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segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Ao serviço da Humanidade


Não é utopia pensar numa sociologia que supervisionasse com métodos e técnicas científicas o comportamento do "animal mundo", tendo em conta tudo o que se sabe, quer da sua anatomia, quer da sua fisiologia, quer da sua teia neurológica e, sobretudo, da sua sintomatologia, terapêutica e educação comportamental.
Uma sociologia como clínica do “animal mundo”, vestida de bata e estetoscópio, diante de um paciente vastíssimo que é a humanidade em estado febril.
Seria mais do que ciência social, seria uma epistemologia do cuidado sistémico, que não se limita a descrever comportamentos, mas os lê como sintomas de desequilíbrios mais profundos, ecológicos, afetivos, culturais, políticos. Tal como um bom médico não se contenta com a febre e vai buscar a inflamação oculta, essa sociologia investigaria não só o visível, mas os desvios do mundo em sofrimento.
Seria um saber que articula anatomia social (as estruturas, instituições, classes, normas, o esqueleto das sociedades), com fisiologia cultural (os hábitos, os ritmos, os fluxos simbólicos que mantêm o corpo social vivo), com teia neurológica coletiva (os sistemas de informação, de crença, de memórias e de afetos que ligam uns aos outros), com sintomatologia histórica (as crises, os colapsos, as revoltas, os avisos de que algo está fora do lugar), com terapêutica crítica (os projetos de transformação, de reorganização, de restituição do equilíbrio) e com educação comportamental para a cidadania (as práticas de formação para a convivência lúcida e justa).
Uma sociologia que não apenas explica, mas que cuida com lucidez das coisas públicas, do mundo numa perspetiva mundial, tratando-o como um organismo em crise e em potência. E talvez aí a razão da sociologia encontre a sua razão de ser: não apenas ver, não apenas descrever e relatar, mas intervir com propostas de terapêuticas; não apenas constatar, saber, mas avaliar o estado de saúde do animal e procurar regenerar.
Num tempo em que tudo, até a tragédia, é mercantilizado como oportunidade, a sociologia seria uma espécie de consciência, o “deus laico” que cuida de todos enquanto cada um cuida de si; a instância paciente que não julga os impulsos, mas os interpreta, que não governa, mas compreende e, por isso mesmo, sustenta a possibilidade do cuidado. Não como cura mágica, mas como acompanhamento lúcido.
Seria a inteligência voltada para promover e preservar a dignidade coletiva. Um saber como colocar a cultura e o progresso em subordinação, e ao serviço, dos seres humanos e não como fins em si mesmos ou fins a que os humanos se devam sacrificar. Isto seria uma inversão dos valores e uma negação do sentido da ética.
Num mundo em que a pressa substitui o critério e o número faz as vezes da verdade, há uma forma de saber que não grita com o furor e a vertigem das máquinas, que perscruta mais fundo, dentro do próprio movimento, até onde a sonda da razão nos devolve a música da inteligência e da harmonia tão preciosas e tão necessárias a um verdadeiro progresso que é a humanização ética, estética, moral, que não deve ceder à vertigem desenfreada das sociedades industriais que, muitas vezes, instrumentalizam o humano para fins não humanos e contrários aos humanos.
Essa forma de saber pode chamar-se sociologia, não como oráculo, nem para redimir o mundo de ser mundo, mas para compreendê-lo, enquanto ele se move entre ruínas e renascimentos.
Ela pode ler o corpo inteiro da espécie, incluindo os algoritmos, e examinar, auscultar, interpretar. Não para prescrever remédios milagrosos, mas para oferecer uma coisa raríssima, o contexto.
E quando se confunde opinião com dado, urgência com verdade, emoção com diagnóstico, é preciso que ela faça o que poucos querem fazer: medir a febre e, então, talvez, sugira que o mundo não está apenas doente, mas em surto. E que o surto tem história.
Esta razão da sociologia não é idealista, e o mundo não se comove com bons argumentos. A razão, sozinha, não muda o curso da história. Mas, sem razão, nenhuma mudança dura mais do que o instante do medo ou do poder.
Por isso ela insiste, mesmo exausta, mesmo ignorada, mesmo ridicularizada, ela insiste em nomear o que parece normal, porque só nomeando é possível escolher e, só escolhendo, é possível responsabilizar.
E talvez seja essa a verdadeira força, o verdadeiro poder. Num planeta que corre e salta para fora do mapa, ou mesmo sem mapa, uma sociologia que oferece uma bússola, não para indicar para onde ir, mas para sabermos onde estamos. E se soubermos onde estamos, talvez, só talvez, possamos começar a cuidar e a colocar as fórmulas e o heroísmo ao serviço da lucidez.

              Carlos Ricardo Soares


domingo, 2 de novembro de 2025

Literacia financeira nas escolas: educação ou condicionamento?

A literacia financeira é algo que, em teoria, nunca é de mais, como qualquer literacia. Não é por aí que os zelosos promotores desta campanha deixam de ter razão. Mas é por isso mesmo que a nossa desconfiança deve ser total, quer quanto às intenções, quer quanto ao discurso, quer quanto aos meios. A primeira posição de princípio, ou cautela, relativamente a quem nos quer ajudar, entenda-se oferecer vantagens, é procurar saber que interesse têm nisso.

Quanto maior for o interesse de quem nos quer oferecer vantagens maior deve ser o nosso cuidado. A razão é simples, mas, na prática, toda a nossa educação e toda a nossa linguagem é um processo de sedução, de persuasão, de coação, de intercâmbio, de partilha, de interação, em que nada é neutro, em que o interesse está sempre presente e pode ser provocado. Não é apenas nos negócios formais e sinalagmáticos que esse comércio se exerce. Não é apenas nas promessas e nos acenos, ilusórios ou não, que o marketing, essa ciência poderosa, faz o seu caminho.

