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domingo, 2 de novembro de 2025

Literacia financeira nas escolas: educação ou condicionamento?

A literacia financeira é algo que, em teoria, nunca é de mais, como qualquer literacia. Não é por aí que os zelosos promotores desta campanha deixam de ter razão. Mas é por isso mesmo que a nossa desconfiança deve ser total, quer quanto às intenções, quer quanto ao discurso, quer quanto aos meios. A primeira posição de princípio, ou cautela, relativamente a quem nos quer ajudar, entenda-se oferecer vantagens, é procurar saber que interesse têm nisso.

Quanto maior for o interesse de quem nos quer oferecer vantagens maior deve ser o nosso cuidado. A razão é simples, mas, na prática, toda a nossa educação e toda a nossa linguagem é um processo de sedução, de persuasão, de coação, de intercâmbio, de partilha, de interação, em que nada é neutro, em que o interesse está sempre presente e pode ser provocado. Não é apenas nos negócios formais e sinalagmáticos que esse comércio se exerce. Não é apenas nas promessas e nos acenos, ilusórios ou não, que o marketing, essa ciência poderosa, faz o seu caminho.

Pudéssemos nós usar o marketing em nossa defesa como ele é usado para nos atacar. Este é o cerne da questão. O marketing não é uma tentativa de educar e de ensinar seja o que for. É uma prestidigitação que visa fundamentalmente condicionar comportamentos. E isto não é inócuo. Ninguém se daria ao trabalho e à despesa de nos condicionar porque sim. As “literacias para”, todas elas, têm em comum um programa de motivações e de objetivos explícitos e expressos que se respaldam nas razões gerais e incontestáveis que referi acima.

Mas as motivações e objetivos implícitos de um programa, seja de educação, de ensino, ou de marketing, também pelo que já referi, devem ser colocadas como alvo de análise de primeira linha. O que é expresso, ou explícito, até com exuberância, deve servir-nos como sinal de alerta para o que está a ser ocultado. No fundo, o mecanismo de venda e de persuasão é tão natural e tão familiar, que não conseguimos descortinar facilmente razões para não ser assim, até porque nos fazem sentir como beneficiários, reis e senhores da nossa escolha.

Por outro lado, ainda nos podem acusar, se necessário for, de que fomos vítimas da nossa estupidez, ignorância, ganância, ou mesmo astúcia, quando não reserva mental. No fim de contas, não estamos livres do mecanismo de responsabilização injusta, onde o cidadão é culpado por não ter resistido àquilo que foi desenhado para o seduzir.

               Carlos Ricardo Soares

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Uma ilusão produzida pela falta de qualquer coisa

