias nas alturas

planando sobre o eco dos vales

e a sombra das suas asas

projetada pelo sol nos rios

ninguém vos culpe por não verdes

o mundo

ensinou-vos a correr antes de olhar

mas aqui debaixo desta pedra

onde já não corro nem quero

não me interessa ter razão

nem espero que alguém

algum um dia

pare para levantar os olhos

e a seus pés

neste lugar esquecido

acenda uma vela

e deixe uma luz

a tremer

entre o que foi dito

e o que ficou por dizer.

              Carlos Ricardo Soares

terça-feira, 17 de junho de 2025

Servidões voluntárias, involuntárias e sujeições


O ser bom ou mau é um problema de valoração ética, moral, ou simplesmente de sobrevivência. O ser ideológico, por si só, não colocando qualquer problema, não pode ser bom nem mau. É como uma coisa qualquer, uma pedra, um fruto, uma estrela, o Big-bang. Ideológico é da natureza da cultura, do humano. A linguagem é ideologia, ou está impregnada de ideologia. Ideologia é a matéria prima de algo que não consegue esconder aquilo de que é feito. O ser ideológico é como ser oxigénio. A ideologia, como o oxigénio, está em toda parte, invisível, mas essencial. Nós vivemos, pensamos, amamos, julgamos e agimos dentro de atmosferas ideológicas.
E assim como o oxigénio pode ser vital ou tóxico, dependendo da dose e do contexto, as ideologias também podem nutrir ou envenenar. Uma ideologia pode inspirar justiça e liberdade, ou aprisionar em preconceitos e desigualdades.
Talvez o mais importante seja ganhar consciência do ar que respiramos, ou seja, desenvolver um olhar atento sobre as ideias que naturalizamos e sobre aquelas que poderíamos reinventar.
O que faz a diferença é a nossa ideologia não se compatibilizar com as outras e não sermos capazes de conviver e de conciliar a nossa visão com a visão dos outros. Este problema costuma consistir em disputas por poder, porque ideologias não são apenas ideias. Elas moldam políticas, instituições, privilégios.
Se não temos forma de demonstrar que a nossa ideologia deve prevalecer, então devemos aceitar, no plano da ação política, uma negociação. Não no sentido de ceder princípios, mas de reconhecer que, num mundo plural, o convívio exige escuta, mediação e construção coletiva. A política vive da arte do possível.
Como dizia Norberto Bobbio, a democracia não é o regime da verdade absoluta, mas o da convivência entre incertezas.
À primeira vista, pelo que significa educar (“fazer sair” ou “conduzir para fora”, do latim educare, ligado à ideia de cultivar, desenvolver, orientar. Não é só transmitir conteúdo, mas despertar potência, revelar possibilidades que ainda não floresceram) a educação acontece numa dialética complexa entre aquilo que é e aquilo que deve ser, sem esquecer que este dever-ser está em constante reformulação. O que, ontem, devia ser, hoje pode já ser diferente, no entanto, o que foi não pode ser modificado, assim como muitas das suas consequências e efeitos.
Pensar em que deve consistir a educação é, no fundo, pensar no tipo de ser humano e de mundo que queremos cultivar.
Que horizontes poéticos e políticos seremos capazes de abrir com a trangalhadança horrível das bombas a demolir e a incinerar o resultado de todos os nossos esforços? Que poema seremos capazes de escrever quando o chão treme? Que poema podemos salvar do apocalipse? O que resiste? O que diz “estamos aqui!”?
 São cruciais e várias as questões levantadas, no artigo e nas referências a Étienne de La Boétie, que viveu tempos de grande conflitualidade que lançavam as bases do exacerbar do absolutismo e cujas preocupações acerca da tirania eram, sobretudo aos olhos do observador posterior, sintomáticas.
Vou focar a minha intervenção em dois ou três problemas, desde logo, o problema da servidão voluntária, algo de contraditório no plano da lógica de uma liberdade teórica e abstrata, mas em linha com a realidade da liberdade possível, ou a melhor possível. Um dos equívocos mais perniciosos ao entendimento das relações do indivíduo (cidadão ou não) com estruturas grupais, sociais, coletivas, estaduais, ou mesmo particulares, é supor a natureza contratual, voluntária (livre e esclarecida) dos vínculos.
O valor da liberdade, num mundo em que o indivíduo se confronta necessariamente, ou inevitavelmente, com outros, reside na sua capacidade de estabelecer um preço para essa liberdade. Ou, se quisermos, a liberdade tem um preço que nem todos podem pagar. Podemos gritar aos quatro ventos que a liberdade é inegociável, que é um valor indisponível, mas isso não altera o facto de que a liberdade tem um custo. Quanto a saber quem suporta esse custo, umas vezes quem o “paga” fá-lo à custa dos outros, mas o importante é que seja pago.
A servidão voluntária, nos tempos atuais, designa-se eufemisticamente por contrato social ou contrato de trabalho, ou sistema de reciprocidades (trocas) de interesses políticos e civis.
Saber a partir de que ponto ou momento de necessidade é que um indivíduo se dispõe, voluntariamente, a aceitar uma servidão é, certamente, diferente de saber a partir de que ponto ou momento de necessidade é que um indivíduo se dispõe a “comprar” essa servidão. Quem “compra” a servidão não está nem se coloca em servidão voluntária, ao contrário de quem “vende”. Mas isto é nos casos em que podemos falar de negociação, contratualização, da servidão. Quando se trata de relações, por exemplo, com o Estado, o problema assume outros contornos. E é legítimo (será?) questionar se e até que ponto o indivíduo tem o direito de prescindir do Estado e de, independentemente disso, ser respeitado. Aqui, a voluntariedade da servidão, ou da sujeição, é mesmo uma fantasia.