Pudéssemos nós usar o marketing em nossa defesa como ele é usado para nos atacar. Este é o cerne da questão. O marketing não é uma tentativa de educar e de ensinar seja o que for. É uma prestidigitação que visa fundamentalmente condicionar comportamentos. E isto não é inócuo. Ninguém se daria ao trabalho e à despesa de nos condicionar porque sim. As “literacias para”, todas elas, têm em comum um programa de motivações e de objetivos explícitos e expressos que se respaldam nas razões gerais e incontestáveis que referi acima.

Mas as motivações e objetivos implícitos de um programa, seja de educação, de ensino, ou de marketing, também pelo que já referi, devem ser colocadas como alvo de análise de primeira linha. O que é expresso, ou explícito, até com exuberância, deve servir-nos como sinal de alerta para o que está a ser ocultado. No fundo, o mecanismo de venda e de persuasão é tão natural e tão familiar, que não conseguimos descortinar facilmente razões para não ser assim, até porque nos fazem sentir como beneficiários, reis e senhores da nossa escolha.

Por outro lado, ainda nos podem acusar, se necessário for, de que fomos vítimas da nossa estupidez, ignorância, ganância, ou mesmo astúcia, quando não reserva mental. No fim de contas, não estamos livres do mecanismo de responsabilização injusta, onde o cidadão é culpado por não ter resistido àquilo que foi desenhado para o seduzir.

               Carlos Ricardo Soares

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Uma ilusão produzida pela falta de qualquer coisa

Para mim, a escrita, como atividade livre e voluntária que pratico desde a infância, entre a curiosidade, a surpresa e a crença de que o mundo e as relações sociais estão edificados e funcionam com palavras e pelas palavras, cujo poder e efeitos era sensível e perceptível a cada momento, sempre a requerer verbalização, sempre perscrutado e escrutinado por representações e discursos oficiais, que condicionavam e determinavam cada escolha e até os sonhos e as fantasias mais privados, tornou-se uma forma de organizar e de ordenar, em profundidade, um mundo em que a oralidade, só por si, funcionava mais como máscara e mecanismo de cumplicidades e de reforço de lugares comuns implícitos e de estereótipos tácitos, que me deixava invariavelmente sem respostas, até porque, não era o lugar das perguntas, ou de certo tipo de perguntas.
A constatação, ou a descoberta de que, ao verbalizar os pensamentos, as ideias, as representações, fosse de que modo fosse, descrevendo, argumentando, imaginando, meditando, analisando, não estava apenas a organizar e a ordenar as coisas segundo uma ordem preexistente que eu desconhecia e que supunha ser função da escrita encontrar, surgiu muito tarde. Essa descoberta revelou duas curiosidades: o processo de conhecimento é condicionado por prejuízos de que podemos não estar conscientes e, mesmo assim, não ser afetado nos seus resultados. 
Embora eu estivesse a ordenar e a organizar as coisas segundo vetores e sentidos e significados que encontravam acolhimento e virtualidade significativa na ordem dinâmica e instável, nunca estabelecida, dos discursos acerca da realidade, o que eu estava a fazer era o meu próprio ordenamento do mundo, a minha inteligibilidade, mesmo quando escrevia a pensar que estava a falar da ordem do mundo, ou de uma suposta ordem das coisas. 
E quem me lia, provavelmente, também faria o mesmo, sem pensar que, no ato de leitura, o que estava a acontecer era a inteligibilidade do leitor, o seu próprio ordenamento das coisas.
Talvez não haja uma forma simples de dizer “tenho a noção daquilo que te estou a dizer, mas não sei o que estás a ouvir”, ou “sei o que estou a escrever, mas não sei o que estás a ler”.
A partir de certa altura, comecei a perceber que a linguagem, sobretudo a poesia e a ficção, tinha um poder de enfeitiçar que deslocava o interesse da linguagem como instrumento de descoberta de uma ordem preexistente e de uma inteligibilidade intrínseca, ou seja, a linguagem como estrutura depositária da verdade a descobrir, para o interesse da linguagem como forma de inventar representações e de dizer, não o que eu, de algum modo, queria dizer, mas aquilo que a linguagem podia dizer. Era a estranha sensação de estar a ser conduzido, estar a ser levado, em vez de conduzir, de submeter as palavras.
A diferença entre instrumentalizar as palavras e ser instrumentalizado por elas, não é fácil de discernir, mas sente-se, sobretudo quando elas deixam de ser nossas aliadas e se tornam nossas inimigas. 
O poeta começou a perceber que há um ponto a partir do qual se pode dizer que estava a vender a alma ao diabo a troco de nada, porque este nunca pagava o prometido. Nessa altura, percebi claramente que as palavras e a escrita podem criar dependências semelhantes às das drogas e que, embora tudo e todos encorajem a cultivar as letras, partindo do princípio de que essa atividade é salutar e promova equilíbrios e sabedoria para uma vida de plenitude, de realização física e psicológica, podia levar ao esgotamento e ao vazio se, em vez de nos colocarmos em primeiro lugar, nos sujeitássemos a sacrificar a saúde em busca de efeitos literários, por mais surpreendentes e notáveis que fossem.
E pareceu-me irrecusável e indiscutível que nenhuma obra literária, por mais excitação e emoções que me trouxesse, merecia que lhe sacrificasse a minha saúde e a minha vida. Algo estava errado na poesia se ela era a promessa de algo que acabava por ser a sua negação e o seu contrário. 
Algo estava errado quando o poeta não era a personificação da poesia, se a vida do poeta nada tinha de poético por causa de a ter sacrificado à poesia.
Então disse à poesia e à linguagem em geral “não te vou dar o que requeres e me exiges, tu é que vais ter de me dar o que quero de ti”.
E foi assim e tem sido assim que me recusei a ser um catavento à espera de ser soprado por uma ilusão maior do que a ilusão da realidade. 
Sim, a realidade pode ser, e é frequentemente, uma ilusão produzida pela falta de qualquer coisa, conhecida ou desconhecida. Mas que não seja o que me falta quando apenas tenho essa coisa.