Para mim, a escrita, como atividade livre e voluntária que pratico desde a infância, entre a curiosidade, a surpresa e a crença de que o mundo e as relações sociais estão edificados e funcionam com palavras e pelas palavras, cujo poder e efeitos era sensível e perceptível a cada momento, sempre a requerer verbalização, sempre perscrutado e escrutinado por representações e discursos oficiais, que condicionavam e determinavam cada escolha e até os sonhos e as fantasias mais privados, tornou-se uma forma de organizar e de ordenar, em profundidade, um mundo em que a oralidade, só por si, funcionava mais como máscara e mecanismo de cumplicidades e de reforço de lugares comuns implícitos e de estereótipos tácitos, que me deixava invariavelmente sem respostas, até porque, não era o lugar das perguntas, ou de certo tipo de perguntas.
A constatação, ou a descoberta de que, ao verbalizar os pensamentos, as ideias, as representações, fosse de que modo fosse, descrevendo, argumentando, imaginando, meditando, analisando, não estava apenas a organizar e a ordenar as coisas segundo uma ordem preexistente que eu desconhecia e que supunha ser função da escrita encontrar, surgiu muito tarde. Essa descoberta revelou duas curiosidades: o processo de conhecimento é condicionado por prejuízos de que podemos não estar conscientes e, mesmo assim, não ser afetado nos seus resultados. 
Embora eu estivesse a ordenar e a organizar as coisas segundo vetores e sentidos e significados que encontravam acolhimento e virtualidade significativa na ordem dinâmica e instável, nunca estabelecida, dos discursos acerca da realidade, o que eu estava a fazer era o meu próprio ordenamento do mundo, a minha inteligibilidade, mesmo quando escrevia a pensar que estava a falar da ordem do mundo, ou de uma suposta ordem das coisas. 
E quem me lia, provavelmente, também faria o mesmo, sem pensar que, no ato de leitura, o que estava a acontecer era a inteligibilidade do leitor, o seu próprio ordenamento das coisas.
Talvez não haja uma forma simples de dizer “tenho a noção daquilo que te estou a dizer, mas não sei o que estás a ouvir”, ou “sei o que estou a escrever, mas não sei o que estás a ler”.
A partir de certa altura, comecei a perceber que a linguagem, sobretudo a poesia e a ficção, tinha um poder de enfeitiçar que deslocava o interesse da linguagem como instrumento de descoberta de uma ordem preexistente e de uma inteligibilidade intrínseca, ou seja, a linguagem como estrutura depositária da verdade a descobrir, para o interesse da linguagem como forma de inventar representações e de dizer, não o que eu, de algum modo, queria dizer, mas aquilo que a linguagem podia dizer. Era a estranha sensação de estar a ser conduzido, estar a ser levado, em vez de conduzir, de submeter as palavras.
A diferença entre instrumentalizar as palavras e ser instrumentalizado por elas, não é fácil de discernir, mas sente-se, sobretudo quando elas deixam de ser nossas aliadas e se tornam nossas inimigas. 
O poeta começou a perceber que há um ponto a partir do qual se pode dizer que estava a vender a alma ao diabo a troco de nada, porque este nunca pagava o prometido. Nessa altura, percebi claramente que as palavras e a escrita podem criar dependências semelhantes às das drogas e que, embora tudo e todos encorajem a cultivar as letras, partindo do princípio de que essa atividade é salutar e promova equilíbrios e sabedoria para uma vida de plenitude, de realização física e psicológica, podia levar ao esgotamento e ao vazio se, em vez de nos colocarmos em primeiro lugar, nos sujeitássemos a sacrificar a saúde em busca de efeitos literários, por mais surpreendentes e notáveis que fossem.
E pareceu-me irrecusável e indiscutível que nenhuma obra literária, por mais excitação e emoções que me trouxesse, merecia que lhe sacrificasse a minha saúde e a minha vida. Algo estava errado na poesia se ela era a promessa de algo que acabava por ser a sua negação e o seu contrário. 
Algo estava errado quando o poeta não era a personificação da poesia, se a vida do poeta nada tinha de poético por causa de a ter sacrificado à poesia.
Então disse à poesia e à linguagem em geral “não te vou dar o que requeres e me exiges, tu é que vais ter de me dar o que quero de ti”.
E foi assim e tem sido assim que me recusei a ser um catavento à espera de ser soprado por uma ilusão maior do que a ilusão da realidade. 
Sim, a realidade pode ser, e é frequentemente, uma ilusão produzida pela falta de qualquer coisa, conhecida ou desconhecida. Mas que não seja o que me falta quando apenas tenho essa coisa.

                      Carlos Ricardo Soares

domingo, 19 de outubro de 2025

O viés de confirmação - A crítica começa onde a linguagem vacila

O viés de confirmação é um dos mecanismos cognitivos mais estudados na psicologia e nas ciências sociais. Eis alguns pontos que merecem destaque:

1- O cérebro como mestre da economia cognitiva. A ideia de que o cérebro “engana” pode ser provocadora, mas é metaforicamente eficaz. O cérebro privilegia atalhos mentais (heurísticas) para lidar com a sobrecarga de estímulos e decisões. O viés de confirmação é um desses atalhos, ele reduz o esforço cognitivo ao evitar o confronto com informações dissonantes.

2 - Como o viés opera? Procuramos, interpretamos e lembramos informações que confirmam nossas crenças prévias, ignorando ou desvalorizando as que as contradizem. Isso afeta desde preferências de consumo até convicções políticas, religiosas ou morais.

3 - Amplificação pelas redes sociais. Os algoritmos reforçam esse viés ao personalizar conteúdos com base em interações anteriores, criando bolhas epistémicas. Essas bolhas podem gerar polarização, dificultar o diálogo e cristalizar identidades em torno de certezas não examinadas.

4- O valor da dúvida. Mas há antídotos: consciência crítica, exposição deliberada à diferença, e o exercício da pergunta “E se eu estiver errado?”. É um gesto filosófico, ético e democrático que abre espaço para o pensamento dialógico, para o reconhecimento da alteridade e para a revisão de pressupostos.