 De qualquer modo, choca-me muito mais a servidão voluntária dos que se acolitam e, afobadamente, se prestam a servir estruturas de poder ditatoriais e não democráticas, ou piores, investindo-se e envergando as prerrogativas de senhores, apesar de o fazerem com sentido de servidão, tanto mais repugnante quanto menos se questionam e mais se atropelam para conseguirem as prerrogativas que não desdenham designar, com falsa modéstia, de servidão. Estou a pensar em todos aqueles que, de bom grado e sem sentido de responsabilidade se alienam ao cumprimento de ordens, venham de quem vierem, desde que sejam ordens de quem pode e que seja preferível, na economia das servidões humanas, servir ordens do que ficar-lhes sujeito, porque há sempre nestes casos algum grau de escolha, entre servir uma lei injusta ou lutar por um direito. Mas para estes a questão do direito já resolveu tudo na origem da sua formação.
Não se sentem responsáveis, até porque, para eles não faz sentido falar de direito que não seja lei. Dirão “o direito não é uma questão nossa”, e di-lo-ão tanto mais convictamente quanto mais se sentirem privilegiados e satisfeitos na sua servidão.
Os tais para quem a liberdade é um problema dos outros, pelo menos enquanto o for apenas dos outros. E servem tanto melhor quem mais poder detiver. Aliás, quanto mais fiéis forem a esse poder, pelo qual não se sentem responsáveis, mais zelosos se consideram.
 Daqui passo para o problema dos valores e da universalidade de certos valores éticos. O que é que faz com que algo seja correto ou incorreto, se não for a norma?
Esses são daqueles para quem o assassínio de inocentes só é crime se houver uma lei que o diga. E são os mesmos que declaram não saber o que é uma lei injusta. E que não sabem nem aceitam razões para se lutar contra uma lei.
E há aquela questão dos valores serem ou não serem construídos pelas crianças e pelas pessoas, em geral. Diria que os valores normativos não dependem, na sua formulação e na sua vigência, de ninguém em particular. 
Já a valorização e a avaliação, ética, jurídica, moral, de convivência, que cada indivíduo faz, desde a infância, incluindo a avaliação das próprias normas expressas, é algo inevitável, desejável e que deve ser promovido se a nossa perspectiva for aquela que favorece uma “servidão” mais livre e mais esclarecida, em todas as situações em que não seja possível escapar-lhe, como acontece na “sujeição” ao Estado.
Nascemos e crescemos num ambiente cultural e social de relações de servidão, em que estas, algumas vezes, se apresentam como vantajosas. Os indivíduos, normalmente, anseiam, desde muito cedo, e competem entre si, até no mercado de trabalho, por servidões que são vistas como meios de obter alguma liberdade, como é a que resulta de um trabalho retribuído, de envergar uma farda, obter uma classificação, ganhar uma medalha. Nestes casos, servir é preferível a, simplesmente, estar desmobilizado, ou desempregado, que é uma forma de sujeição, ainda mais gravosa do que, por exemplo, a mera sujeição ao Estado.
Mas retomando as questões de ética, de fé e de religião, analisá-las filosoficamente, ou como meros problemas sociológicos, representa desafios diferentes com resultados diferentes, ainda que complementares. Baseando-me na minha experiência e nas minhas percepções, as pessoas funcionam, e comportam-se, muito pragmaticamente, mesmo quando praticam uma fé ou uma religião e, no que respeita à ética, também serão raros os casos em que alguém entende e pratica uma ética que seja contrária aos seus interesses. Até pessoas muito devotas, e não só guardiões dos costumes, tendem a ignorar completamente as razões que subjazem aos seus hábitos, por vezes escrupulosos, de se posicionarem no observatório que para si próprios reclamam. Vão à missa mas não querem saber de evangelhos, nem de Deus, vão aos tribunais mas não querem saber de leis, nem de direito, vão à escola mas não querem saber do que lá se trata, dão-lhes uma arma e disparam sem saberem contra quem, participam nas procissões mas não querem saber de bíblias, falam mas não querem saber de dicionários, cantam e dançam mas não querem saber de música. É tudo na ótica do utilizador. Mas, por mais dissecável e compreensível que seja esta realidade, é inquietante e um tanto fictício tentar encontrar outra ordem nisto que não seja a do consumidor (de todo o tipo de produtos, inclusive culturais).
Só por si a servidão, e mesmo a escravidão, não são negativas, quer na perspectiva do indivíduo, quer na perspectiva social e ético religiosa, dependendo do “senhor” a quem se serve e do que é servido. Ser escravo da virtude é uma forma de liberdade que alguns proclamam como a verdadeira liberdade, justamente por ser voluntária, mas é duvidoso que dispense ou libere o indivíduo de outras servidões sociais, quiçá mais comezinhas.
Quando se nasce e se cresce e se vive em democracia, mais ou menos ampla e efetiva, perde-se um pouco a perspectiva daquilo que seria nascer, crescer e viver em ditadura, em que, não apenas a sujeição do indivíduo ao poder do Estado seria mais severa, como as servidões, em geral, seriam menos voluntárias e as mais voluntárias também seriam ética e moralmente condenáveis.
Quando se nasce e se cresce e se vive em democracia, mais ou menos ampla e efetiva, a perspectiva da cidadania, por outro lado, corre risco de não ser perceptível por aqueles que não são chamados a indagar e a responder acerca da relação que o indivíduo mantém com os outros e com o Estado, porque nem sempre o indivíduo equaciona quanto o seu estatuto é devido aos outros e ao Estado, ainda que, em alguns casos, os outros e o Estado lhe devam mais do que têm a haver.

                            Carlos Ricardo Soares
"Se gostaste deste texto, partilha com alguém que também gosta de pensar devagar.”