                      Carlos Ricardo Soares

domingo, 19 de outubro de 2025

O viés de confirmação - A crítica começa onde a linguagem vacila

O viés de confirmação é um dos mecanismos cognitivos mais estudados na psicologia e nas ciências sociais. Eis alguns pontos que merecem destaque:

1- O cérebro como mestre da economia cognitiva. A ideia de que o cérebro “engana” pode ser provocadora, mas é metaforicamente eficaz. O cérebro privilegia atalhos mentais (heurísticas) para lidar com a sobrecarga de estímulos e decisões. O viés de confirmação é um desses atalhos, ele reduz o esforço cognitivo ao evitar o confronto com informações dissonantes.

2 - Como o viés opera? Procuramos, interpretamos e lembramos informações que confirmam nossas crenças prévias, ignorando ou desvalorizando as que as contradizem. Isso afeta desde preferências de consumo até convicções políticas, religiosas ou morais.

3 - Amplificação pelas redes sociais. Os algoritmos reforçam esse viés ao personalizar conteúdos com base em interações anteriores, criando bolhas epistémicas. Essas bolhas podem gerar polarização, dificultar o diálogo e cristalizar identidades em torno de certezas não examinadas.

4- O valor da dúvida. Mas há antídotos: consciência crítica, exposição deliberada à diferença, e o exercício da pergunta “E se eu estiver errado?”. É um gesto filosófico, ético e democrático que abre espaço para o pensamento dialógico, para o reconhecimento da alteridade e para a revisão de pressupostos.

A escuta ativa e o questionamento são formas de liberdade.

Assim sendo, quanto mais estivermos confirmados naquilo que pensamos, e isso é particularmente verdadeiro para o mundo académico e religioso e político-partidário, mais improvável é que exerçamos a consciência crítica. Esta inferência é sólida e profundamente inquietante.

Quanto mais investidos emocional, identitariamente ou institucionalmente, numa crença ou sistema de pensamento, mais difícil se torna questioná-lo de forma crítica. Isso não significa que seja impossível, mas que há forças cognitivas, sociais e afetivas que resistem à dúvida.

Por que é que a confirmação dificulta a crítica?

1 - Identidade e pertença. Em contextos académicos, religiosos ou político-partidários, as crenças não são apenas ideias, são marcadores de identidade. Questioná-las pode parecer uma ameaça ao sentimento de pertença ou à coerência pessoal.

2 - Capital simbólico. Professores, líderes religiosos ou políticos acumulam prestígio com base em certas convicções. Mudar de posição pode parecer perda de autoridade ou traição ao grupo.

3 - Ambientes de reforço. Instituições tendem a recompensar a conformidade e punir a dissidência, mesmo que subtilmente, através de exclusão, desvalorização ou silêncio.

O paradoxo da crítica institucional:

4 - O mundo académico, por exemplo, valoriza a crítica, mas muitas vezes reproduz dogmas teóricos ou modas intelectuais que se tornam intocáveis. 

5 - O religioso, que deveria cultivar o mistério e a abertura ao transcendente, pode cristalizar-se em doutrinas que confundem fé com certeza. 

6 - O político, que deveria ser espaço de negociação e pluralismo, frequentemente polariza posições e transforma adversários em inimigos.

Como cultivar consciência crítica mesmo dentro de sistemas fechados?

Praticar o deslocamento. Ler autores fora do próprio campo, ouvir vozes marginais, experimentar o desconforto da alteridade. Dramatizar o pensamento. Encenar o conflito entre vozes, deixar que o texto se torne palco de negociação ética. Interrogar a linguagem. Toda a certeza se expressa por palavras e toda a palavra carrega ambiguidade. 

A crítica começa onde a linguagem vacila.

  Carlos Ricardo Soares


terça-feira, 14 de outubro de 2025

Aproximações à verdade XLVIII

Amiga: se fores a minha sombra, então és feito da mesma luz que me revela.

Hilário: ou talvez da escuridão que me protege do excesso de claridade.

Amiga: há sombras que abraçam melhor do que braços.

Hilário: e há silêncios que dizem mais do que todas as palavras que ousámos não dizer.

Amiga: este lugar parece suspenso entre o que fomos e o que ainda não sabemos ser.

Hilário: como se o tempo aqui não passasse, mas nos atravessasse.

Amiga: e se a águia ou o grifo nos observava, reconhecesse em nós o seu impulso de voo?

Hilário: ou a mesma hesitação antes de abrir as asas?

Amiga: a rocha pontiaguda continua a apontar para o infinito que, agora, parece menos distante.

Hilário: talvez porque o infinito não seja longe, mas dentro.

Amiga: e se for dentro, então já lá estamos, ou, pelo menos, já o tocámos.

Hilário: e talvez seja por isso que o moinho escuta. Porque há histórias que só se contam quando o vento para.

Amiga: e há encontros que só acontecem quando deixamos de procurar, como este, como nós, sem o sentido dos passos que ainda não demos.

Hilário: mas há encontros que não interessam. Que não nos encontrem antes de estarmos prontos.

Amiga: que não sejamos encontrados por aquilo de que somos fugitivos.

Hilário: fugitivos, mas que deixamos rastos.

Amiga: e há rastos que são convites, não despedidas.

Hilário: como este lugar, que parece ter estado tanto tempo à nossa espera.

Amiga: ou talvez tenha sido desenhado, concebido, por nós, sem o sabermos.

Hilário: a águia, ou o grifo, talvez tenha pousado aqui por isso.

Amiga: porque há sítios que só existem quando alguém os deseja e os contempla.

Hilário: e há contemplações que criam mundos.

Amiga: como este. Como nós.

Hilário: como se ganhássemos a forma do que criámos.

        Carlos Ricardo Soares

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Aproximações à verdade XLVII

Hilário: as águias e os grifos habitam os lugares mais altos.

Amiga: como nós, agora, aqui, a invadir o espaço deles.

Hilário: é isso, a águia estava ali pousada para tentar proteger, talvez o ninho.

Amiga: águia ou grifo, não sabemos, mas pousam sempre onde podem ter a melhor perspectiva

Hilário: grande ideia a tua, agora que já se foi para outro lugar, vamos lá ver se descobrimos a razão pela qual pousou ali, naquele ponto.