A escuta ativa e o questionamento são formas de liberdade.

Assim sendo, quanto mais estivermos confirmados naquilo que pensamos, e isso é particularmente verdadeiro para o mundo académico e religioso e político-partidário, mais improvável é que exerçamos a consciência crítica. Esta inferência é sólida e profundamente inquietante.

Quanto mais investidos emocional, identitariamente ou institucionalmente, numa crença ou sistema de pensamento, mais difícil se torna questioná-lo de forma crítica. Isso não significa que seja impossível, mas que há forças cognitivas, sociais e afetivas que resistem à dúvida.

Por que é que a confirmação dificulta a crítica?

1 - Identidade e pertença. Em contextos académicos, religiosos ou político-partidários, as crenças não são apenas ideias, são marcadores de identidade. Questioná-las pode parecer uma ameaça ao sentimento de pertença ou à coerência pessoal.

2 - Capital simbólico. Professores, líderes religiosos ou políticos acumulam prestígio com base em certas convicções. Mudar de posição pode parecer perda de autoridade ou traição ao grupo.

3 - Ambientes de reforço. Instituições tendem a recompensar a conformidade e punir a dissidência, mesmo que subtilmente, através de exclusão, desvalorização ou silêncio.

O paradoxo da crítica institucional:

4 - O mundo académico, por exemplo, valoriza a crítica, mas muitas vezes reproduz dogmas teóricos ou modas intelectuais que se tornam intocáveis. 

5 - O religioso, que deveria cultivar o mistério e a abertura ao transcendente, pode cristalizar-se em doutrinas que confundem fé com certeza. 

6 - O político, que deveria ser espaço de negociação e pluralismo, frequentemente polariza posições e transforma adversários em inimigos.

Como cultivar consciência crítica mesmo dentro de sistemas fechados?

Praticar o deslocamento. Ler autores fora do próprio campo, ouvir vozes marginais, experimentar o desconforto da alteridade. Dramatizar o pensamento. Encenar o conflito entre vozes, deixar que o texto se torne palco de negociação ética. Interrogar a linguagem. Toda a certeza se expressa por palavras e toda a palavra carrega ambiguidade. 

A crítica começa onde a linguagem vacila.

  Carlos Ricardo Soares


terça-feira, 14 de outubro de 2025

Aproximações à verdade XLVIII

Amiga: se fores a minha sombra, então és feito da mesma luz que me revela.

Hilário: ou talvez da escuridão que me protege do excesso de claridade.

Amiga: há sombras que abraçam melhor do que braços.

Hilário: e há silêncios que dizem mais do que todas as palavras que ousámos não dizer.

Amiga: este lugar parece suspenso entre o que fomos e o que ainda não sabemos ser.

Hilário: como se o tempo aqui não passasse, mas nos atravessasse.

Amiga: e se a águia ou o grifo nos observava, reconhecesse em nós o seu impulso de voo?

Hilário: ou a mesma hesitação antes de abrir as asas?

Amiga: a rocha pontiaguda continua a apontar para o infinito que, agora, parece menos distante.

Hilário: talvez porque o infinito não seja longe, mas dentro.

Amiga: e se for dentro, então já lá estamos, ou, pelo menos, já o tocámos.

Hilário: e talvez seja por isso que o moinho escuta. Porque há histórias que só se contam quando o vento para.

Amiga: e há encontros que só acontecem quando deixamos de procurar, como este, como nós, sem o sentido dos passos que ainda não demos.

Hilário: mas há encontros que não interessam. Que não nos encontrem antes de estarmos prontos.

Amiga: que não sejamos encontrados por aquilo de que somos fugitivos.

Hilário: fugitivos, mas que deixamos rastos.

Amiga: e há rastos que são convites, não despedidas.

Hilário: como este lugar, que parece ter estado tanto tempo à nossa espera.

Amiga: ou talvez tenha sido desenhado, concebido, por nós, sem o sabermos.

Hilário: a águia, ou o grifo, talvez tenha pousado aqui por isso.

Amiga: porque há sítios que só existem quando alguém os deseja e os contempla.

Hilário: e há contemplações que criam mundos.

Amiga: como este. Como nós.

Hilário: como se ganhássemos a forma do que criámos.