Amiga: afinal ainda temos mundo para explorar.

Hilário: guiados pelas águias.

Amiga: ou grifos, não sabemos.

Hilário: o céu está tingido de cinza e cobre. O moinho permanece imóvel, como se escutasse o que dizemos.

Amiga: à medida que avançamos em direção ao sítio do grifo, ou da águia, o moinho vai ficando mais ao fundo, envolto em sombra.

Hilário: esta luz suave, quase crepuscular, parece emanar dos teus olhos.

Amiga: eu digo que emana das tuas palavras.

Hilário: não temes ser dissolvida no eco do que pensas?

Amiga: chegamos ao sítio em que avistamos o grifo, ou a águia, pousado a observar-nos. Reparei nesta rocha pontiaguda que aponta para o infinito.

Hilário: daqui podemos ver um pouco daquilo que essa ave enigmática via.

Amiga: os nossos olhos têm um alcance muito mais reduzido e, quanto à mente dessa ave, espero que nos seja favorável dando pistas como a que nos trouxe a este ponto.

Hilário: aqui o tempo chama de volta ao que nunca deixou de ser.

Amiga: a minha avó apontava para o topo das montanhas e dizia que quem chegasse ali não poderia regressar.

Hilário: onde estavas quando a tua avó disse isso?

Amiga: estava com ela, a tentar chegar aqui, ao topo das montanhas.

Hilário: não há começo sem perda, nem fim sem memória. Agora estamos aqui, onde ela almejou chegar, mesmo sem saber o que isto seria.

Amiga: aqui a memória e a liberdade não servem para nada e nisso a minha avó estava certa. Ninguém pensa em liberdade numa ilha em que não há mais ninguém.

Hilário: gosto muito de ti, mas não é para abusares. Aqui, ninguém está sozinho. Ou por acaso serei eu a tua sombra?

     Carlos Ricardo Soares

 


domingo, 5 de outubro de 2025

Aproximações à verdade XLVI

Hilário: se o moinho falasse, o que nos diria?!

Amiga: assim o soubéssemos interpretar, porque ele é um documento que fala à maneira dos documentos.

Hilário: ele parece dizer que viemos depois, com passos alheios, e que, sem pedir licença, nos sentamos onde o silêncio de outros repousava.

Amiga: talvez depois de terem rido alto ou chorado em segredo, talvez antes de perderem a memória.

Hilário: se houvesse um rascunho da história deste moinho que alguém tivesse encontrado...

Amiga: mesmo escrito por mãos que nunca souberam escrever, quem sabe?!

Hilário: ou rasgado por mãos que nunca souberam ler, quem sabe?!

Amiga: seríamos sempre confundidos com os que passaram por aqui sem entenderem o que é este lugar.

Hilário: a fragilidade está em quem pensa, em quem sente, em quem hesita. O mundo exige pressa e firmeza, depressa e bem, enquanto tu, querida amiga, tentas caminhar com cuidado, não com receio de tropeçar, mas como quem pisa em folhas secas sem querer fazer barulho.

Amiga: sinto que os pensamentos, neste lugar, pesam mais do que os passos, como se estivessem a ser disputados por forças contrárias umas às outras, e cada palavra tivesse de ser arrancada de memórias que são de outras pessoas.

Hilário: talvez aquela águia, ou será um grifo?, esteja a observar-nos e a ler o nosso pensamento através do nosso embaraço.

Amiga: não sei se sou eu que toco de mais nas coisas, ou se são as coisas que tocam de mais em mim.

Hilário: a mim dói-me não tocar em nada.

Amiga: agora não consigo tirar os olhos daquela águia, ou grifo, que não tira os olhos de nós.

Hilário: talvez nos esteja a ver de outro mundo, ou seja um sinal de que atingimos o limite, a fronteira que separa a vida da morte.

Amiga: como se houvesse fronteira entre o que é e o que já não pode ser.

Hilário: como se este lugar fosse a margem, a última, de algo que não veremos.

Amiga: não sei. Sinto que o tempo aqui parece ter parado para nos deixar pensar.

Hilário: ou para nos deixar partir.

Amiga: mas partir para onde?

Hilário: talvez não seja partir. Talvez seja só deixar de procurar. Ou deixar de fugir.

Amiga: então esse grifo, ou águia, veio dizer que já não precisamos de andar?

Hilário: ou que já não podemos. Que o caminho acabou e o que resta é o silêncio. E que o silêncio, amiga… também é uma forma de estar vivo.

Amiga: ou uma forma de estar quase. Quase…Talvez seja isso que somos: quase a partir, quase a ficar, quase a entender.

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Aproximações à verdade XLV


Amiga: neste lugar, Hilário…Começo a sentir uma estranheza que nunca tinha experimentado. Não sei o que faço aqui. E não quero partir. Não sei se há algum lugar para onde quisesse ir.

Hilário: mas tu sempre foste a que queria ir. Mesmo sem saber para onde.

Amiga: pois. Mas agora…É como se o mundo passado tivesse deixado de me chamar. E este lugar, tão fora de tudo…Parece dizer que não há urgência em continuar a procurar.

Hilário: talvez isso seja o que nos acontece quando paramos. Não é que o mundo desapareça, o barulho dele é que deixa de nos empurrar.

Amiga: mas não saber o que faço aqui…É como estar num palco sem papel para representar. Sem fala. Perante uma plateia cujos lugares vão sendo ocupados por fantasmas.

Hilário: e se for isso mesmo o que nos resta? Estar. Sem papel, sem roteiro, sem pressa. Só estar.

Amiga: mas não é pouco? Talvez os fantasmas desta imensa plateia que avistamos não estejam aqui para nos verem a atuar, mas para ouvirem as histórias do moinho.

Hilário: é pouco para quem quer ser personagem. Mas é muito para quem aceita ser pessoa.

Amiga: talvez os fantasmas desta imensa plateia não estejam aqui porque nos veem, mas porque ouvem.

Hilário: o moinho é só o lugar onde deixámos de fingir que sabíamos o que é liberdade.

Amiga: e talvez seja o primeiro lugar onde isso não nos cobra nada.

Carlos Ricardo Soares


sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Aproximações à verdade XLIV

 

Amiga: e todas estas escarpas a separar-nos do lado de lá, que não vemos, nem sabemos o que é, Hilário…é como se, pela primeira vez, estivesse a olhar para dentro de mim. Sabes o que nos está a acontecer? Estamos perdidos. Ainda não tinha pensado nisso.

Hilário: perdidos? Como quem não sabe voltar? Ou como quem nunca soube para onde ia?

Amiga: como quem andou tanto que esqueceu o porquê. Como quem parou num lugar e só depois percebeu que o destino, afinal, era um desvio para um beco sem saída.

Hilário: talvez este seja o lugar onde os perdidos se encontram. Não para se acharem…
Mas para se reconhecerem.

Amiga: não me atormentes ainda mais. Tudo o que vemos é demasiado poderoso e esmagador. O nosso corpo, para suportar a visão deste lugar, precisava de ter a alma que foi perdendo até chegar aqui. Eu não queria estar perdida. Queria estar a caminho de alguma coisa. Mesmo que fosse só uma fantasia no horizonte.

Hilário: e não terá sido isso que nos trouxe até aqui? A fantasia de que estávamos no bom caminho, mesmo sem sabermos qual?

Amiga: mas agora não há caminho. Só pedra, vento, e este moinho que não nos diz nada. E cada vez tenho mais a sensação de que estamos a ser observados, de que não estamos sós.

Hilário: então talvez estejamos a ser também escutados. Às vezes, ser escutado já é mais do que saber para onde se vai.

Amiga: então somos dois perdidos a conversar com pedras? É isso? Mas eu sinto que as pedras são fortificações onde se escondem feras que não nos temem, que esperaram todo o tempo que foi preciso até chegar o momento de nos atacarem, sem que tenhamos capacidade para enfrentá-las.

Hilário: dois perdidos que ainda conversam. E isso, Amiga… já é alguma coisa.

        Carlos Ricardo Soares

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Aproximações à verdade XLIII

Amiga: não é este o lugar onde estávamos ontem. Quando chegamos e decidimos ficar, não era este lugar, assim tão refugiado, tão inacessível, a dar diretamente para as escarpas, aqui acaba o mundo. Se der um passo em frente precipito-me no abismo. Até aquela águia, ou talvez seja um grifo, que nos observa com insistente curiosidade, não ousa transpor este limite. E ouço o barulho de forte rebentação de mar, mas não vejo mar nenhum.
Hilário: isso é bom ou mau?
Amiga: não sei. Assusta-me. Porque não faço ideia de como viemos parar aqui. Não houve estrada, nem mapa, nem plano. Só andamos em frente e agora estamos num lugar aonde ninguém chega.
Hilário: talvez seja por isso que chegámos. Porque ninguém vem. E nós, sem sabermos, fomos até onde o mundo não olha.
Amiga: mas, e se este lugar for hostil, Hilário? E se for só o fim da linha? Como se o caminho tivesse deixado de nos querer?
Hilário: ou talvez o caminho não tenha vontade nenhuma. Talvez seja como o vento: leva quem se deixa levar. E nós deixámo-nos.
Amiga: mas há algo estranho. Aqui o silêncio não tem fundo. Aqui o tempo não passa, ou passa sem nos contar.
Hilário: talvez este seja o lugar onde o tempo descansa. E nós viemos fazer-lhe companhia.
Amiga: e se ficarmos presos? E se este lugar nos ignorar como o mundo já nos esqueceu?
Hilário: então que nos ignore. Mas que nos ignore juntos. Porque há lugares que assustam menos quando se partilha o não saber.
Amiga: não precisas de delírio, mas aceitas caminhar ao lado dele.
Hilário: talvez isso fosse antes de chegarmos aqui. Quando havia grandeza também em proteger o sonho dos outros.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

O que é acreditar, como saber se alguém acredita e que é que importa?