        Carlos Ricardo Soares

sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Aproximações à verdade XLVII

Hilário: as águias e os grifos habitam os lugares mais altos.

Amiga: como nós, agora, aqui, a invadir o espaço deles.

Hilário: é isso, a águia estava ali pousada para tentar proteger, talvez o ninho.

Amiga: águia ou grifo, não sabemos, mas pousam sempre onde podem ter a melhor perspectiva

Hilário: grande ideia a tua, agora que já se foi para outro lugar, vamos lá ver se descobrimos a razão pela qual pousou ali, naquele ponto.

Amiga: afinal ainda temos mundo para explorar.

Hilário: guiados pelas águias.

Amiga: ou grifos, não sabemos.

Hilário: o céu está tingido de cinza e cobre. O moinho permanece imóvel, como se escutasse o que dizemos.

Amiga: à medida que avançamos em direção ao sítio do grifo, ou da águia, o moinho vai ficando mais ao fundo, envolto em sombra.

Hilário: esta luz suave, quase crepuscular, parece emanar dos teus olhos.

Amiga: eu digo que emana das tuas palavras.

Hilário: não temes ser dissolvida no eco do que pensas?

Amiga: chegamos ao sítio em que avistamos o grifo, ou a águia, pousado a observar-nos. Reparei nesta rocha pontiaguda que aponta para o infinito.

Hilário: daqui podemos ver um pouco daquilo que essa ave enigmática via.

Amiga: os nossos olhos têm um alcance muito mais reduzido e, quanto à mente dessa ave, espero que nos seja favorável dando pistas como a que nos trouxe a este ponto.

Hilário: aqui o tempo chama de volta ao que nunca deixou de ser.

Amiga: a minha avó apontava para o topo das montanhas e dizia que quem chegasse ali não poderia regressar.

Hilário: onde estavas quando a tua avó disse isso?

Amiga: estava com ela, a tentar chegar aqui, ao topo das montanhas.

Hilário: não há começo sem perda, nem fim sem memória. Agora estamos aqui, onde ela almejou chegar, mesmo sem saber o que isto seria.

Amiga: aqui a memória e a liberdade não servem para nada e nisso a minha avó estava certa. Ninguém pensa em liberdade numa ilha em que não há mais ninguém.

Hilário: gosto muito de ti, mas não é para abusares. Aqui, ninguém está sozinho. Ou por acaso serei eu a tua sombra?

     Carlos Ricardo Soares

 


domingo, 5 de outubro de 2025

Aproximações à verdade XLVI

Hilário: se o moinho falasse, o que nos diria?!

Amiga: assim o soubéssemos interpretar, porque ele é um documento que fala à maneira dos documentos.

Hilário: ele parece dizer que viemos depois, com passos alheios, e que, sem pedir licença, nos sentamos onde o silêncio de outros repousava.

Amiga: talvez depois de terem rido alto ou chorado em segredo, talvez antes de perderem a memória.

Hilário: se houvesse um rascunho da história deste moinho que alguém tivesse encontrado...

Amiga: mesmo escrito por mãos que nunca souberam escrever, quem sabe?!

Hilário: ou rasgado por mãos que nunca souberam ler, quem sabe?!

Amiga: seríamos sempre confundidos com os que passaram por aqui sem entenderem o que é este lugar.

Hilário: a fragilidade está em quem pensa, em quem sente, em quem hesita. O mundo exige pressa e firmeza, depressa e bem, enquanto tu, querida amiga, tentas caminhar com cuidado, não com receio de tropeçar, mas como quem pisa em folhas secas sem querer fazer barulho.

Amiga: sinto que os pensamentos, neste lugar, pesam mais do que os passos, como se estivessem a ser disputados por forças contrárias umas às outras, e cada palavra tivesse de ser arrancada de memórias que são de outras pessoas.

Hilário: talvez aquela águia, ou será um grifo?, esteja a observar-nos e a ler o nosso pensamento através do nosso embaraço.

Amiga: não sei se sou eu que toco de mais nas coisas, ou se são as coisas que tocam de mais em mim.

Hilário: a mim dói-me não tocar em nada.

Amiga: agora não consigo tirar os olhos daquela águia, ou grifo, que não tira os olhos de nós.

Hilário: talvez nos esteja a ver de outro mundo, ou seja um sinal de que atingimos o limite, a fronteira que separa a vida da morte.

Amiga: como se houvesse fronteira entre o que é e o que já não pode ser.

Hilário: como se este lugar fosse a margem, a última, de algo que não veremos.

Amiga: não sei. Sinto que o tempo aqui parece ter parado para nos deixar pensar.

Hilário: ou para nos deixar partir.

Amiga: mas partir para onde?

Hilário: talvez não seja partir. Talvez seja só deixar de procurar. Ou deixar de fugir.

Amiga: então esse grifo, ou águia, veio dizer que já não precisamos de andar?

Hilário: ou que já não podemos. Que o caminho acabou e o que resta é o silêncio. E que o silêncio, amiga… também é uma forma de estar vivo.

Amiga: ou uma forma de estar quase. Quase…Talvez seja isso que somos: quase a partir, quase a ficar, quase a entender.

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Aproximações à verdade XLV


Amiga: neste lugar, Hilário…Começo a sentir uma estranheza que nunca tinha experimentado. Não sei o que faço aqui. E não quero partir. Não sei se há algum lugar para onde quisesse ir.

Hilário: mas tu sempre foste a que queria ir. Mesmo sem saber para onde.

Amiga: pois. Mas agora…É como se o mundo passado tivesse deixado de me chamar. E este lugar, tão fora de tudo…Parece dizer que não há urgência em continuar a procurar.

Hilário: talvez isso seja o que nos acontece quando paramos. Não é que o mundo desapareça, o barulho dele é que deixa de nos empurrar.

Amiga: mas não saber o que faço aqui…É como estar num palco sem papel para representar. Sem fala. Perante uma plateia cujos lugares vão sendo ocupados por fantasmas.

Hilário: e se for isso mesmo o que nos resta? Estar. Sem papel, sem roteiro, sem pressa. Só estar.

Amiga: mas não é pouco? Talvez os fantasmas desta imensa plateia que avistamos não estejam aqui para nos verem a atuar, mas para ouvirem as histórias do moinho.

Hilário: é pouco para quem quer ser personagem. Mas é muito para quem aceita ser pessoa.

Amiga: talvez os fantasmas desta imensa plateia não estejam aqui porque nos veem, mas porque ouvem.

Hilário: o moinho é só o lugar onde deixámos de fingir que sabíamos o que é liberdade.

Amiga: e talvez seja o primeiro lugar onde isso não nos cobra nada.

Carlos Ricardo Soares


sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Aproximações à verdade XLIV

 

Amiga: e todas estas escarpas a separar-nos do lado de lá, que não vemos, nem sabemos o que é, Hilário…é como se, pela primeira vez, estivesse a olhar para dentro de mim. Sabes o que nos está a acontecer? Estamos perdidos. Ainda não tinha pensado nisso.

Hilário: perdidos? Como quem não sabe voltar? Ou como quem nunca soube para onde ia?

Amiga: como quem andou tanto que esqueceu o porquê. Como quem parou num lugar e só depois percebeu que o destino, afinal, era um desvio para um beco sem saída.

Hilário: talvez este seja o lugar onde os perdidos se encontram. Não para se acharem…
Mas para se reconhecerem.

Amiga: não me atormentes ainda mais. Tudo o que vemos é demasiado poderoso e esmagador. O nosso corpo, para suportar a visão deste lugar, precisava de ter a alma que foi perdendo até chegar aqui. Eu não queria estar perdida. Queria estar a caminho de alguma coisa. Mesmo que fosse só uma fantasia no horizonte.

Hilário: e não terá sido isso que nos trouxe até aqui? A fantasia de que estávamos no bom caminho, mesmo sem sabermos qual?

Amiga: mas agora não há caminho. Só pedra, vento, e este moinho que não nos diz nada. E cada vez tenho mais a sensação de que estamos a ser observados, de que não estamos sós.

Hilário: então talvez estejamos a ser também escutados. Às vezes, ser escutado já é mais do que saber para onde se vai.

Amiga: então somos dois perdidos a conversar com pedras? É isso? Mas eu sinto que as pedras são fortificações onde se escondem feras que não nos temem, que esperaram todo o tempo que foi preciso até chegar o momento de nos atacarem, sem que tenhamos capacidade para enfrentá-las.

Hilário: dois perdidos que ainda conversam. E isso, Amiga… já é alguma coisa.

        Carlos Ricardo Soares