Vou argumentar, em desacordo de uma crítica que li a declarações do ministro da Educação, em que este dizia "acreditar...", na linha da minha teoria do dever-ser sob cuja égide o homem escolhe, quer se trate de escolhas práticas, quer se trate de escolhas mentais, sendo que, em todas as situações de escolha, em função do processo de pensamento do indivíduo, esta incide na melhor das possibilidades. Estou a falar de ato, humano, consciente, racional, cujo resultado o agente representa antecipadamente para si próprio como efeito ou consequência da sua ação, a qual, insisto, pode ser apenas ação mental, intelectual, como ocorre a maior parte das vezes.
Nas situações em que o indivíduo age por palavras, emitindo um discurso, fazendo afirmações, o que ele representou para si mesmo ao escolher as palavras que escolheu e o que essas palavras significam para quem as ouve, ou lê, dificilmente ou nunca coincidem, desde logo porque não temos acesso a uma objetividade absoluta. Qualquer objetividade será sempre intersubjetiva, porque a percepção do objeto não pode deixar de ser subjetiva. Então, quando passamos para os códigos de comunicação e respetiva descodificação, o desfasamento, entre o objeto e a sua representação, tende a ser o normal.
Feita esta ressalva elementar acerca da possibilidade tácita da objetividade, quer relativamente a um objeto dado, quer relativamente a uma palavra ou uma frase, diria que, tratando-se de afirmações, a maioria das vezes, o que está em causa não é a objetividade, nem a subjetividade, mas o significado, ou os significados, possíveis ou legítimos, em consideração da letra, como não podia deixar de ser, mas muito mais do que isso.
A filosofia ao procurar estabelecer as condições em que um discurso, palavras articuladas intencionalmente por alguém têm significado plausível, ainda antes de averiguar se uma afirmação, mesmo feita por uma máquina, ou um papagaio, é verdadeira ou falsa, aponta a demonstrabilidade e ou falsificabilidade do que é dito como sendo requisito fundamental, ou condição necessária de validade. Ainda assim, pode uma afirmação não satisfazer esta condição e isso não implicar que não seja verdadeira. O que implica é que não pode ser tomada como verdadeira enquanto não for demonstrada (nos casos de necessidade lógica) ou provada (nos outros casos). A ciência vai no mesmo sentido, mas labora num terreno menos movediço e menos formal. Em ciência, falar de verdade formal, ou trabalhar com hipóteses desligadas da realidade física, é um trabalho acessório e complementar, mas não nuclear. Em filosofia é possível construir sistemas coerentes e inteligíveis sobre quase tudo, incluindo o sexo dos anjos. Mas em ciência isso só seria viável se o sexo dos anjos fosse observável.
Esta parte do observável é importante quando se fala de crença e de verdade, entendida como facto e não apenas como verdade lógico-formal. A evidência, quando se trata de algo observável, pode ser analisada em nuances que não coincidem com a evidência da verdade lógico-formal. De resto, a evidência não deixa de ser algo de subjetivo, como acima referi, até porque é algo que ocorre num sistema de percepções e de reconhecimento individual.
Quando se pretende contrapor crença a conhecimento importa reconhecer que o conhecimento, embora não seja uma crença, comporta sempre uma crença naquilo que se torna evidente. É fundamental e imprescindível que o cientista acredite naquilo que os seus olhos veem, nas ferramentas que utiliza, incluindo modelos, e naquilo que o seu raciocínio faz. Mesmo que dessa crença não dependa, em primeira linha, a prova ou a demonstração do resultado.
Fora das áreas em que o verdadeiro/falso, provado/não provado, demonstrado/não demonstrado, impera como condição de validação e de aceitação, existe todo um universo de situações em que os problemas são outros e não é correto abordar essas situações como se elas colocassem problemas de ordem filosófica ou científica que pudessem ser resolvidos pela filosofia ou pela ciência.
Quando o ministro diz que acredita, não temos forma de saber se está a falar verdade. Mais, que verdade seria essa de “é verdade que acredito”, ou “é verdade que acredita”? Não se trata de ser verdade ou falsidade que alguém acredita. O que é verdade ou falsidade é “alguém ter dito que acredita”.
Se o ministro disse que acredita, então é verdade que disse. Quanto ao acreditar, podemos interpretar de muitas maneiras. Eu acredito mais quando me dizem ao telefone que está a chover em Paris, embora não esteja lá para ver, do que acredito em alguém que diz que acredita que todos os alunos podem concluir a licenciatura com excelente aproveitamento. E não acredito nada em alguém que diz que acredita em Deus, embora compreenda que não me está a mentir, porque a mentira e o erro são outras formas de não correspondência à realidade.
Parece-me mais honesto que o ministro diga “acredito”, do que “espero”. Acreditar que é possível atingir determinados objetivos faz todo o sentido dentro de determinados contextos e condições. E esperar que se atinjam, embora seja algo muito diferente, depende muito do acreditar. Ora, o ministro diz acreditar, fazendo questão de pressupor que conhece a realidade a que se refere. E deixa em aberto a expectativa de que tal aconteça.
Certamente, também há os que, conhecendo essa realidade, não acreditam naquilo em que o ministro acredita, mas o não acreditarem não faz deles menos crentes. E não lhes dá margem para terem boas expectativas.

                  Carlos Ricardo Soares

sábado, 13 de setembro de 2025

Aproximações à verdade XLII

Amiga: Hilário, acorda! Ele estava aqui…Dom Quixote de la Mancha! Com lança em punho, aos gritos, a atacar como se o moinho fosse um monstro!

Hilário: disseste lança, D. Quixote? Onde está? Mas que raio se passa? Tu andas a dormir com os livros do Cervantes debaixo da cabeça? Sonhaste?

Amiga: não era só sonho…Era como se o moinho se tivesse erguido contra nós, como se este abrigo fosse, afinal, o inimigo.

Hilário: o moinho está quieto. As pedras não se mexem, o vento não grita. As estrelas inclinam-se sobre nós como testemunhas. Só tu é que acordaste em pé de guerra.

Amiga: mas, e se D. Quixote tiver razão? E se este lugar, que parecia abrigo, for só mais uma ilusão? Como se estivéssemos a esconder-nos do mundo, em vez de o enfrentar?

Hilário: até pode ser que seja isso mesmo. Mas quem disse que temos de enfrentar o mundo todos os dias? Às vezes, parar também é coragem.

Amiga: mas o sonho…Quixote gritava como se o moinho não existisse, como se fosse alucinação. Como se morar aqui fosse desistir.

Hilário: ou talvez fosse só o teu medo a falar com sotaque de cavaleiro andante. Que forma queres dar aos fantasmas?

Amiga: e se for isso? Se este moinho for só mais um disfarce daquilo que não queremos ver?

Hilário: então que seja. Mas agora, ele é o abrigo. Sossega, vamos dormir. Só estamos rodeados de silêncio. E isso já é mais do que muitos têm.

Amiga: e D. Quixote? Será que não volta a atacar pela porta sem ferrolho dos sonhos?
Hilário: ele passa, grita e segue. Nós ficamos. E talvez, só talvez, isso também seja uma forma de andar.

                   Carlos Ricardo Soares

Aproximações à verdade XLI

Hilário: sabes o que sinto, diante deste moinho parado? Que somos dois vagabundos ao vento que sopra devagar. Então este silêncio é como se o mundo se tivesse esquecido de nós.

Amiga: de nós e deste moinho abandonado. Hilário… Acho que podíamos ficar aqui. Este moinho tem tudo: sombra, pedra, vento. Não é castelo, mas também não nos pede nada. Estás a ouvir ou estás a olhar para o céu?

Hilário: ficar? Mas nós nunca ficámos. Nem sabemos por que andamos, quanto mais por que parar?

Amiga: talvez seja isso. Talvez este seja o fim do caminho, ou o começo de outro. Aqui não há ninguém a mandar, nem ninguém a esperar. Podíamos chamar-lhe casa.

Hilário: casa?…Tu sempre foste boa a ver abrigo onde eu só vejo ruína. Mas e o resto? E o que nos trouxe até aqui?

Amiga: e o que foi, Hilário? Sabes dizer? Alguma missão? Algum plano? Ou só o hábito de andar, como quem foge sem saber de quê?

Hilário: deixa-me pensar...Talvez fosse isso. Talvez andássemos porque parar parecia traição.
Como se o mundo nos tivesse prometido alguma coisa e nós, teimosos, fôssemos cobrar.

Amiga: mas nunca cobramos. Nunca pedimos. Só seguimos, como dois pontos errantes.

Hilário: e agora queres fazer do moinho um ponto final?

Amiga: não um final. Uma vírgula. Onde o vento não nos empurre, mas nos embale.

Hilário: ai este cansaço. Pois então… que seja. Mas se amanhã acordarmos com vontade de andar, promete que não vais dizer que fracassamos.

Amiga: está prometido. Talvez o fracasso seja fingir que há um roteiro, quando tudo o que temos é o moinho.

                  Carlos Ricardo Soares


terça-feira, 9 de setembro de 2025

O poder do olhar

As situações de pobreza são muito variadas e cada pobre vive a sua situação de um modo diferente dos outros. Por outro lado, poder-se-ia dizer que cada pobre é olhado de um modo diferente dos outros, não só por pessoas diferentes, mas também pela mesma pessoa.

O modo como se é olhado pode ser determinante, sobretudo quando se trata de uma pessoa em situação de pobreza ou indigência. Tal como ser olhado de certo modo pode ser demolidor, quem olha também pode estar a ser demolido pelo sentimento de aversão às pessoas em situação de pobreza.

É muitas vezes negligenciado que a pobreza não é uma categoria homogénea, e cada pessoa vive-a com uma história, um contexto e uma dor que são só seus.

A pobreza tem rostos diferentes. Um jovem sem acesso à educação vive a pobreza de forma diferente de um idoso com reforma mínima. Uma mãe solteira que trabalha em dois empregos precários enfrenta desafios distintos de um migrante sem documentos. Há quem esteja em pobreza temporária, por perda de emprego, e quem viva em pobreza estrutural, há gerações. Reduzir tudo isso a “os pobres” é apagar a complexidade e a humanidade de cada situação.

É por isso que soluções genéricas, como subsídios padronizados ou programas de formação em massa, muitas vezes falham. O que funciona para um pode ser inútil ou até prejudicial para outro. O verdadeiro combate à pobreza exige respostas personalizadas, construídas com base na escuta e na confiança.

Na prática, as soluções deveriam passar por um diagnóstico individual. Por exemplo, inquirir não apenas “quantos filhos tens?” ou “qual o teu rendimento?”, mas “como chegaste até aqui?” e “o que te impede de avançar?”. Por planos flexíveis que se adaptam à realidade de cada pessoa, com metas e ritmos diferentes. E representação ativa, porque os próprios beneficiários devem ter voz na construção das soluções, como parceiros e não apenas como “alvos” de políticas. E devolver a capacidade de escolher como viver, onde trabalhar, o que sonhar. É talvez o maior gesto de justiça social que podemos oferecer. A pobreza não é só falta de dinheiro, é falta de escolha.

A forma como olhamos para “o pobre” não é apenas diversa entre pessoas diferentes, mas também instável dentro de cada um de nós. O mesmo indivíduo pode olhar para uma pessoa em situação de pobreza com compaixão num dia, com indiferença noutro, e até com irritação noutro ainda. Isso revela o quanto a nossa perceção é moldada por contexto, humor, ideologia, e até pelo modo como o outro se apresenta. Quantas vezes o olhar sobre o pobre é uma projeção dos nossos próprios medos, medo da fragilidade, da perda, da impotência?! Podemos sentir empatia por alguém que “parece esforçado”, mas rejeitar outro que “parece não querer trabalhar”, mesmo sem conhecer a história de nenhum dos dois. A forma como a pessoa se veste, fala ou se comporta influencia fortemente a nossa reação, como se a dignidade fosse algo que se “merece” pela aparência. Já aqui relatei uma história de um mendigo que só começou a ter sucesso quando se fez passar por uma figura importante que caiu em desgraça.

Não existe “o pobre” como figura única. Existe uma multiplicidade de experiências, e uma multiplicidade de olhares, cada um carregado de julgamentos, afetos, preconceitos e contradições. E reconhecer isso é o primeiro passo para uma abordagem mais justa e humana.

Aprendêssemos nós a reconhecer os próprios preconceitos e oscilações internas. A dar espaço para que pessoas em situação de pobreza contem as suas histórias, sem filtros nem estereótipos. A ouvir sem tentar encaixar o outro numa categoria, acolhendo a sua singularidade.

Quando alguém em situação de pobreza é olhado com respeito, com atenção verdadeira, isso pode devolver-lhe algo essencial, a sensação de existir, de contar, de ser digno.

Por outro lado, o olhar que evita, que atravessa sem ver, ou que carrega desprezo, reforça a exclusão. É como se dissesse: “Tu não és parte do mundo que importa.”

E o mais inquietante é que não é preciso dizer nada, o corpo, os olhos, o silêncio já comunicam tudo.

Pessoas em situação de rua, por exemplo, relatam frequentemente que o pior não é o frio ou a fome, mas serem ignoradas. Passamos por elas como se fossem parte da paisagem urbana, um banco, uma sombra, um ruído. E isso fere mais fundo do que qualquer carência material.

Há olhares que curam. Um gesto de atenção, um cumprimento, um “bom dia” dito com sinceridade pode ser o primeiro passo para reconstruir pontes. E quando esse olhar vem acompanhado de escuta, de presença, de disponibilidade, então, já não é só um olhar, é um ato político e afetivo.

Sempre se pode trabalhar o poder do olhar, na escola, na rua, nos serviços públicos. Podemos sempre tentar devolver visibilidade a quem foi apagado.

Às vezes, tudo começa com um olhar que diz: “Eu vejo-te.”

Outro ponto, que quase nunca é discutido é que a aporofobia não destrói apenas quem é alvo, mas também quem a sente. O olhar de rejeição, quando repetido, pode corroer a própria humanidade de quem o lança.
O sentimento de aversão aos pobres pode gerar desconforto moral, tensão entre valores éticos (como compaixão e justiça) e atitudes excludentes podem gerar culpa, ansiedade ou racionalizações defensivas. Ao negar a empatia, o indivíduo fecha-se ao vínculo humano e isso empobrece a sua capacidade de sentir, de se conectar, de crescer. A prática constante de rejeição pode levar à indiferença generalizada, tornando o sujeito menos sensível não só à pobreza, mas a qualquer forma de sofrimento.
Estou convicto de que muitos dos que rejeitam os pobres o fazem por medo inconsciente de se tornarem pobres, e esse medo, não enfrentado, pode gerar comportamentos obsessivos, consumismo compulsivo ou rigidez ideológica.
No fundo, o olhar que rejeita o outro está muitas vezes a rejeitar algo dentro de si, a fragilidade, a vulnerabilidade, a possibilidade de queda. E isso pode ser devastador, porque impede o sujeito de se reconciliar com a sua própria condição humana.
Assim sendo, se o nosso olhar nos transforma, talvez valha a pena pensar em como podemos transformá-lo.
Talvez curar o modo como olhamos tenha o efeito de curar o modo como vivemos.

                  Carlos Ricardo Soares

sábado, 30 de agosto de 2025

Aproximações à Verdade XL

Hilário: se fores capaz de tomar posição, já estás com sorte. Aliás, se tiveres a noção do que isso é, já estás em posição de compromisso e de luta, em vez de fuga e de alienação.

Amiga: mas precisas de ser forte e de ter carácter, porque os sarilhos, por vezes disfarçados de boas intenções e de vantagens, não cessarão de te assediar e de te importunar.

Hilário: até sob a forma de pretextos respeitáveis, ou mesmo em nome de insofismáveis princípios.

Amiga: sobretudo naqueles momentos em que baixas a guarda.

Hilário: e nem é preciso que sejas invejável, ou que sejas uma pessoa afortunada.

Amiga: até o facto de sempre teres sido um desgraçado que sobreviveu a todo o tipo de dificuldades e de adversidades fará inveja.

Hilário: nunca entendi porque é que isso acontece, mas sempre achei que os ricos têm inveja dos pobres.

Amiga: e também têm inveja uns dos outros, mas nisso os humanos são todos iguais.

Hilário: mas vê o que fazem os Estados e os povos uns aos outros. Não lhes chega serem os mais poderosos, ainda querem aquilo que os outros têm. Se não puderem tirar-lhes mais nada, tentam tirar-lhes a vida, como se isso fosse um direito da força que tenha de ser respeitado pelos mais fracos.

Amiga: eles não suportam que os pobres lhes façam frente e sejam capazes de sobreviver, nunca perceberam como é que conseguem, como são capazes, como têm o desplante de existirem sem se curvarem perante eles.

Hilário: e tentam submetê-los até os aniquilarem, para se certificarem de que eles, afinal, são normais, também morrem.

Amiga: não sei explicar, mas acho que os ricos acreditam que aos pobres nada faz falta porque não têm nada a perder.

Hilário: da janela das aeronaves, olham para os indefesos e abanam a cabeça “vivem felizes mas deviam estar mortos de inveja de nós”.

Amiga: isso eles não suportam, ficam furibundos.

               Carlos Ricardo Soares
 

domingo, 24 de agosto de 2025

Aproximações à verdade XXXIX

 

Quixote: Sabes, às vezes penso que te inventei. Que foste só o eco daquilo que eu precisava ouvir. Um reflexo gentil no vidro embaciado da minha carência.

Aldonza (Dulcineia): E se me inventaste, por que continuo aqui? Por que me chamas quando o silêncio pesa? Talvez não seja invenção, talvez sejamos pirilampos à procura.

Quixote: Procura… Mas de quê? Do amor que se diz mas não se sente? Da palavra que promete mas não toca?

Aldonza (Dulcineia): Talvez da presença que não exige prova. Do gesto que não precisa legenda. Do amor que não se explica, mas se reconhece, como o cheiro da terra molhada.

Quixote: E se eu só souber amar com palavras? Se nunca tiver sentido o tal arrepio que dizem que é amor?

Aldonza (Dulcineia): Então ama com palavras. Mas que sejam tuas. Que não sejam copiadas de canções nem arrancadas de livros. Ama com a tua dúvida, com o teu medo, com a tua pergunta. Com a tua ilusão. Com a tua loucura. Com o que tens.

Quixote: Amar…E tu amas? Ou tudo não passa de palavras?

Aldonza (Dulcineia): Se tudo for palavra, que ao menos seja palavra viva. Que toque. Se não tocar na pele que toque no cérebro, que sintas por dentro. Que te transforme. E que, no fim, te leve até mim.

          Carlos Ricardo Soares


quinta-feira, 21 de agosto de 2025

As trevas

I

Quando a dor se instala como hóspede antigo
e o mundo se fecha em silêncios densos
há uma faísca que sem pedir abrigo
acende o invisível nos nossos pensamentos

II

Não é redenção nem milagre divino
é o lume discreto que o corpo conhece
a beleza da vida como peregrino
vem e vai até que nos esquece

III

Ela não mora em nós nem nos visita
pousando leve num ramo ferido
mas parte deixando escrita
a memória do instante em que fez sentido

IV

A escuridão que já não é castigo
mas a cera da luz que há de vir
porque se aprende com o inimigo
é arte secreta de não desistir

V

Quem sente a beleza mesmo por instantes
carrega no peito um sol clandestino
que brilha às vezes um pouco antes
de vencer as trevas do mundo sibilino.

           Carlos Ricardo Soares